O poemário do cancioneiro português (incluindo fado, música tradicional e ligeira) pretende fomentar o gosto da poesia como parceira da música e a divulgação dos poetas cuja importância nem sempre é justamente reconhecida. Fontes: Blogue A Nossa Rádio, Álvaro José Ferreira.
A lonjura é um degredo Sem grades para assaltar; Sem olhos, sem mãos, segredo, Boca calada de amar.
É mar que afunda a fragata, É cotovia sem voz; É um orvalho sem prata Letra sem rosto, sem foz.
É lágrima, é destempero, É tabuada aldrabada; Diário do desespero, Diário branco, sem nada.
Um chapéu cheio de traça, A sina contada à toa; A lonjura é uma desgraça, Não há dor que tanto doa.
Letra: Joaquim Sarmento Música: João Black (Fado Menor do Porto) Intérprete: Helena Sarmento Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
A minha alma está doente
[ Confirmação ]
A minha alma está doente, Quiseram em vão curá-la E quantos ingenuamente Tentaram amortalhá-la!
Fizeram cerco e, no meio De toda aquela muralha, Eu (que sofria!) cantava… Não me servira a mortalha!
E à medida que o segredo Vinha em meus lábios poisar-se, | Embriagado, eu cantava… Não me servira o disfarce!
Mas, por fim, vendo, talvez, Que nenhum remédio havia Deram à minha surdez O nome de poesia…
Poema: Pedro Homem de Mello (ligeiramente adaptado) Música: Renato Varela (Fado Meia-Noite) Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)
CONFIRMAÇÃO
(Pedro Homem de Mello, in “Eu Hei-de Voltar um Dia”, Lisboa: Edições Ática, 1966, reimp. 1999 – p. 63)
A minha alma está doente, Quiseram em vão curá-la E quantos ingenuamente Tentaram amortalhá-la! Formaram cerco e, no meio De toda aquela muralha, Eu (que sofria!) cantava… Não me servira a mortalha! E à medida que o segredo Vinha em meus lábios poisar-se, Embriagado, eu cantava… Não me servira o disfarce! Mas, por fim, vendo, talvez, Que nenhum remédio havia Deram à minha surdez O nome de poesia…
À rapariga mais nova
[ Testamento ]
À rapariga mais nova Do bairro mais velho e escuro, Deixo meus brincos lavrados Em cristal límpido e puro.
E àquela virgem esquecida, Sonhando alto uma lenda, Deixo o meu vestido branco Todo tecido de renda.
E este meu rosário antigo, De contas da cor dos céus, Ofereço-o àquele amigo Que não acredita em Deus.
E os livros, rosários meus Das contas d’outro sofrer, São para os homens humildes Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos, Esses que são só de dor, E aqueles que são de esperança São para ti, meu amor.
P’ra que tu possas, um dia, Com passos feitos de lua, Oferecê-los às crianças Que encontrares em cada rua.
Poema: Alda Lara (adaptado) Música: Popular (Fado Menor) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “O Riso Que me Deste”, RCA Victor, 1967; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
TESTAMENTO
(Alda Lara, in “Poemas”, Sá da Bandeira, Angola: Imbondeiro, 1966, reed. Braga: APPACDM, 1997, 2005)
À prostituta mais nova do bairro mais velho e escuro, deixo os meus brincos, lavrados em cristal, límpido e puro… E àquela virgem esquecida, rapariga sem ternura sonhando algures uma lenda, deixo o meu vestido branco, o meu vestido de noiva, todo tecido de renda… Este meu rosário antigo ofereço-o àquele amigo que não acredita em Deus… E os livros, rosários meus das contas de outro sofrer, são para os homens humildes que nunca souberam ler. Quanto aos meus poemas loucos, esses, que são de dor sincera e desordenada… esses, que são de esperança, desesperada mas firme, deixo-os a ti, meu amor… Para que, na paz da hora, em que a minha alma venha beijar de longe os teus olhos, vás por essa noite fora, com passos feitos de lua, oferecê-los às crianças que encontrares em cada rua…
Caía a tarde
[ O Bêbado e a Equilibrista ]
Caía a tarde feito um viaduto E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos A lua, tal qual a dona de um bordel, Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel E nuvens, lá no mata-borrão do céu, Chupavam manchas torturadas, que sufoco! Louco, um bêbado com chapéu-côco Fazia irreverências mil p’rá noite do Brasil, meu Brasil Que sonha com a volta do irmão do Henfil Com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete Chora a nossa pátria, mãe gentil Choram Marias e Clarices no solo do Brasil Mas sei que uma dor assim pungente Não há-de ser inutilmente a esperança Dança na corda bamba de sombrinha E em cada passo dessa linha pode se machucar Azar, a esperança equilibrista Sabe que o show de todo o artista tem que continuar
Letra: Aldir Blanc Música: João Bosco (a partir da música “Smile”, de Charles Chaplin, composta para a banda sonora do filme “Tempos Modernos”, 1936) Intérprete: Helena Sarmento* Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018) Versão original: João Bosco (in LP “Linha de Passe”, RCA Victor, 1979, reed. RCA, 2004) Outra versão: Elis Regina (in LP “Elis, Essa Mulher”, Warner Bros. Records, 1979, reed. Warner Music Brasil/WEA Music, 1989)
Ciganos
Ciganos! Vou cantar, não a beleza Dos vossos corações que não conheço. Mas esse busto de medalha e preço Que nem é carne vã, nem alma acesa!
Saúdo em vós o corpo, unicamente, Desumano e cruel como uma chama! Em vós, saúdo a graça omnipotente Do lírio que ainda flor por entre a lama.
A vossa vida não pertence ao rei. Não mutilaste estradas verdadeiras. Quem ama a liberdade odeia a lei Que deu à terra a foice das fronteiras.
E, enquanto o aroma e a brisa e até as almas Ficam irmãs das pérolas roubadas, As mãos dos homens que vos são negadas Tremem quando passais. Mas batem palmas.
As mãos dos homens que vos são negadas Tremem quando passais. Mas batem palmas.
Poema: Pedro Homem de Mello (excerto adaptado) Música: José Belo Marques (Fado Fora d’Horas) Intérprete: Tereza Tarouca* (in LP “Tereza Tarouca Canta Pedro Homem de Mello”, Edisom, 1989; CD “Teresa Tarouca”, col. Clássicos da Renascença, vol. 15, Movieplay, 2000; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
CIGANOS
(Pedro Homem de Mello, in “Miserere”, Porto, 1948; “Poesias Escolhidas”, col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: IN-CM, 1983 – p. 110)
Ciganos! Vou cantar, não a beleza Dos vossos corações que não conheço. Mas esse busto de medalha e preço Que nem é carne vã, nem alma acesa! Saúdo em vós o corpo, unicamente, Desumano e cruel como o dum bicho! Em vós, saúdo a graça omnipotente Do lírio que ainda flor por entre o lixo. Eu vos saúdo, pela poesia, Que nasceu pura e não se acaba mais. E pelo ritmo ardente que inebria Meus olhos como fios que enlaçais! A vossa vida não pertence ao rei. Não mutilaste estradas verdadeiras. Quem ama a liberdade odeia a lei Que deu à terra a foice das fronteiras. E, enquanto o aroma e a brisa e até as almas Ficam irmãs das pérolas roubadas, As mãos dos homens que vos são negadas Tremem quando passais. Mas batem palmas.
Era um Redondo Vocábulo
Era um redondo vocábulo Uma soma agreste Revelavam-se ondas Em maninhos dedos Polpas seus cabelos Resíduos de lar Nos degraus de Laura A tinta caía No móvel vazio Convocando farpas Chamando o telefone Matando baratas A fúria crescia Clamando vingança Nos degraus de Laura No quarto das danças Na rua os meninos Brincavam e Laura Na sala de espera Inda o ar educa…
Era um redondo vocábulo Uma soma agreste Revelavam-se ondas Em maninhos dedos Polpas seus cabelos Resíduos de lar Nos degraus de Laura A tinta caía No móvel vazio Convocando farpas Chamando o telefone Matando baratas A fúria crescia Clamando vingança Nos degraus de Laura No quarto das danças Na rua os meninos Brincavam e Laura Na sala de espera Inda o ar educa…
Nos degraus de Laura No quarto das danças Nos degraus de Laura No quarto das danças
Letra e música: José Afonso Intérprete: Helena Sarmento Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
Éramos três
[ A Rapariga das Violetas ]
Éramos três quando passou por nós quando passou por nós com o cesto das violetas. Disse a primeira: como vai cansada, e descalça, coitada, coitada! Disse a outra: tão suja e desgrenhada, olhem os pés sem cor, as unhas pretas!
Eu, a terceira… eu não disse nada, não disse nada, não disse nada. … Que lindas as violetas!
Poema: Fernanda de Castro (adaptado) Música: Manuel Lima Brummon Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)
A rapariga das violetas
(Fernanda de Castro, in “Exílio”, Lisboa: Livraria Bertrand, 1952 – p. 93)
Éramos três quando passou por nós com o cesto das violetas. Disse a primeira: como vai cansada, e descalça, coitada! Disse a outra: tão suja e desgrenhada, olhem os pés sem cor, as unhas pretas!
Eu, a terceira… eu não disse nada. … Que lindas as violetas!
Fado
Ao passar pelo ribeiro Onde, às vezes, me debruço, Fitou-me alguém. Corpo inteiro, Curvado com um soluço!
Que palidez nesse rosto Sob o lençol do Luar! Tal e qual quem, ao Sol-Posto, Estivera a agonizar…
E aquelas pupilas baças Acaso seriam minhas? Meu amor, quando me enlaças, Porventura as adivinhas?
Deram-me, então, por conselho, Tirar de mim o sentido. Mas, depois, vendo-me ao espelho, Cuidei que tinha morrido!
Poema: Pedro Homem de Mello (ligeiramente adaptado) Música: José Marques do Amaral (Fado José Marques do Amaral) Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)
FADO
(Pedro Homem de Mello, in “As Perguntas Indiscretas”, Porto: Editorial Domingos Barreira, 1968; “Poesias Escolhidas”, col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: IN-CM, 1983 – p. 295)
Ao passar pelo ribeiro Onde, às vezes, me debruço, Fitou-me alguém. Corpo inteiro, Curvado como um soluço!
Que palidez nesse rosto Sob o lençol do Luar! Tal e qual quem, ao Sol-Posto, Estivera a agonizar…
Aquelas pupilas baças Acaso seriam minhas? Meu amor, quando me enlaças, Porventura as adivinhas?
Deram-me, então, por conselho, Tirar de mim o sentido. Mas, depois, vendo-me ao espelho, Cuidei que tinha morrido!
Fica longe o sol que vi
[ Quadras da Minha Solidão ]
Fica longe o sol que vi aquecer meu corpo outrora… Como é breve o sol daqui! E como é longa esta hora!…
Donde estou vejo partir quem parte certo e feliz. Só eu fico. E sonho ir rumo ao sol do meu país…
Por isso as asas dormentes suspiram por outro céu. Mas ai delas! tão doentes não podem voar mais eu…
que comigo, preso a mim, tudo quanto sei de cor… Chamem-lhe nomes sem fim, por todos responde a dor.
E assim, no pulso dos dias, sinto chegar outro Outono… Passam as horas esguias, levando o meu abandono…
Poema: Alda Lara (excerto) Música: Jaime Santos (Fado da Bica) Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)
QUADRAS DA MINHA SOLIDÃO
(Alda Lara, in “Poemas”, Sá da Bandeira, Angola: Imbondeiro, 1966, reed. Braga: APPACDM, 1997, 2005)
Fica longe o sol que vi aquecer meu corpo outrora… Como é breve o sol daqui! E como é longa esta hora!…
Donde estou vejo partir quem parte certo e feliz. Só eu fico. E sonho ir rumo ao sol do meu país…
Por isso as asas dormentes suspiram por outro céu. Mas ai delas! tão doentes não podem voar mais eu…
que comigo, preso a mim, tudo quanto sei de cor… Chamem-lhe nomes sem fim, por todos responde a dor.
Mas dor de quê? dor de quem, se nada tenho a sofrer?… Saudade?… Amor?… Sei lá bem! É qualquer coisa a morrer…
E assim, no pulso dos dias, sinto chegar outro Outono… Passam as horas esguias, levando o meu abandono…
Lá vem num corcel
[ Trovas do Meu Povo ]
Lá vem num corcel o príncipe real vem saber dos favos vem medir o mel
vem ver os pastores pastarem o gado são seus os pastores e é seu todo o prado
Lá vem num cavalo o senhor regedor vem ver como cumprem as ordem do rei
pela terra alheia vem ver lavradores vê o que semeiam vem contar as flores
Lá vem num burrico o senhor abade vem pedir prás almas prás almas salvar
são suas as almas que o povo lhas deu partilha por todos a fé que perdeu
Lá vem todo o povo a pé no povoado de Cristo nos ombros à cruz arrancado
pois Cristo resiste não morre entre o povo porque em cada um há sempre um Cristo novo
La, la, la…
Letra: Manuel Lima Brummon Música: Luís Alexandre Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)
Lavava no rio, lavava
Lavava no rio, lavava, Gelava-me o frio, gelava, Quando ia ao rio lavar! Passava fome, passava, Chorava também, chorava Ao ver minha mãe chorar!
Cantava também, cantava! Sonhava também, sonhava! E na minha fantasia Tais coisas fantasiava, Que esquecia que chorava, Que esquecia que sofria!
Já não vou ao rio lavar, Mas continuo a chorar! Já não sonho o que sonhava! Se já não lavo no rio, Porque me gela este frio Mais do que então me gelava?
Ai, minha mãe, minha mãe, Que saudades desse bem, Do mal que então conhecia! Dessa fome que eu passava, Do frio que nos gelava E da minha fantasia!
Já não temos fome, mãe, Mas já não temos também O desejo de a não ter! Já não sabemos sonhar, Já andamos a enganar O desejo de morrer!
Letra: Amália Rodrigues Música: José Fontes Rocha Intérprete: Joana Amendoeira (in CD “Amor Mais Perfeito: Tributo a José Fontes Rocha”, CNM, 2012) Versão original: Amália Rodrigues (in LP “Gostava de Ser Quem Era”, Valentim de Carvalho, 1980, reed. EMI-VC, 1995, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007; “Amália 50 Anos”: CD “Amália Mais os Poetas Populares”, EMI-VC, 1989; 2CD “O Melhor de Amália”: vol. III – “Fado da Saudade”: CD 2, EMI-VC, 2003)
Meu país esperando
[ Portugal Triste ]
Meu país esperando na esquina do tempo de braços abertos a todo o momento vou seguindo sempre calculando os passos e se o que criei desfaço e refaço meus olhos despertos abrem-se para o mundo e eu caio em mim cada vez mais fundo
Meu país perdido na esquina do tempo triste Portugal tão pequeno e imenso pois eu te garanto, país, que este povo traz no coração sempre um amor novo
Não quero que pensem que já me perdi nem quero que julguem que fujo de mim tenho lucidez para poder viver eu sou vertical, não me hão-de torcer sempre fui mais forte quando me quiseram tornar serva ou fraca e nunca me venceram
Tenho a dimensão do que quero alcançar e nada que fiz tenho a lamentar pois para me encontrar ainda vos digo que nunca vendi meu cantar de amigo
Portugal que eu canto deixa a boca amarga mas eu estou bem firme, não estou derrotada
Letra e música: Manuel Lima Brummon Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
Mordi a Tua Mão
Mordi a tua mão, depois morri; Caí sobre o teu corpo inanimado: Que importa se estou preso ou se prendi! Quem morre assim não tem que ser julgado.
Mordi a tua mão, depois morri; Passei por um lugar que não tem nome, Que fica muito além do que sofri: Maior que a dor, que o mar, maior que a fome.
Beijei a tua mão, depois vivi; Deixei-me ali ficar de olhos fechados. Ainda perguntei: “Tu estás aqui?”; Depois dormi nos braços arranhados.
Letra: Duarte Música: Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado CUF) Intérprete: Duarte (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Nesse teu olhar magoado
[ Espero a Morte a Cantar ]
Nesse teu olhar magoado Vejo a cor dos olhos meus; Tem a dor um tom pisado Que é o tom dos olhos teus.
Sofro a dor por te querer Esquecendo que te perdi, Mas um dia quis te ver E louca d’amor fugi.
Nos meus olhos vivem ainda Saudades dum olhar teu; No meu peito vive infinda Essa dor que em ti viveu.
Hoje canto de amargura Já cansada de te amar, E vencida pela tortura Espero a morte a cantar.
Letra: Francisco Pessoa Música: Joaquim Campos (Fado Amora) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Saudade, Silêncio e Sombra”, RCA Victor, 1964)
No silêncio do meu quarto
[ Um Fado para Fred Astaire ]
No silêncio do meu quarto… de incerteza Não vos sei dizer se morro… ou ressuscito; Faz-se noite quando parto… com tristeza E talvez peça socorro… mas não grito.
Quem diria que os teus pés… de bailarino Entrariam para a história… da saudade, E que meio de viés… por teu destino Brindarias à memória… que me invade?!
Quase toco a tua mão… presa ao ecrã, Mas tropeço nos meus passos… sem esperança; Não existe solidão… nem amanhã Quando danço nos teus braços… de criança.
Eu é que sou a menina,… mas não quero, E não vou mudar de idade… e ai de mim Se a memória só termina… e volta a zero Quando acabar a saudade… que é sem fim.
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Popular e Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado Menor com Versículo) Intérprete: Cristina Nóbrega Versão discográfica de Cristina Nóbrega (in CD “Um Fado para Fred Astaire”, Watch & Listen, 2014) Versão original: Deolinda Rodrigues (inédita)
O Cristo inerte
[ Não Fui Eu ]
O Cristo inerte preso à cruz A luz da vela que O reduz À sombra triste na parede entrecortada
Dos lábios solta-se, indulgente A prece inútil do não-crente Entre palavras que por fim não dizem nada
Não fui eu, não fui eu Não deixei a porta aberta Não fui eu, não fui eu Ficou-me a casa deserta
Há como um fugidio rumor De passos no corredor Induzem na minh’alma a dor da esperança vã
Sinais do tempo a humedecer A voz que teima enrouquecer E o corpo dorido pela noite no divã
Não fui eu, não fui eu Não deixei a porta aberta Não fui eu, não fui eu Ficou-me a casa deserta
Como esta febre me destrói Perdido amor, quanto me dói Desceste em mim o cruel manto da tristeza
Em cada noite morro, amor E a solidão faz-me maior Mal amanhece e volta o medo que anoiteça
Não fui eu, não fui eu Não deixei a porta aberta Não fui eu, não fui eu Ficou-me a casa deserta
Letra e música: Jorge Fernando Intérprete: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Por ti cheguei a amar o desumano
[ A Outra Face da Alegria ]
Por ti cheguei a amar o desumano e fiz da minha angústia amor total vi florir primaveras todo o ano nunca ninguém te amou com amor igual
Por ti bastava a sombra fugidia do teu olhar no meu insatisfeito e tudo o que não tinha pressentia como quem tem dois corações no peito
Por ti reinventei lindas palavras nas mãos tive oiro e estrelas só por ti e nada te bastou, nada aceitavas mas roubaste o melhor que havia em mim
Por ti gastei a face da alegria e andei morrendo um pouco em toda a parte embriagaste a luz de cada dia os dias mais belos da minha idade
Letra e música: Manuel Lima Brummon Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
Quem dorme à noite comigo?
[ Medo ]
Quem dorme à noite comigo? É meu segredo. Mas se insistirem lhes digo: O medo mora comigo, Mas só o medo, mas só o medo.
E cedo, porque me embala Num vai-e-vem de solidão, É com o silêncio que fala: Com voz que move onde estala E nos perturba a razão.
Gritar? Quem pode salvar-me Do que está dentro de mim? Gostava até de matar-me, Mas eu sei que ele há-de esperar-me Ao pé da ponte do fim.
Poema: Reinaldo Ferreira Música: Alain Oulman Intérprete: Júlio Resende com Amália Rodrigues (in CD “Amália por Júlio Resende”, Edições Valentim de Carvalho, 2013) Versão original: Amália Rodrigues (grav. 1966, CD “Segredo”, EMI-VC, 1997; 2CD “O Melhor de Amália: Vol. II – Tudo Isto É Fado”: CD 1, EMI-VC, 2000; Livro/4CD “O Melhor de Amália”: CD 3, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Talvez a solidão se torne um mito
[ Um Quê de Eternidade ]
Talvez a solidão se torne um mito pr’àqueles que se entregam à saudade, pois se uma tem um pouco de infinito a outra tem um quê de eternidade.
A solidão não sabe de quem gosta: por isso é que elas andam sempre juntas, porque uma é a pergunta sem resposta e a outra é a resposta sem perguntas.
Mas é com a saudade que me entendo, porque ela se apaixona só por quem descobre em cada verso que vai lendo que a solidão não gosta de ninguém.
Não sei porque é que vai baixando a voz, nem sei porque é que esconde o que revela, mas sei que se ela diz gostar de nós já não aceita que gostemos dela.
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Raul Pereira (Fado Zé Grande) Intérprete: Cristina Nóbrega Versão original: Cristina Nóbrega (in CD “Um Fado para Fred Astaire”, Watch & Listen, 2014)
Um malmequer desfolhei
[ Malmequer Desfolhado ]
Um malmequer desfolhei, Nunca tal tivesse feito; Não sabia o que já sei, Tinha-te ainda no peito!
P’ra saber s’inda era meu O homem que eu tanto amei, Com os olhas fitos no céu Um malmequer desfolhei!
E da flor fui arrancando Esperanças que fora deito; E agora eu estou chorando… Nunca tal tivesse feito!
Julgando ter-te na vida E seres p’ra mim minha lei, Passava o tempo iludida… Não sabia o que já sei!
Sonhava meu coração, E agora sonho desfeito Vivendo da ilusão… Tinha-te ainda no peito!
Letra: D. António de Bragança Música: Francisco Viana (Fado Francisco Viana ou Fado Mouraria do Vianinha) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Mouraria”, RCA Victor, 1963; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978)
Acredito em pouca coisa que venha escrita em loiça, dessa de pôr na parede.
Acredito mais no desempenho da laranja que apanho, que como e me mata a sede.
Acredito nas façanhas, muito menos nas patranhas de quem faz só porque sim.
Acredito nas crianças, no meu ventre são esperanças de um futuro sem fim.
Acredito na loucura de quem pede mais ternura e vira costas à guerra.
Acredito na fé dos outros que às vezes abrem poços só para encontrar mais terra.
Acredito no Caetano, no Zambujo que é meu mano, em todas as vozes calmas.
Acredito na poesia e também na aletria, em tod’os adoçantes de almas.
Acredito na minha mãe, ela que sofreu bem para que eu fosse como sou.
Crente nos frutos e flores, nos mais impossíveis amores; onde o Sol mais brilhar eu estou.
Eu estou Eu estou Eu estou Eu estou Eu estou
Letra: Celina da Piedade Música: Alex Gaspar Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)
Era não era
[ Era Não Era do Tamanho de um Pardal ]
Era não era Foi deixado ao abandono Num dia quente de Outono No meio de um meloal Era não era Sei lá eu se era ou não era Só sei que os lados da esfera Cortam mais do que um punhal
São mais ou menos Cento e vinte e quatro lados Redondinhos, afiados Do tamanho de um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
Era não era Palmilhei o mar profundo Sem parar um só segundo P’ra apanhar estrelas do céu No meio das nuvens Nadei eu entre os rochedos Cheio de frio e de medos Ao sabor do macaréu
Os macaréus São umas ondas muito altas Da família das pernaltas E maiores do que um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
São mais ou menos Cento e vinte e quatro lados Redondinhos, afiados Do tamanho de um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
Os macaréus São umas ondas muito altas Da família das pernaltas E maiores do que um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
Era não era Diz o nabo p’ra o repolho: “Tu não me franzas o olho Que eu de ti não tenho medo!” Era não era Diz a ameixa p’ra a cenoura: “Vou para Paredes de Coura, Vou partir de manhã cedo”
Uma linda terra Do concelho de Alcobaça Só conhece quem lá passa Junto à tasca do Pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
São mais ou menos Cento e vinte e quatro lados Redondinhos, afiados Do tamanho de um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
Os macaréus São umas ondas muito altas Da família das pernaltas E maiores do que um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
São mais ou menos Cento e vinte e quatro lados Redondinhos, afiados Do tamanho de um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
Os macaréus São umas ondas muito altas Da família das pernaltas E maiores do que um pardal Mas sem as penas Nem as partes comestíveis Nem a caixa dos fusíveis Nem a corda do estendal
Os macaréus…
Letra e música: Carlos Guerreiro Intérprete: Gaiteiros de Lisboa Versão original: Gaiteiros de Lisboa (in CD “Macaréu”, Aduf Edições, 2002; CD “A História”, Uguru, 2017)
Fez sábado quinta-feira
Fez sábado quinta-feira, P’ra lá d’Évora três semanas, Estive dez dias num Verão Nas Américas Romanas.
Embarquei em dois caleiros Na baía de Lisboa; Arribei, fui dar a Goa, Desembarquei em Alenquer; Casei com sete mulheres, Falta uma p’rá primeira; Fui dar à Ilha Terceira, Com três dias numa hora; Abalei e vim-me embora, Fez sábado quinta-feira.
Agarrei nos alforginhos, Pus um pão em quatro enxacas, Na gamela duas vacas E na borracha toucinho; Um açafate com vinho, Trinta metros de banana; Dei passos à americana, Fui passar a Ayamonte; Abalei hoje, cheguei ‘onte’ P’ra lá d’Évora três semanas.
Eu já estive em Erapouca, Numa ocharia empregado; Foi-se um carro carregado Numa abóbora canoca; Um mosquito com um boi na boca Cem léguas em proporção; Atirei-lhe um bofetão Que pelo ar o fez ir; À espera dele cair Estive dez dias num Verão.
Fui soldado, assentei praça No 15 de Sapadores; Maquinista de vapores Na carreira de Alcobaça; Venci o Forte da Graça, Também a Vila de Terena E as províncias arraianas, Venci toda a nobrezia; Bati-me com a Turquia Nas Américas Romanas.
Fez sábado quinta-feira, P’ra lá d’Évora três semanas, Estive dez dias num Verão Nas Américas Romanas.
Letra: Popular Música: José Manuel David Intérprete: Gaiteiros de Lisboa Versão original: Gaiteiros de Lisboa com Luís Espinho e João Paulo Sousa (Adiafa) (in CD “Avis Rara”, d’Eurídice/d’Orfeu Associação Cultural, 2012; CD “A História”, Uguru, 2017)
Lá no adro da igreja
[ Abaladiça ]
Lá no adro da igreja Pára o Chico Pintaínho Pede a Deus que bem proteja Quem lhe der mais um copinho
Tem o filho para Lisboa A mulher já lhe morreu Não lhe anda a vida boa Foi pró vinho que lhe deu
A Isaura é metediça Com um lado reverente Quando pode está na missa Mas diz mal de toda a gente
Pode ser que seja fé Ou que goste do prior Tira bicas no café Bem pingadas sem pudor
Vai mais uma abaladiça Outro dedo de conversa Esta agora pago eu Depois tu e vice-versa Dedilhando a campaniça São dez cordas de saudade À saúde dos que estamos E de quem está na cidade
É na Tasca do João Que a malta vai ao petisco Há tomate, azeite e pão E tremoço por marisco
Ninguém sai desconsolado Por não ter o que comer Bota abaixo um abafado Para a gente se aquecer
Vai mais uma abaladiça…
Letra: José Fialho Gouveia Música: Rogério Charraz Intérprete: Rogério Charraz
Manhã na minha ruela
[ Dia de Folga ]
Intérprete: Ana Moura
Manhã na minha ruela, sol pela janela. O Sr. jeitoso dá tréguas ao berbequim. O galo descansa. Ri-se a criança, Hoje não há birras, a tudo diz que sim. O casal em guerra do segundo andar Fez as pazes, está lá fora a namorar.
Cada dia é um bico d’obra, Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar Baterias. Há razões de sobra Para celebrarmos hoje com um fado que se empolga. É dia de folga!
Sem pressa de ar invencível, saia, saltos, rímel, Vou descer à rua, pode o trânsito parar. O guarda desfruta, a fiscal não multa. Passo e o turista, faz por não atrapalhar. Dona Laura hoje vai ler o jornal. Na cozinha está o esposo de avental.
Cada dia é um bico d’obra Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar Baterias. Há razões de sobra Para celebrarmos hoje com um fado que se empolga. É dia de folga!
Folga de ser-se quem se é E de fazer tudo porque tem que ser. Folga para ao menos uma vez A vida ser como nos apetecer.
Cada dia é um bico d’obra, Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar Baterias. Há razões de sobra Para a tristeza ir de volta e o fado celebrar.
Cada dia é um bico d’obra Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar Baterias. Há razões de sobra Para celebrarmos hoje com um fado que se empolga. É dia de folga!
Este é o fado que se empolga No dia de folga, No dia de folga.
No Império das aves raras
[ Avejão ]
No Império das aves raras Quem não tem penas é Rei; Entre pêgas e araras Os Patos-Bravos são Lei.
A terra dos Patos-Bravos Parece mais um vespeiro: Andam todos à bicada Para chegar ao poleiro.
Por sobre a terra, por sobre o mar O Grande Irmão zela por nós: A sua sombra é protectora, Já vem dos egrégios avós.
Na terra dos papagaios Quem não tem poleiro é pato; Andam todos à bicada Só p’ra ficar no retrato.
No reino das trepadoras O papagaio é Senhor: Mesmo até sem saber ler Qualquer papagaio é Doutor.
Por sobre a terra, por sobre o mar O Grande Irmão zela por nós: A sua sombra é protectora, Já vem dos egrégios avós.
Voar mais alto que os outros, Esse era o sonho do galo: Roubar as asas ao Pégaso E voar como um cavalo.
Mas o galo de ser galo É ter o chão junto à barriga; Para alcançar o poleiro Tem que usar de muita intriga.
Por sobre a terra, por sobre o mar O Grande Irmão zela por nós: A sua sombra é protectora, Já vem dos egrégios avós.
No reino dos voadores Impera a grande anarquia, E a barata voadora Já tem lugar de chefia.
A passarada oprimida Só deseja que isto mude, Mas as aves de rapina Cada vez têm mais saúde.
Por sobre a terra, por sobre o mar O Grande Irmão zela por nós: A sua sombra é protectora, Já vem dos egrégios avós.
Letra e música: Carlos Guerreiro Intérprete: Gaiteiros de Lisboa Versão original: Gaiteiros de Lisboa com Sérgio Godinho & Armando Carvalhêda (in CD “Avis Rara”, d’Eurídice/d’Orfeu Associação Cultural, 2012)
As forças em parada desfilam junto à tribuna de honra que é composta por cinquenta poleiros, onde estão representadas as espécies ornitológicas democraticamente nomeadas pelo marechal Avejão. Desfilam, neste momento, o esquadrão Falcão e o esquadrão Abutre, garantes da paz, da ordem, da liberdade e da segurança. À sua passagem, o marechal Avejão perfila-se no seu poleiro e erguendo a asa direita saúda as tropas em sinal de respeito e gratidão.
Ó Ana, Vem Ver
Ó Ana, vem ver! Ó Ana, vem ver! Há fogo no mar e os peixes a arder! La ri lo lela! Ó Ana, vem ver!
Oh alto e oh alto, oh alto, piu piu! Passarinho novo da mão me fugiu! La ri lo lela, oh alto, piu piu!
Senhora Maria, senhora Maria, O seu galo canta e o meu assobia! La ri lo lela, senhora Maria!
Galo
Oh alto e oh alto, oh alto e oh alto! Quanto mais acima maior é o salto! La ri lo lela, oh alto e oh alto!
Ó Ana, vem ver! Ó Ana, vem ver! Há fogo no mar e os peixes a arder! La ri lo lela! Ó Ana, vem ver!
Senhora Maria, senhora Maria, O seu galo canta e o meu assobia! La ri lo lela, senhora Maria!
Oh alto e oh alto, oh alto, piu piu! Passarinho novo da mão me fugiu! La ri lo lela, oh alto, piu piu!
Eu quero, eu quero, eu quero, eu queria Dormir uma noite contigo, Maria! La ri lo lela, eu quero, eu queria!…
Letra e música: Tradicional (Beira Interior) Intérprete: Real Companhia (in CD “Orgulhosamente Nós!”, Lusogram, 2000)
O Judas teve sarampo
[ Quando Judas Teve Sarampo ]
O Judas teve sarampo, Herodes teve bexigas; Pilatos teve sezões, O Caifás teve lombrigas.
O Judas quando nasceu Foi de uma velha gaiteira, O Diabo foi parteira; Quando Judas rescendeu Foi padrinho um pigmeu Para o livrar do quebranto. A todos causou espanto Tal era a figura horrenda, Mas só o Diabo se lembra E Judas teve sarampo.
O Judas teve sarampo, Herodes teve bexigas; Pilatos teve sezões, O Caifás teve lombrigas.
Letra: Popular (Monte Real, Leiria, Alta Estremadura); adap. Carlos Guerreiro Música: Carlos Guerreiro Intérprete: Gaiteiros de Lisboa Versão original: Gaiteiros de Lisboa (in CD “Macaréu”, Aduf Edições, 2002; CD “A História”, Uguru, 2017)
Quem quer brincar
[ Brincar aos Fados ]
Quem quer brincar a uma nova brincadeira, Que não tem índios, nem polícias, nem ladrões E toda a gente pode brincar à primeira, Basta saber cantarolar duas canções.
Uma vassoura pode ser uma viola, Uma guitarra pode ser feita em cartão: É muito fácil… basta usar tesoura e cola Para dar asas à tua imaginação.
Uma cortina faz de xaile improvisado E num instante nasce um palco no quintal; Até o gato que não quer ser chateado É a plateia que te aplaude no final.
Então tu escolhes um CD… põe-lo baixinho E em ‘karaoke’, em ‘playback’ ou a cantar És a Amália, a Mariza ou a Carminho E vais aos fados… mesmo que seja a brincar.
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Bernardo Lino Teixeira (Fado Ginguinha) Intérprete: Camané (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014) Outra versão: Rodrigo Costa Félix
Subir, Subir
Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir
Mensageiros de Cupido Eu ando deprimido Intercedei por mim ao vosso Deus! Estou de amores com uma catraia Que p’ra subir a saia Exige grandes sacrifícios meus
Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir
Levantei velas à barca Mas a brisa era parca Nem deu para agitar o meu corcel Assim nunca mais te chego A ter no aconchego Tirar-te dessa ilha de papel
Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir
Fiz consulta a feiticeiros E santos padroeiros Deixei bruxeiros de cabeça à toa Findei o consultamento E como rendimento Saíram-me (imaginem!) os Gaiteiros de Lisboa
Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir Subir, subir lnd’ hei-de conseguir Morder-te, ó cachopa, Por dentro do teu vestir
Letra e música: Mário Alves (Vozes da Rádio) Intérprete: Gaiteiros de Lisboa Versão discográfica ao vivo dos Gaiteiros de Lisboa, com Vozes da Rádio (in 2CD “Dançachamas: Ao Vivo”: CD 1, Farol Música, 2000) Versão original: Vozes da Rádio com Gaiteiros de Lisboa (in CD “Mappa do Coração”, Ariola/BMG Portugal, 1997)
Tubarão tinha dentes de tainha
[ Tamboril ]
Tubarão tinha dentes de tainha E a tainha tinha dentes de tambor Toca traz tempo chuva tempestade Tubarão trincou um touro nos taleigos da vontade
Tubarão tinha o tímpano trocado E trocado estava o tempo todo o ano Toca traz tempo chuva tempestade Tubarão tamborilou ‘inda a missa ia a metade
Tubarão traficou-se em tamboril Troca-tintas com retoque teatral Toca terça, quarta, quinta, noite e dia Travestido no Entrudo c’uma tromba de enguia
Tamboril teve tísica ao contrário Já tossia como tosse o tubarão Toca terça, quarta, quinta, noite e dia Tamboril entubarou num atalho p’rá Turquia
Tubarão tinha dentes de tainha E a tainha tinha dentes de tambor Toca traz tempo chuva tempestade Tubarão trincou um touro nos taleigos da vontade
Tubarão tinha o tímpano trocado E trocado estava o tempo todo o ano Toca traz tempo chuva tempestade Tubarão tamborilou ‘inda a missa ia a metade
Tubarão traficou-se em tamboril Troca-tintas com retoque teatral Toca terça, quarta, quinta, noite e dia Travestido no Entrudo c’uma tromba de enguia
Tamboril teve tísica ao contrário Já tossia como tosse o tubarão Toca terça, quarta, quinta, noite e dia Tamboril entubarou num atalho p’rá Turquia
Letra: Miguel Cardina Música: Pedro Damasceno e Celso Bento Arranjo: Diabo a Sete e Julieta Silva Intérprete: Diabo a Sete (in CD “Figura de Gente”, Sons Vadios, 2016)
A minha canção é verde. Sempre de verde a cantei. De verde cantei ao Povo E fui de verde, de verde, Cantar à mesa do Rei.
Tive um amor — triste sina! Amar é perder alguém… Desde então, ficou mais verde Tudo em mim: a voz, o olhar… E o meu coração também!
Deu-me a vida, além do luto, Amor à margem da lei… Amigos são inimigos. — Paga-me! disseram todos. Só eu de verde fiquei.
A minha canção é verde [bis] — Canção à margem da lei… A minha canção é verde, Verde como este poema Que por meu mal te cantei!
A minha canção é verde, Verde, verde, verde, verde… Mas… porque é verde? — Não sei…
Poema: Pedro Homem de Mello (adaptado) Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “O Riso Que me Deste”, RCA Victor, 1967; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
A noite caiu
[ Poema da Utopia ]
A noite caiu sem manchas e sem culpa. Os homens largaram as máscaras de bons actores. Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde. No alto, a utópica Lua vela comigo E sonha coalhar de branco as sombras do mundo. Um palhaço, a seu lado, sopra no ventre dos búzios. Noite! se o espectáculo findou Deixa-nos também dormir.
Poema: Fernando Namora (in “Relevos”, Coimbra: Portugália, 1937; “As Frias Madrugadas”, Lisboa: Arcádia, 1959, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997 – p. 50) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
A Voz Que Eu Tenho
A voz que eu tenho, como pensamento, Veio de longe, devagar e triste; Veio rasando os areais do vento Onde a palavra amor ainda existe.
Respirou com o povo as madrugadas, Soube do mar e foi beber o mar; E gritou no silêncio das estradas A solidão que eu tenho p’ra vos dar.
Cresce-me a voz nesta prisão do encanto, Com a amizade que me faz viver; E sem saber se me entendeis, eu canto A presença do amor e a dor de o ter.
Poema: Vasco de Lima Couto Música: Júlio Proença (Fado Esmeraldinha) Intérprete: Carlos do Carmo (in LP “Carlos do Carmo”, Tecla, 1970, reed. Edisom, 1984, Movieplay, 2003, Série “Carlos do Carmo 50 Anos”, Vol. 01, Universal Music, 2013)
CANÇÃO VERDE
(Pedro Homem de Mello, in “Adeus”, Porto, 1951 p. 25-27; “Poesias Escolhidas”, col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: IN-CM, 1983 – p. 131-132)
A minha canção é verde. Sempre de verde a cantei. De verde cantei ao Povo E fui de verde vestido Cantar à mesa do Rei.
Porque foi verde o meu canto? Porque foi verde? — Não sei…
Verde, verde, verde, verde, Verde, verde, em vão, cantei! — Lindo moço! — disse o Povo. — Verde moço! — disse El-Rei.
Porque me chamaram verde? Porque foi? Porquê? — Não sei…
Tive um amor — triste sina! Amar é perder alguém… Desde então, ficou mais verde Tudo em mim: a voz, o olhar, Cada passo, cada beijo… E o meu coração também!
Coração! Porque és tão verde? Porque és verde assim também?
Deu-me a vida, além do luto, Amor à margem da lei… Amigos são inimigos. — Paga-me! disseram todos. Só eu de verde fiquei.
Porque fiquei eu de verde? Porque foi isto? — Não sei…
A minha canção é verde — Canção à margem da lei… Verde, ingénua, verde e moça, Como a voz deste poema Que por meu mal vos cantei!
A minha canção é verde, Verde, verde, verde, verde… Mas… porque é verde? — Não sei…
Ai Flores do Verde Pino
(cantiga de amigo)
– Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo?
Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi há jurado? Ai Deus, e u é?
– Vós me preguntades polo voss’amigo? Eu bem vos digo que é san’e vivo. Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss’amado? Eu bem vos digo que é vivo e sano. Ai Deus, e u é?
Eu bem vos digo que é san’e vivo e seerá vosc’ant’o prazo saído.
Eu bem vos digo que é vivo e sano e seerá vosc’ant’o prazo passado. Ai Deus, e u é?
Eu bem vos digo que é san’e vivo e seerá vosc’ant’o prazo saído.
Eu bem vos digo que é vivo e sano e seerá vosc’ant’o prazo passado. Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde pino…
Poema: D. Dinis (ligeiramente adaptado) Música: Helena de Alfonso e Jose Lara Gruñeiro Arranjo: Paulo Loureiro Intérprete: Ana Laíns (in CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017) Versão original: Barahúnda / voz de Helena de Alfonso (in CD “Al Sol de la Hierba”, Nufolk/GalileoMC, 2002)
D. Dinis
Ai flores, ai flores do verde pino
(D. Dinis, 1261-1325, in “cancioneiro da Biblioteca Nacional”, B 568; “cancioneiro da Vaticana”, V 171)
– Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs conmigo? Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi há jurado? Ai Deus, e u é?
– Vós me preguntades polo voss’amigo e eu ben vos digo que é san’e vivo. Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss’amado e eu ben vos digo que é viv’e sano. Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san’e vivo e seerá vosc’ant’o prazo saído. Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv’e sano e seerá vosc’ant’o prazo passado. Ai Deus, e u é?
Glossário:
– pino: pinheiro. – sabedes: sabeis. – novas: notícias. – Ai Deus, e u é?: Ai Deus, e onde está? – do que pôs comigo: sobre aquilo que combinou comigo (o encontro sob os pinheiros). – sano: são, saudável. – seerá vosc’ant’o prazo saído: estará convosco antes de terminar o prazo.
Anda o Sol na minha rua
Anda o Sol na minha rua, Cada vez até mais tarde, A ver se pergunta à Lua A razão por que não arde.
Tanto quer saber porquê, Mas depois fica calado; E nunca ninguém os vê Andarem de braço dado.
Se me persegues de dia, Se à noite sempre me deixas, Não digas que é fantasia A razão das minhas queixas.
Só andas enciumado Quando eu não te apareço, Mas se me tens a teu lado Nem ciúmes te mereço!
Anda o Sol na minha rua, Cada vez até mais tarde, A ver se pergunta à Lua A razão por que não arde.
Letra: David Mourão-Ferreira Música: José Fontes Rocha Intérprete: Joana Amendoeira (in CD “Amor Mais Perfeito: Tributo a José Fontes Rocha”, CNM, 2012) Primeira versão (com música de José Fontes Rocha): Amália Rodrigues (in EP “Ai Chico, Chico”, Columbia/VC, 1969; LP “Anda o Sol na Minha Rua” (compilação), Valentim de Carvalho, 1977; CD “Ai Chico, Chico” (compilação), col. Caravela, EMI-VC, 1996; 2CD “O Melhor de Amália”: vol. III – “Fado da Saudade”: CD 1, EMI-VC, 2003; CD “Amália Canta David”, Edições Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011) Versão original (com música de Joaquim Campos): Mercês da Cunha Rego (in EP “Mercês da Cunha Rego (Fado dos Ninhos)”, Áquila, 1968; CD “Mercês da Cunha Rego [e] Teresa Siqueira”, col. Fados do Fado, vol. 49, Movieplay, 1998)
David Mourão-Ferreira
Antes que o Inverno chegue
[ Canto Tardio ]
Antes que o Inverno chegue volto a ser cigarra. Canto. Da laboriosa agonia me liberto e exalto. Canto sem cessar o tempo temendo e saboreando o tempo, galo da aurora que não tem tempo de acordar dormindo De celeiro vazio, canto, surdo aos lobos e aos ratos que esgadanham o restolho. Canto no Outono, que é oiro velho e um rosto rugoso e macio. Canto só porque é tarde para o canto e a cantar adio o que tarde veio. Cantando abro-me às formigas e ofereço-lhes o indigesto banquete para que a morrer cantando me devorem vivo.
Fernando Namora
Poema: Fernando Namora (in “Marketing”, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1969, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997 – p. 99) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
[ Poema Destinado a Haver Domingo ]
Bastam-me as cinco pontas de uma estrela E a cor de um navio em movimento. E como ave, ficar parada a vê-la. E como flor, qualquer odor no vento.
Basta-me a lua ter aqui deixado Um luminoso fio de cabelo Para levar o céu todo enrolado Na discreta ambição do meu novelo.
Só há espigas a crescer comigo Numa seara p’ra passear a pé Essa distância achada p’lo trigo Que me dá só o pão daquilo que é.
Deixem ao dia a cama num domingo Para deitar um lírio que lhe sobre. E a tarde cor-de-rosa num flamingo Seja o tecto da casa que me cobre.
Baste o que o tempo traz na sua anilha Como uma rosa traz Abril no seio. E que o mar dê o fruto duma ilha Onde o Amor por fim tenha recreio.
Só há espigas a crescer comigo Numa seara p’ra passear a pé Essa distância achada p’lo trigo Que me dá só o pão daquilo que é.
Daquilo que é. Daquilo que é. Daquilo que é.
Poema: Natália Correia (ligeiramente adaptado) Música: Aníbal Raposo Intérprete: Musica Nostra* (in CD “Cantos da Terra”, Açor/Emiliano Toste, 2009) Versão original: Aníbal Raposo (in CD “Maré Cheia”, MM Music, 1999)
POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO
(Natália Correia, in “Passaporte”, Lisboa: Edição da autora, 1958; “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I”, Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 205; “Poesia Completa”, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 153-154)
Bastam-me as cinco pontas duma estrela E a cor dum navio em movimento. E como ave, ficar parada a vê-la. E como flor, qualquer odor no vento.
Basta-me a lua ter aqui deixado Um luminoso fio do cabelo Para levar o céu todo enrolado Na discreta ambição do meu novelo.
Só há espigas a crescer comigo Numa seara para passear a pé Esta distância achada pelo trigo Que me dá só o pão daquilo que é.
Deixem ao dia a cama dum domingo Para deitar um lírio que lhe sobre. E a tarde cor-de-rosa num flamingo Seja o tecto da casa que me cobre.
Baste o que o tempo traz na sua anilha Como uma rosa traz Abril no seio. E que o mar dê o fruto duma ilha Onde o Amor por fim tenha recreio.
Bóiam leves, desatentos
[ Vestígios ]
Bóiam leves, desatentos, Meus pensamentos de mágoa Como, no sono dos ventos, As algas, cabelos lentos Do corpo morto das águas.
À tona d’águas paradas, Bóiam como folhas mortas. São coisas pedindo nadas, São pós que dançam nas portas Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio, Vestígio do que não foi, Leve mágoa, breve tédio, Não sei se pára, se flui; Não sei se existe ou se dói.
Poema: Fernando Pessoa (adaptado) Música: Joaquim Campos (Fado Tango) Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)
Bóiam leves, desatentos
(Fernando Pessoa, 4-8-1930, “Poesias de Fernando Pessoa”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 15.ª edição, 1995 – p. 120-121)
Bóiam leves, desatentos, Meus pensamentos de mágoa Como, no sono dos ventos, As algas, cabelos lentos Do corpo morto das águas.
Bóiam como folhas mortas À tona de águas paradas. São coisas vestindo nadas, Pós remoinhando nas portas Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio, Vestígio do que não foi, Leve mágoa, breve tédio, Não sei se pára, se flui; Não sei se existe ou se dói.
Dia Não
De paisagens mentirosas De luar e alvoradas De perfumes e de rosas De vertigens disfarçadas
Que o poema se desnude De tais roupas emprestadas Seja seco, seja rude Como pedras calcinadas
Que não fale em coração Nem de coisas delicadas Que diga não quando não Que não finja mascaradas
De vergonha se recolha Se as faces tiver molhadas Para seus gritos escolha As orelhas mais tapadas
E quando falar de mim Em palavras amargadas Que o poema seja assim Portas e ruas fechadas
Ah! que saudades do sim Nestas quadras desoladas!
Poema: José Saramago (in “Os Poemas Possíveis”, Lisboa: Portugália Editora, 1966 – p. 24-25) Música: Luís Cília Intérprete: Luís Cília (in LP “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1”, Moshé-Naïm, 1967; CD “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours”, EMEN, 1996)
Versão de Manuel Freire
Poema: José Saramago (in “Os Poemas Possíveis”, Lisboa: Portugália Editora, 1966 – p. 24-25) Música: Luís Cília Intérprete: Manuel Freire (in LP “Devolta”, Diapasão/Lamiré, 1978)
José Saramago, escritor e poeta
Do cardo que carda a gente
[ Cantilena ]
Do cardo que carda a gente nele se vê a roupa pouca corpo tosco tosca terra nele se escuta a voz ausente
Da água que fura a pedra vão lamento gasto tempo dura água que vai dentro do mais oculto da serra
Da saliva que o mar bebe sonho leve ondas tontas luas ocas que nos seguem na palidez das lucernas
Do povo que pesa os ares asas vagas bater de asas sono ébrio que braveja no crepitar das miragens
Na mão que enxuga a dor morre a ira cansa a fera da semente que diz não iça a torre seca a hera
Povo povo quem te chama tem a espora no dizer cada quimera esvaída no deserto vai morrer
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 165-166) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Dolente
[ Música na Praia ]
Dolente indolente no mar indo no mar vindo na espuma se abrindo espreguiçada dolente toada brasileira que dorme desperta indo e vindo vindo e indo que acorda sonhando dormindo gemendo espreguiçada na areia melopeia brasileira voz quente na praia ensonada no mar bocejando voz quente quebrando quebrando cansada de ir morrendo mas tão viva sendo na praia extasiada
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 154-155) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia* (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Dos meus poetas
[ Aos Meus Poetas ]
Dos meus poetas recebo a alma em cada palavra.
Suspenso, o vocábulo espera; a respiração trémula solta um ciciar inseguro anunciando o mistério da melodia.
Dos meus poetas recebo a alma em cada palavra.
Música, alimento de música (os meus poetas) atingem em cheio o que de mais oculto cegamente procuro numa íntima busca…
Música, alimento de música (os meus poetas) atingem em cheio o que de mais oculto cegamente procuro numa íntima busca deliciosamente eterna…
Poema e música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa) Versão original: Janita Salomé com Catarina Molder (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)
Eis a que tudo deu
[ Mariana ]
Poema: Manuel Alegre Música: João Braga Voz: Maria Ana Bobone
Esta gente
Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre
Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome
E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada
Meu canto se renova E recomeço a busca Dum país liberto Duma vida limpa E dum tempo justo
Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre
Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome
Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome
Poema: Sophia de Mello Breyner Andresen (adaptado) Música: Manuel Lima Brummon Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
Sophia de Mello Breyner
Esta gente
(Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Geografia”: II – “Procelária”, Lisboa: Edições Ática, 1967; “Obra Poética”, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015 – p. 508)
Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre
Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome
E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada
Meu canto se renova E recomeço a busca Dum país liberto Duma vida limpa E dum tempo justo
Homem que vês humanas desventuras
[ Soneto XIV ]
Homem que vês humanas desventuras, Que te prendes à vida e te enamoras, Que tudo sabes e que tudo ignoras, Vencido herói de todas as loucuras;
Que te debruças pálido nas horas Das tuas infinitas amarguras — E na ambição das coisas mais impuras És grande simplesmente quando choras;
Que prometes cumprir e que te esqueces, Que te dás à virtude e ao pecado, Que te exaltas e cantas e aborreces,
Arquitecto do sonho e da ilusão, Ridículo fantoche articulado — Eu sou teu camarada e teu irmão. [bis]
Poema: António Botto (com o primeiro verso modificado) Música: Fernando Guerra Arranjo e orquestração: Jorge Costa Pinto Intérprete: Carlos do Carmo* (in LP “Carlos do Carmo”, Tecla, 1972; LP “Canoas do Tejo”, Edisom, 1984, reed. Movieplay, 1992, 1998, Universal Music, Série ’50 Anos’, 2013)
António Botto
Horizonte
[ Estio ]
Horizonte todo de roda caiado de sol. Ao meio do cerro gretado esguia cabeça de cobra olha assobios de lume sobre espigas amarelas… (…Campaniços degredados na vastidão das searas sonham bilhas de água fria!…)
Poema: Manuel da Fonseca (in “Planície”, Coimbra: Novo cancioneiro, 1941; “Poemas Completos”, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 3.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1969 – p. 97; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 5.ª edição, Lisboa: Forja, 1975 – p. 108; “Obra Poética”, pref. Mário Dionísio, Lisboa: Editorial Caminho, 1984 – p. 113) Música: Paulo Ribeiro Intérprete: Fernando Pardal (in CD “O Céu Como Tecto e o Vento Como Lençóis”, de Paulo Ribeiro, Açor/Emiliano Toste, 2017)
Já Bocage não és
[ Bocage ]
Já Bocage não és, nem podes ser, a alma do que foste é um soneto português até no jeito de sofrer transformando a mágoa em doce afecto.
Animaste as tertúlias lisboetas com as rimas do ciúme mitigado engrandecendo a fama dos poetas à custa da tristeza do teu fado.
Sadino, alfacinha e do mundo, poeta do assombro de uma escrita que levou o desespero até ao fundo.
Já Bocage não és, nem podes ser, a alma do que foste é um soneto português até no jeito de sofrer transformando a mágoa em doce afecto.
Sadino, alfacinha e do mundo, poeta do assombro de uma escrita que levou o desespero até ao fundo.
Bocage deste sonho que se agita revelando o que tem de mais profundo por saber que só alma é infinita.
Poema: José Jorge Letria Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa) Versão original: Janita Salomé (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)
Meu pai tinha sandálias de vento
[ Um Segredo ]
Meu pai tinha sandálias de vento só agora o sei. Tinha sandálias de vento e isto nem sequer é uma maneira de dizer andava por longe os olhos fugidos a expressão em nenhures com as miraculosas instantaneidades que nos fazem estar em todos os sítios.
Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando mas toda a sua ausência era o malogro de o ser só agora o sei. Andava por longe ou sentíamo-lo longe vem dar no mesmo e no entanto víamo-lo sempre ali plantado de imobilidade absorta no cepo de carvalho raiado de negro a que o caruncho comera o miolo como as lagartas esvaziam as maçãs estranhamente quieto murcho resignado no seu estranho vadiar os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói como um apelo perdido uma coragem abortada. Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso tingida ausência era altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste tristeza sim tristeza solene e irremediada só agora o sei.
Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares sulco azul que nada distingue do azul onde foi sulcado e por isso nem é águia nem ao menos o que do seu voo resta para que o sonho se faça real. Meu pai era um homem com as nostalgias do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a víscera como as tais lagartas esfarelam as maçãs e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias miraculosamente leves soltas imaginosas indo de acaso em acaso de astro em astro eram de vento as suas sandálias fabulosas levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.
Os outros não o sabiam nem eu o sabia só o víamos sentado no cepo velho raiado de negro como uma estrela fossilizada por isso tudo era para ele mais irremediável e triste sei-o agora tarde de mais tarde de mais é uma dor de remorso que me consome víscera a víscera como as tais lagartas esfarelam as maçãs. Mas de qualquer maneira existe um segredo de que ambos partilhamos ciosamente avaramente indecifradamente como os astutos conspiradores que fazem do seu segredo um mágico tesouro inviolado.
Um segredo simples: o que sentiste pai sinto-o eu agora por ambos sinto-o por ti sinto-o por mim.
Ainda que por ele devorados.
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 16-18) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Não Sei Quantas Almas Tenho
Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem, Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser O que segue prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: «Fui eu?» Deus sabe, porque o escreveu.
Poema: Fernando Pessoa (ligeiramente adaptado) Música e arranjo: Paulo Loureiro Intérprete: Ana Laíns (in CD “Fernando Pessoa: O Fado e a Alma Portuguesa”, Seven Muses/Warner Music, 2013; CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017) Versão original: Ana Laíns (in Livro/CD “Os Mensageiros: Antologia de Fernando Pessoa”, Seven Muses, 2012)
Os Mensageiros, Antologia de Fernando Pessoa
Não sei quantas almas tenho
Fernando Pessoa, in “Novas Poesias Inéditas de Fernando Pessoa”, direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. X, Lisboa: Edições Ática, 1973, 4.ª edição, Lisboa: Edições Ática, 1993 – p. 48
Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem, Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser O que segue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: «Fui eu?» Deus sabe, porque o escreveu.
24-8-1930
No amor também as palavras
[ Também as Palavras ]
No amor também as palavras são necessárias. Os gestos talvez não bastem. Nem a chuva lá fora enquanto o amor se inflama. Nem o sussurro nas árvores quando os corpos serenam. Nem a melopeia das águas quando as bocas se esmagam. Nem o fulgor dos olhos quando a paixão se amotina.
Penso no amor e logo invento palavras e logo as palavras se põem ébrias. Penso no amor e logo as palavras se soltam como fogosas aves a que não pergunto o rumo.
Penso no amor e logo preciso que as palavras digam que amor é este em que penso e em que grito.
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 79) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia* (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
O coração de poeta
[ Canção de Embalo para as Virgens dos Portos ]
O coração de poeta é oiro estilhaçado que vai semeando no seu caminho. Oiro caído é oiro perdido que o poeta não volta para o regar. Vão acenar-lhe da largada como se ele partisse para o cabo do mundo, que o horizonte é largo e o mar é fundo e ele não tornará. Ondas vencidas são ondas perdidas que o poeta só tem saudades do que virá.
Em cada praia chegada há luzes festivas na areia: a voz de mel do poeta triste é canto feiticeiro de sereia. Canta, canta, que a tua voz magoada tenha a tristeza do bem perdido dos sonhos azuis que o embalaram. Ai! que dos olhos da barca se vêem estrelas a brilhar. Canta, canta, para o tesoiro perdido que a esperança lá irá naufragar.
Nem a noite nem o dia o trarão consigo: o horizonte é largo e o mar é fundo, há outras paragens, no cabo do mundo, para ele descobrir e enfeitiçar.
Poema: Fernando Namora (in “Mar de Sargaços, Coimbra: Atlântida, 1939; “As Frias Madrugadas”, Lisboa: Arcádia, 1959, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997 – p. 132-133) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Quando chegaste enfim
[ Tarde Demais ]
Poema: Florbela Espanca Música: Loic da Silva Intérprete: Sandra Correia
Quem cantará
[ Regresso ]
Quem cantará vosso regresso morto? Que lágrimas, que grito hão-de dizer A desilusão e o peso em vosso corpo?
Portugal tão cansado de morrer Ininterruptamente e devagar Enquanto o vento vivo vem do mar.
Quem são os vencedores desta agonia? Quem os senhores sombrios desta noite Onde se perde, morre e se desvia A antiga linha clara e criadora Do nosso rosto voltado para o dia?
Quem cantará vosso regresso morto? Que lágrimas, que grito hão-de dizer A desilusão e o peso em vosso corpo?
Portugal tão cansado de morrer Ininterruptamente e devagar Enquanto o vento vivo vem do mar.
Poema: Sophia de Mello Breyner Andresen (adaptado) Música: Manuel Lima Brummon Intérprete: Tereza Tarouca* (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)
Tereza Tarouca, Álbum de Recordações
Regresso
Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Mar Novo”, Lisboa: Guimarães Editores, 1958; “Obra Poética”, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015 – p. 394-395
Quem cantará vosso regresso morto Que lágrimas, que grito hão-de dizer A desilusão e o peso em vosso corpo?
Portugal tão cansado de morrer Ininterruptamente e devagar Enquanto o vento vivo vem do mar
Quem são os vencedores desta agonia? Quem os senhores sombrios desta noite Onde se perde morre e se desvia A antiga linha clara e criadora Do nosso rosto voltado para o dia?
Resina
[ Líricas ]
Resina urze vento: a infância. Nas narinas o suor dos gados no tapete de estrume das quelhas: a distância. Nuvem inconstante dependurada do lamento dos sinos: a ausência. Casco e pedras na marcha ensonada dos bois longínquos colinas brandas na pura luz saturada de moitas diluvianas inconstante nuvem no abandono de um momento: oh paisagem dentro dos olhos vagabundos oh paisagem esbatida na sépia dos retratos de antigamente.
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984 – p. 13-14, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 11-12) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Fernando Namora
Se me Levam Águas
MOTE ALHEIO
Se me levam águas, nos olhos as levo.
VOLTAS
Se de saudade morrerei ou não, meus olhos dirão de mim a verdade. Por eles me atrevo a lançar as águas que mostrem as mágoas que nesta alma levo.
As águas que em vão me fazem chorar, se elas são do mar estas de amor são. Por elas relevo todas minhas mágoas; que, se força de águas me leva, eu as levo.
Todas me entristecem, todas são salgadas; porém as choradas doces me parecem. Correi, doces águas, que, se em vós me enlevo, não doem as mágoas que no peito levo.
Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in “Rimas”, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; “Obras de Luís de Camões”, Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 772-773) Música: Luís Cília Intérprete: Luís Cília (in LP “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1”, Moshé-Naïm, 1967; CD “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours”, EMEN, 1996)
CANÇÃO X
Poema de Luís de Camões (in “Rimas”, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; “Rimas”, texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, Coimbra: Livraria Almedina, 2005) Dito por Luís Miguel Cintra* (in CD “Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra”, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, reed. Livro/CD, Presente, 2011)
Vinde cá, meu tão certo secretário dos queixumes que sempre ando fazendo, papel, com que a pena desafogo! As sem-razões digamos que, vivendo, me faz o inexorável e contrário Destino, surdo a lágrimas e a rogo. Deitemos água pouca em muito fogo; acenda-se com gritos um tormento que a todas as memórias seja estranho. Digamos mal tamanho a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento, a quem já muitas vezes o contei, tanto debalde como o conto agora; mas, já que para errores fui nacido, vir este a ser um deles não duvido. Que, pois já de acertar estou tão fora, não me culpem também, se nisto errei. Sequer este refúgio só terei: falar e errar sem culpa, livremente. Triste quem de tão pouco está contente!
Já me desenganei que de queixar-me não se alcança remédio; mas quem pena, forçado lhe é gritar se a dor é grande. Gritarei; mas é débil e pequena a voz para poder desabafar-me, porque nem com gritar a dor se abrande. Quem me dará sequer que fora mande lágrimas e suspiros infinitos iguais ao mal que dentro n’alma mora? Mas quem pode algũa hora medir o mal com lágrimas ou gritos? Enfim, direi aquilo que me ensinam a ira, a mágoa, e delas a lembrança, que é outra dor por si, mais dura e firme. Chegai, desesperados, para ouvir-me, e fujam os que vivem de esperança ou aqueles que nela se imaginam, porque Amor e Fortuna determinam de lhe darem poder para entenderem, à medida dos males que tiverem.
Quando vim da materna sepultura de novo ao mundo, logo me fizeram Estrelas infelices obrigado; com ter livre alvedrio, mo não deram, que eu conheci mil vezes na ventura o melhor, e o pior segui, forçado. E, para que o tormento conformado me dessem com a idade, quando abrisse inda menino, os olhos, brandamente, mandam que, diligente, um Menino sem olhos me ferisse. As lágrimas da infância já manavam com ũa saudade namorada: o som dos gritos, que no berço dava, já como de suspiros me soava. Co a idade e Fado estava concertado; porque quando, por caso, me embalavam, se versos de Amor tristes me cantavam, logo me adormecia a natureza, que tão conforme estava co a tristeza.
Foi minha ama ũa fera, que o destino não quis que mulher fosse a que tivesse tal nome para mim; nem a haveria. Assi criado fui, porque bebesse o veneno amoroso, de menino, que na maior idade beberia, e, por costume, não me mataria. Logo então vi a imagem e semelhança daquela humana fera tão fermosa, suave e venenosa, que me criou aos peitos da esperança; de que eu vi despois o original, que de todos os grandes desatinos faz a culpa soberba e soberana. Parece-me que tinha forma humana, mas cintilava espíritos divinos. Um meneio e presença tinha tal que se vangloriava todo o mal na vista dela; a sombra, co a viveza, excedia o poder da Natureza.
Não sei como sabia estar roubando cos raios das entranhas, que fugiam por ela, pelos olhos sutilmente! Pouco a pouco invencíveis me saíam, bem como do véu húmido exalando está o sutil humor o Sol ardente. Enfim, o gesto puro e transparente, para quem fica baixo e sem valia deste nome de belo e de fermoso; o doce e piadoso mover de olhos, que as almas suspendia foram as ervas mágicas, que o Céu me fez beber; as quais, por longos anos, noutro ser me tiveram transformado, e tão contente de me ver trocado que as mágoas enganava cos enganos; e diante dos olhos punha o véu que me encobrisse o mal, que assi creceu, como quem com afagos se criava daquele para quem crecido estava.
Que género tão novo de tormento teve Amor, que não fosse, não somente provado em mim, mas todo executado? Implacáveis durezas, que o fervente desejo, que dá força ao pensamento, tinham de seu propósito abalado, e de se ver, corrido e injuriado; aqui, sombras fantásticas, trazidas de algũas temerárias esperanças; as bem-aventuranças nelas também pintadas e fingidas; mas a dor do desprezo recebido, que a fantasia me desatinava, estes enganos punha em desconcerto; aqui, o adevinhar e o ter por certo que era verdade quanto adevinhava, e logo o desdizer-se, de corrido; dar às cousas que via outro sentido, e para tudo, enfim, buscar razões; mas eram muitas mais as sem-razões.
Pois quem pode pintar a vida ausente, com um descontentar-me quanto via, e aquele estar tão longe donde estava; o falar, sem saber o que dezia; andar, sem ver por onde, e juntamente suspirar sem saber que suspirava? Pois quando aquele mal me atormentava e aquela dor que das Tartáreas águas saiu ao mundo, e mais que todas dói, que tantas vezes soe duras iras tornar em brandas mágoas; agora, co furor da mágoa irado, querer e não querer deixar de amar, e mudar noutra parte por vingança o desejo privado de esperança, que tão mal se podia já mudar; agora, a saudade do passado tormento, puro, doce e magoado, fazia converter estes furores em magoadas lágrimas de amores.
Que desculpas comigo que buscava quando o suave Amor me não sofria culpa na cousa amada, e tão amada! Enfim, eram remédios que fingia o medo do tormento que ensinava a vida a sustentar-se, de enganada. Nisto ũa parte dela foi passada, na qual se tive algum contentamento breve, imperfeito, tímido, indecente, não foi senão semente de longo e amaríssimo tormento. Este curso contino de tristeza, estes passos tão vãmente espalhados, me foram apagando o ardente gosto que tão de siso n’alma tinha posto, daqueles pensamentos namorados em que eu criei a tenra natureza, que do longo costume da aspereza, contra quem força humana não resiste, se converteu no gosto de ser triste.
Dest’arte a vida noutra fui trocando; eu não, mas o destino fero, irado, que eu ainda assi por outra não trocara. Fez-me deixar o pátrio ninho amado, passando o longo mar, que ameaçando tantas vezes me esteve a vida cara. Agora, exprimentando a fúria rara de Marte, que cos olhos quis que logo visse e tocasse o acerbo fruto seu (e neste escudo meu a pintura verão do infesto fogo); agora, peregrino vago e errante, vendo nações, linguagens e costumes, Céus vários, qualidades diferentes, só por seguir com passos diligentes a ti, Fortuna injusta, que consumes as idades, levando-lhe diante ũa esperança em vista de diamante, mas quando das mãos cai se conhece que é frágil vidro aquilo que aparece.
A piadade humana me faltava, a gente amiga já contrária via, no primeiro perigo; e, no segundo, terra em que pôr os pés me falecia, ar para respirar se me negava, e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo. Que segredo tão árduo e tão profundo: nacer para viver, e para a vida faltar-me quanto o mundo tem para ela! E não poder perdê-la, estando tantas vezes já perdida! Enfim, não houve transe de fortuna, nem perigos, nem casos duvidosos, injustiças daqueles, que o confuso regimento do mundo, antigo abuso, faz sobre os outros homens poderosos, que eu não passasse, atado à grã coluna do sofrimento meu, que a importuna perseguição de males em pedaços mil vezes fez, à força de seus braços.
Não conto tanto males como aquele que, despois da tormenta procelosa, os casos dela conta em porto ledo; que inda agora a Fortuna flutuosa a tamanhas misérias me compele, que de dar um só passo tenho medo. Já de mal que me venha não me arredo, nem bem que me faleça já pretendo, que para mim não vale astúcia humana; de força soberana, da Providência, enfim, divina, pendo. Isto que cuido e vejo, às vezes tomo para consolação de tantos danos. Mas a fraqueza humana, quando lança os olhos no que corre, e não alcança senão memória dos passados anos, as águas que então bebo, e o pão que como, lágrimas tristes são, que eu nunca domo senão com fabricar na fantasia fantásticas pinturas de alegria.
Que se possível fosse, que tornasse o tempo para trás, como a memória, pelos vestígios da primeira idade, e de novo tecendo a antiga história de meus doces errores, me levasse pelas flores que vi da mocidade; e a lembrança da longa saudade então fosse maior contentamento, vendo a conversação leda e suave, onde ũa e outra chave esteve de meu novo pensamento, os campos, as passadas, os sinais, a fermosura, os olhos, a brandura, a graça, a mansidão, a cortesia, a sincera amizade, que desvia toda a baixa tenção, terrena, impura, como a qual outra algũa não vi mais… Ah! vãs memórias, onde me levais o fraco coração, que ainda não posso domar este tão vão desejo vosso?
Nõ mais, Canção, nõ mais; que irei falando, sem o sentir, mil anos. E se acaso te culparem de larga e de pesada, não pode ser (lhe dize) limitada a água do mar em tão pequeno vaso. Nem eu delicadezas vou cantando co gosto do louvor, mas explicando puras verdades já por mim passadas. Oxalá foram fábulas sonhadas!
Gravado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa, por Vasco Pimentel, em 1995 Pós-produzido no Estúdio Grande Som, Lisboa
Se olhas a distância
[ Se o Coração Não Cansa ]
Se olhas a distância talvez julgues que é tarde e que a rosa se deixou abrir até ser calafrio e que tudo é o vazio sem números nas portas onde pernoitar de tanta viagem.
Olharás a neve que apagou as horas e os passos e a palidez dos espelhos devorando o silêncio e o crescer da relva na memória dos longes coados. A sombra da cinza é orvalho e nele os remos não avançam no vento fatigado. Resignado te olhas fundindo os portos e as lendas onde a infância gela na remota espera de ser desatino. Mas não de todas as vezes diz não para que o tempo se desprenda nas velas magras.
Se o coração não cansa nada é tarde nada.
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 106-107) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Sorrindo interiormente
[ Porque o Melhor ]
Sorrindo interiormente, co’as pálpebras cerradas, às águas da torrente já tão longe passadas.
Rixas, tumultos, lutas, não me fazerem dano… alheio às vãs labutas, às estações do ano.
Passar o estio, o outono, a poda, a cava e a redra, e eu dormindo um sono debaixo duma pedra.
Porque o melhor, enfim, é não ouvir. Porque o melhor é não ouvir nem ver, passarem sobre mim e nada me doer.
Melhor até se o acaso o leito me reserva no prado extenso e raso apenas sob a erva.
Ou no serrano mato, a brigas tão propício, onde o viver ingrato dispõe ao sacrifício.
Porque o melhor, enfim, é não ouvir. Porque o melhor é não ouvir nem ver, passarem sobre mim e nada me doer.
Roubos, assassinatos! horas jamais tranquilas, em brutos pugilatos fracturam-se as maxilas…
E eu sob a terra firme, compacta, recalcada, muito quietinho, a rir-me de não me doer nada.
Porque o melhor, enfim, é não ouvir. Porque o melhor é não ouvir nem ver, passarem sobre mim e nada me doer.
Porque o melhor, enfim, é não ouvir. Porque o melhor é não ouvir nem ver, passarem sobre mim e nada me doer.
Poema: Camilo Pessanha (excerto adaptado) Música: José Barros Arranjo: José Barros e Miguel Tapadas Intérprete: José Barros e Navegante Versão original: José Barros e Navegante (in CD “À’Baladiça”, Tradisom, 2018)
Tinhas a serena grandeza desse mar
[ Sophia ]
Tinhas a serena grandeza desse mar que em verso se tornava sinfonia, rumor de búzio e brancura de coral celebrando cada instante de alegria.
Tinhas da palavra a medida sempre exacta, a mais certa, a mais justa, a mais perfeita e eram de oiro e âmbar e de prata os versos que nasciam dessa colheita.
Tinhas a serena grandeza desse mar que em verso se tornava sinfonia, rumor de búzio e brancura de coral celebrando cada instante de alegria.
Tinhas da palavra a medida sempre exacta, a mais certa, a mais justa, a mais perfeita e eram de oiro e âmbar e de prata os versos que nasciam dessa colheita.
Tinhas a leveza da onda e da ave e a claridade matinal que anuncia em cada verso o timbre e a chave desse mistério chamado poesia.
Tinhas a altiva grandeza do que fica na memória do que somos e valemos e a ciência que do verbo faz a casa da beleza a que todos nos rendemos.
Tinhas a leveza da onda e da ave e a claridade matinal que anuncia em cada verso o timbre e a chave desse mistério chamado poesia.
Tinhas a altiva grandeza do que fica na memória do que somos e valemos e a ciência que do verbo faz a casa da beleza a que todos nos rendemos.
Tinhas a leveza da onda e da ave e a claridade matinal…
Poema: José Jorge Letria Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa) Versão original: Janita Salomé (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)
Todo o amor que nos prendera
[ Primavera ]
Todo o amor que nos prendera, como se fora de cera, se quebrava e desfazia. Ai funesta Primavera, quem me dera, quem nos dera ter morrido nesse dia!
E condenaram-me a tanto: viver comigo o meu pranto, viver, viver… e sem ti! Vivendo sem, no entanto, eu me esquecer desse encanto que nesse dia perdi…
Pão duro da solidão é somente o que nos dão, o que nos dão a comer… Que importa que o coração diga que sim ou que não, se continua a viver?
Todo o amor que nos prendera se quebrara e desfizera, em pavor se convertia. Ninguém fale em Primavera! Quem me dera, quem nos dera ter morrido nesse dia!
Poema: David Mourão-Ferreira Música: Pedro Rodrigues Intérprete: Amália Rodrigues (1965, in CD “Segredo”, EMI-VC, 1997; CD “Amália canta David”, Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011)
David Mourão-Ferreira
Um dia quebrarei todas as pontes
[ As Fontes ]
Um dia quebrarei todas as pontes Que ligam o meu ser, vivo e total, À agitação do mundo do irreal, E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora A plenitude e o límpido esplendor Que me foi prometido em cada hora, E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer, Irei beber a voz, a voz dessa promessa Que às vezes como um voo me atravessa, E nela cumprirei todo o meu ser.
Um dia quebrarei todas as pontes Que ligam o meu ser, vivo e total, À agitação do mundo do irreal, E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora A plenitude e o límpido esplendor Que me foi prometido em cada hora, E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer, Irei beber a voz, a voz dessa promessa Que às vezes como um voo me atravessa, E nela cumprirei todo o meu ser.
Irei beber a luz e o amanhecer… Um voo me atravessa, E nela cumprirei… E nela cumprirei… E nela cumprirei todo o meu ser.
Poema: Sophia de Mello Breyner Andresen (adaptado) Música e arranjo: Filipe Raposo Intérprete: Ana Laíns com Filipe Raposo (in CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017)
As fontes
Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Poesia”, Coimbra: Edição da autora, 1944; “Obra Poética I”, Lisboa: Editorial Caminho, 1990 – p. 60
Um dia quebrarei todas as pontes Que ligam o meu ser, vivo e total, À agitação do mundo do irreal, E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora A plenitude, o límpido esplendor Que me foi prometido em cada hora, E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer, Irei beber a voz dessa promessa Que às vezes como um voo me atravessa, E nela cumprirei todo o meu ser.
Vens como uma aparição
[ Aparição ]
Vens como uma aparição apenas vestida com a tua beleza dos teus gestos tombam as pétalas que acabaram de abrir e em mim escorrem como orvalho que o morno hálito fundiu
vens e entras em mim com a subtileza da nuvem que abraçou o sol e o bebe inteiro para o ter só seu ou como lança ardente que rasga de lava a paisagem amortecida
vens e ficas e incorporas-te até não haver mais do que uma súplica nem mais do que um fogo nem mais do que uns braços nem mais do que uma boca nem mais do que um olhar de pálpebras cerradas todo recolhido no que nele é júbilo e dor dor de ser breve sabendo-se embora infindável a vertigem transporta-nos como no poema da Ada Negri e deixa-nos num lugar que nem é presença nem ausência apenas o exacto lugar onde apenas cabe um corpo que instantes antes eram dois.
Uma folha tomba do plátano diz a Ada. És tu és tu que me levas pelos ares.
Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 104-105) Música: Francisco Ceia Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)
Camilo Pessanha, poeta, na canção portuguesa
Porque o melhor, enfim
(Camilo Pessanha, in “Clepsydra”, Lisboa: Edições Lusitania, 1920; “Clepsidra e Outros Poemas”, Org. João de Castro Osório, 9.ª edição, Lisboa: Editorial Nova Ática, 2003 – p. 76-78)
Porque o melhor, enfim, É não ouvir nem ver… Passarem sobre mim E nada me doer!
— Sorrindo interiormente, Co’as pálpebras cerradas, Às águas da torrente Já tão longe passadas. —
Rixas, tumultos, lutas, Não me fazem dano… Alheio às vãs labutas, Às estações do ano.
Passar o estio, o outono, A poda, a cava e a redra, E eu dormindo um sono Debaixo duma pedra.
Melhor até se o acaso O leito me reserva No prado extenso e raso Apenas sob a erva
Que Abril copioso ensope… E, esvelto, a intervalos Fustigue-me o galope De bandos de cavalos.
Ou no serrano mato, A brigas tão propício, Onde o viver ingrato Dispõe ao sacrifício
Das vidas, mortes duras Ruam pelas quebradas, Com choques de armaduras E tinidos de espadas…
Ou sob o piso, até, Infame e vil da rua, Onde a torva ralé Irrompe, tumultua.
Se estorce, vocifera, Selvagem nos conflitos, Com ímpetos de fera Nos olhos, saltos, gritos…
Roubos, assassinatos! Horas jamais tranquilas, Em brutos pugilatos Fracturam-se as maxilas…
E eu sob a terra firme, Compacta, recalcada, Muito quietinho. A rir-me De não me doer nada.
Part(Ida)
Vou para um outro mundo que não tenha fim ou uma barca a mais
Vou para um outro dia que não tenha sombra sou sabor a sol
Vou para um outro sonho que não tenha aves ou palmas de mãos
(PART)IDA – Lectio X [satb (ssaatb)] Música: Alfredo Teixeira Poema: Daniel Faria* Intérprete: Coro Ricercare Dir. Pedro Teixeira Solistas: Raquel Pedra, Ana Baptista
Festival Antena 2, 15 -02-2020, no Salão Nobre do Teatro Nacional de São Carlos
*Daniel Faria, Das madrugadas, in Poesia, Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2009.
https://www.meloteca.com/wp-content/uploads/2020/05/poetas-cantados-camilo-pessanha.jpg400400António Ferreirahttps://www.meloteca.com/wp-content/uploads/2018/03/Logomarca-MELOTECA-300x86.jpgAntónio Ferreira2020-05-09 23:34:522021-06-29 14:21:52Canções com grandes poetas
A Senhora está sentada Não tem pés, pois muito andou Já nem na memória há rastos Do tempo que caminhou
A Senhora está sentada Numa redoma de luz E é uma nave perdida Nenhuma rota a conduz
E a Senhora está sentada Numa montanha de fel Rios correm dos seus olhos E dos seus lábios o mel
E a Senhora está sentada Tem parado o respirar Do seu peito saem chamas Das que não sabem queimar
E a Senhora está sentada Sobre as dores de cada um Do seu ventre sai remédio Que cura como nenhum
E a Senhora está sentada Numa matéria sem nome Transformada numa estátua Que não tem sono nem fome
E a Senhora está sentada Sobre as suas próprias mãos E baloiça no vazio No céu de todos os chãos
Letra e música: Amélia Muge Intérprete: Amélia Muge (in CD “Todos os Dias”, Columbia/Sony, 1994)
A solidão
[ Nem Mal Que Sempre Dure, Nem Bem Que Nunca se Acabe ]
A solidão espalhada p’los penedos Embrulha a alma em folhas de saudade A noite acorda o sabor dos segredos E traz nos dedos a cor da vontade
E só a voz da Lua é que me amansa E me adormece ao canto da gaivota No fim do mundo o tempo quebra a dança E o vento lança aromas de outra rota
O sol acalma como um grão de areia E dorme enquanto espera a madrugada Em cada noite escura há uma candeia Em cada ceia há uma fome adiada
Em cada grito há uma voz calada Encruzilhada p’lo meio do caminho Em cada sono há uma alma acordada Desnorteada como um burburinho
Ouvi dizer o povo e o povo bem o sabe: “Nem mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.”
Mal amanhece o horizonte espreita Enquanto espera pelo raiar do dia Já se adivinha o calor que se ajeita E o chão aceita o fim da noite fria
Rir da tristeza, chorar da alegria Abrir caminhos como um peregrino Deixar que a vida traga outro dia Fazer folia a meias com o destino
Ouvi dizer o povo e o povo bem o sabe: “Nem mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.
Ouvi dizer o povo e o povo bem o sabe: “Nem mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.”
Letra e música: Sebastião Antunes Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha* Versão discográfica anterior: Sebastião Antunes & Quadrilha com Carlos Moisés (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019) Versão original: Quadrilha (in CD “A Cor da Vontade”, Vachier & Associados, 2003) Outra versão: Quadrilha (in CD “Deixa Que Aconteça: Ao Vivo”, Vachier & Associados/Ovação, 2006)
A verdade vem ao de cima
A verdade vem ao de cima e mostra O que em baixo tem, que ao de cima não se gosta A verdade tem algo difícil de atingir Quando em cima há quem, por baixo vem e te faça distrair
A verdade vem ao de cima e mostra A verdade vê e ao de cima há-de vir A verdade vem ao de cima e mostra A verdade vê e ao de cima há-de vir
Quando de baixo vem, tão hibernado e escondido, O desejo de ter e conhecer o proibido Quando a vontade for escorregando a mentir A verdade vê e ao de cima há-de vir
A verdade vem ao de cima e mostra A verdade vê e ao de cima há-de vir A verdade vem ao de cima e mostra A verdade vê e ao de cima há-de vir
E por mais que tentes dar a volta A verdade veio sempre e sempre há-de vir Há-de vir n’outro presente às cambalhotas Noutro presente há-de vir, noutro presente há-de vir
A verdade vem ao de cima e mostra A verdade vê e ao de cima há-de vir A verdade vem ao de cima e mostra A verdade vê e ao de cima há-de vir (bis)
Letra e música: Luís Pucarinho Intérprete: Luís Pucarinho com Duarte (in CD “Orgânica Mente Humana”, Caracol Secreto Associação/Alain Vachier Music Editions, 2015)
Acorda meu sangue preso
[ Cantar para Um Pastor ]
Acorda meu sangue preso Acorda meu sangue mudo Se te amo, não te amo E meu cantar não diz tudo
Meu olhar de madrugada Pastor da noite comprida Luz no peito vigiada Liberdade consentida
Acorda meu sangue preso Rasga o ventre do meu dia Se te amo, não te amo Meu pastor de alegria
Meu pastor de alegria Meu olhar de madrugada Se eu piso campos verdes É sempre noite na estrada
Se te amo, não te amo Meu olhar de madrugada Trago uma pomba de espanto Nesta garganta velada
Poema: Matilde Rosa Araújo Música: Adriano Correia de Oliveira Intérprete: Adriano Correia de Oliveira (in “Cantaremos”, Orfeu, 1970, reed. Movieplay, 1999; “Obra Completa”: CD “A Noite dos Poetas “, Movieplay, 1994)
Acredito em pouca coisa
Acredito em pouca coisa que venha escrita em loiça, dessa de pôr na parede.
Acredito mais no desempenho da laranja que apanho, que como e me mata a sede.
Acredito nas façanhas, muito menos nas patranhas de quem faz só porque sim.
Acredito nas crianças, no meu ventre são esperanças de um futuro sem fim.
Acredito na loucura de quem pede mais ternura e vira costas à guerra.
Acredito na fé dos outros que às vezes abrem poços só para encontrar mais terra.
Acredito no Caetano, no Zambujo que é meu mano, em todas as vozes calmas.
Acredito na poesia e também na aletria, em todos adoçantes de almas.
Acredito na minha mãe, ela que sofreu bem para que eu fosse como sou.
Crente nos frutos e flores, nos mais impossíveis amores, onde o Sol mais brilhar eu estou.
Letra: Celina da Piedade Música: Alex Gaspar Intérprete: Celina da Piedade Versão original: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)
Agora e na Boa Hora
Agora e na boa hora Saio de casa p’ra fora; Quem mal me queira fazer Deus as queira arrepender.
Tenha pernas e não ande! Tenha braços e não mande! Tenha boca e não fale! Tenha olhos e não veja!
Agora e na boa hora Saio de casa p’ra fora; Quem mal me queira fazer Deus as queira arrepender.
Tenha pernas e não ande! Tenha braços e não mande! Tenha boca e não fale! Tenha olhos e não veja!
Agora e na boa hora Saio de casa p’ra fora; Quem mal me queira fazer Deus as queira arrepender.
Tenha pernas e não ande! Tenha braços e não mande! Tenha boca e não fale! Tenha olhos e não veja!
Agora e na boa hora Saio de casa p’ra fora; Quem mal me queira fazer Deus as queira arrepender.
Tenha pernas e não ande! Tenha braços e não mande! Tenha boca e não fale! Tenha olhos e não veja!
Agora e na boa hora Saio de casa p’ra fora; Quem mal me queira fazer Deus as queira arrepender.
Letra: Oração tradicional Música e arranjo: César Prata Intérprete: César Prata e Vânia Couto Versão original: César Prata e Vânia Couto (in CD “Rezas, Benzeduras e Outras Cantigas”, Sons Vadios, 2019)
Águas claras
[ Canção das Águas Claras ]
Águas claras, águas claras Que dos rochedos caíam; Morreram as águas claras Onde os meus sonhos bebiam.
Era o sol, era a lua, Era a flor que aparecia; A solidão da rua Também toda lá bebia.
Agora a mágoa me acena Das minhas mãos agitadas. Quem dera fossem penas Os rochedos de águas claras!
Águas claras, águas claras Que dos rochedos caíam; Morreram as águas claras Onde os meus sonhos bebiam.
Dessa paisagem não sei, Nem a saudade precisa; Coração, eu não parei, Tira-me a hora indecisa!
Do tempo que era quimera, Não quero que tenha fim… Porque é que o tempo não espera, Nem nunca esperou por mim?
Águas claras, águas claras Que dos rochedos caíam; Morreram as águas claras Onde os meus sonhos bebiam.
Águas claras, águas claras Que dos rochedos caíam; Morreram as águas claras Onde os meus sonhos bebiam.
Letra: Joaquim Pedro Gonçalves Música: Ricardo Ribeiro Intérprete: Ricardo Ribeiro Versão original: Ricardo Ribeiro (in CD “Hoje É Assim, Amanhã Não Sei”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2016)
Ai amigos
[ A Lei dos Sentidos ]
Ai amigos… Na ilusão ridícula de sermos imortais e querermos acertar Se inventarmos fugas, ideias e diferenças vão chamar-nos loucos Se fugirmos à norma e pensarmos longe – somos anormais Se sonharmos mar, montanhas e vento – vamos ser tão poucos…
E afinal viver é este tempo breve dado para a memória Uma novela curta que sempre ansiamos de grandes paixões Mas cada um de nós vale muito pouco para as contas da História Somos só formigas enchendo o planeta de tantos milhões
Pequenos demais, vagueando aí, sem esperança nem jeito Buscando a nobreza de um outro sentir, feito de emoções Buscando impossíveis de amor e beleza num tempo perfeito Querendo a felicidade e o sucesso inteiro em vinte lições
Deixem-me sonhar que num tempo novo nascerão do caos O homem completo, a gente bonita, a nação ternura Sem raivas nem ódios, nem fés de rancores, nem dogmas estreitos E que um mundo outro, mais belo e mais pleno, nos nasce e perdura
Um mundo onde os poetas não sejam estudados como anormais E os homens justos e as gentes de estudo sejam distinguidos E a sabedoria seja infinda e livre e nunca demais E então se publique, por decreto urgente – a lei dos sentidos!
Letra e música: Pedro Barroso Intérprete: Pedro Barroso Versão original: Pedro Barroso (in CD “Artes do Futuro”, Ovação, 2017)
Ai levaram-me os temas
[ Caixinha de Mão ]
Ai levaram-me os temas, Os meus longos poemas, As canções de amor
Ai levaram-me os temas, Os meus longos poemas, As canções de amor
Foi o meu menino, chamado Paixão, Que mos levou numa caixinha de mão Para os guardar e depois cantar Se o coração deixar
Foi o meu menino, chamado Paixão, Que mos levou numa caixinha de mão Para os guardar e depois cantar Se o coração deixar
Ai, mas se ele voltasse E ao meu lado se deitasse Ao meu lado a brincar Com a caixinha dos temas
Fazia-me os temas Longas são as histórias de amor Para as guardar e depois cantar Se o coração deixar
Letra e música: Tiago Curado de Almeida Intérprete: Pensão Flor Versão original: Pensão Flor (in CD “O Caso da Pensão Flor”, Pensão Flor/Brandit Music, 2013)
Ali estavas tu
Ali estavas tu olhando à janela, quando voltei já quase dia Da boémia, da boémia e do som. E desceste até à porta, num sorriso maior e num abraço Num abraço sentido
Colaram-se os corpos numa dança, varrendo tudo pelo chão Um aceso rebolar sufocante e o suor em crescente pulsação E a força, o sangue corre num único sentido Algo em mim se vai e morre e me consome morto e vivo
Como quem sabe de cor, puseste-me um cigarro na boca E com amor, um brilho nos olhos Em corpo nu à luz de uma vela, perguntei-te baixinho “Quando voltas? Quando voltas à janela?”
Colaram-se os corpos numa dança, varrendo tudo pelo chão Um aceso rebolar sufocante e o suor em crescente pulsação E a força, o sangue corre num único sentido Algo em mim se vai e morre e me consome morto e vivo
Ali estavas tu olhando à janela, quando voltei já quase dia Da boémia, da boémia e do som. E desceste até à porta, num sorriso maior e num abraço Num abraço sentido Ficaste tu olhando à janela…
Letra e música: Luís Pucarinho Intérprete: Luís Pucarinho (in CD “Orgânica Mente Humana”, Caracol Secreto Associação/Alain Vachier Music Editions, 2015)
Ao correr da queda de água
[ Fraga da Pena ]
Ao correr da queda de água Fui lavar um sentimento: Deixei acalmar a mágoa Enquanto escutava o vento.
A saltar entre os penedos, As águas vão ensinando As lembranças e os segredos Que a serra vai murmurando.
E as penas quem as apaga Para a alma ficar serena? Penas grandes como a fraga São como a Fraga da Pena.
E as penas quem as apaga Para a alma ficar serena? Penas grandes como a fraga São como a Fraga da Pena.
Enquanto a tarde se deita Nas sombras da penedia, A água aos poucos ajeita O raiar do novo dia.
Trigueira de água nos dedos Desce da serra apressada: Vem a cantar pelos penedos Para me saudar à chegada.
Enquanto a noite me afaga, Enquanto a lua me acena, Adormeço ao som da fraga: Ao som da Fraga da Pena.
Enquanto a noite me afaga, Enquanto a lua me acena, Adormeço ao som da fraga: Ao som da Fraga da Pena.
E as penas quem as apaga Para a alma ficar serena? Penas grandes como a fraga São como a Fraga da Pena.
Enquanto a noite me afaga, Enquanto a lua me acena, Adormeço ao som da fraga: Ao som da Fraga da Pena.
Letra: Sebastião Antunes Música: Fernando Pereira Intérprete: Real Companhia com Ana Laíns (in CD “Serranias”, Tê, 2013)
Ao som de uma caixa de música
[ Caixinha de Música ]
Ao som de uma caixa de música acordou João Ao lado do berço um corpo caído, desilusão A casa vazia e no ar um cheiro a solidão Para lá da janela uma visão tão estranha O que terá acontecido?
Como um pássaro que saiu do ninho e esvoaçou João deu a medo alguns passos pelo quarto e sem querer Debruçou o corpo sobre o chão morno e adormeceu Talvez p’ra dormir o seu último sono E o que fica a dizer de…?
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade Onde só se contavam histórias de mal e de bem João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade Onde só se contavam histórias de realidade
Uma brisa estranha chegou de repente, com sabor a fim E uma noite fria caiu sobre os restos do auge do poder Entre o tudo e o nada ficou uma sombra, uma recordação Talvez algum dia alguém venha a perguntar: “O que terá acontecido?”
Um manto de fumo cobriu a cidade, em forma de adeus Talvez p’ra apagar a última imagem guardada da Terra A tocar no meio do deserto plantado a caixinha ficou Testemunha ingénua das glórias já findas E das marcas da vida
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade Onde só se contavam histórias de mal e de bem João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade Onde só se contavam histórias de realidade
Letra e música: Sebastião Antunes Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha com João Pedro Pais (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019) Versão original: Peace Makers (in single “Caixinha de Música / Recordação de Hiroshima”, Victória Records, 1988) Outra versão: Quadrilha (in CD “Deixa Que Aconteça: Ao Vivo”, Vachier & Associados/Ovação, 2006)
Às vezes
Às vezes, dou por mim quase esquecido Suspirando, meio-perdido Sem ninguém p’ra conspirar
Por linhas tortas, Troco as palavras e abro portas Invento frases de lamento Houvesse alguém p’ra duvidar…
Se eu fosse a ti vinha a correr Não vês que em ti eu posso ser A sede ardente de um desejo
Se eu fosse a ti vinha a voar Os pés no ar a querer andar Sentir o corpo a levitar Na febre quente de mais um beijo
Às vezes, dou por mim quase rendido No teu canto preferido A sorte teima em não passar
Mas sou teimoso E fico à espera no mesmo lugar Onde passas sem parar Houvesse alguém p’ra duvidar…
Se eu fosse a ti vinha a correr Não vês que em ti eu posso ser A sede ardente de um desejo
Se eu fosse a ti vinha a voar Os pés no ar a querer andar Sentir o corpo a levitar Na febre quente de mais um beijo
Se eu fosse a ti vinha a correr Não vês que em ti eu posso ser A sede ardente de um desejo
Se eu fosse a ti vinha a voar Os pés no ar a querer andar Sentir o corpo a levitar Na febre quente de mais um beijo
Na febre quente de mais um beijo
Letra e música: Jorge Roque Intérprete: Jorge Roque Versão original: Jorge Roque (in CD “Às Vezes”, Vidisco, 2013)
Baco quando nasceu
[ O Deus de Todo o Vinho ]
Baco quando nasceu Pediu à mãe um copinho E disse: – vou ser deus! Vou ser deus de todo o vinho!
A mãe ficou intrigada Com tanta sabedoria; Baco de cara corada Sabia bem o que queria.
Abençoado tu sejas, Ó vinho mosto de surdos! Diz que dás a vista aos cegos E também a fala aos mudos.
Em vez de leite, bebia Uns copos de vinho tinto; Só chorava de alegria, Que menino tão distinto!
As fraldas eram de parra, Os caracóis cheios de curvas; A chucha uma coisa rara Toda enfeitada com uvas.
Abençoado tu sejas, Ó vinho mosto de surdos! Diz que dás a vista aos cegos E também a fala aos mudos.
Baco lá foi crescendo Por entre copos de vinho, Com os amigos bebendo Pelas tascas do caminho.
Recordando que ao nascer Pediu à mãe um copinho E disse: – vou ser deus! Vou ser deus de todo o vinho!
Abençoado tu sejas, Ó vinho mosto de surdos! Diz que dás a vista aos cegos E também a fala aos mudos.
Letra: José Luís Gordo Música: Carlos Alberto Moniz Intérprete: Carlos Alberto Moniz Versão original: Carlos Alberto Moniz (in Livro/2CD “O Vinho dos Poetas”: CD 1, Carlos Alberto Moniz/Ovação, 2014)
Caem tordos e pardais
[ Perdidos pela Estrada ]
Caem tordos e pardais das varandas, dos telhados Caem todos os normais sem asas levantados Caídos morrem pela rua na tristeza e pela fome Porque as vidas não são as suas e sem vida tudo morre
Quem por ti pensa e vê e te diz como tudo deve ser? Quem a ti te encaminha e faz render? Quem por ti decide, por ti irá viver?
De tão certos e arrumados nas gavetas inventadas Nas varandas e telhados, sem da vida verem nada Seguem do formato o trilho, da moral endiabrada Que se perdem no caminho todos, todos pela mesma estrada
Quem por ti pensa e vê e te diz como tudo deve ser? Quem a ti te encaminha e faz render? Quem por ti decide, por ti irá viver?
Quem por ti… por ti irá viver? E te diz…
Quem por ti decide, por ti irá viver?
Letra e música: Luís Pucarinho Intérprete: Luís Pucarinho (in CD “Orgânica Mente Humana”, Caracol Secreto Associação/Alain Vachier Music Editions, 2015)
Cantiga de Vir ao Mundo
Já sentes em ti o que vais ser Já dormiste um sono profundo Chegou a hora d’amanhecer Deixar p’ra trás a porta do mundo
Vais repousar na estrela-d’alva E dançar a dança dormente Ouro na pele, incenso e salva Desabraçar o ninho mais quente
Tens o sol riscado nas asas Um rei sem roque nem patrão Um deus a quem dei coração A sombra incerta do amor
Serás acaso, serás fronteira Sussurrando temporais Velhas perguntas, luas inteiras Vencendo a sina dos mortais
Tens o sol riscado nas asas Um rei sem roque nem patrão Um deus a quem dei coração A sombra incerta do amor
Letra: Miguel Cardina Música: Pedro Damasceno e Sara Vidal Arranjo: Diabo a Sete e Julieta Silva Intérprete: Diabo a Sete* (in CD “Figura de Gente”, Sons Vadios, 2016)
Carolina, esta cantiga é para ti
[ Quando Nasceste ]
Carolina, esta cantiga é para ti. Um dia desvendarás a poesia que a música esconde. Amo-te. Sinto que o amanhã é ontem e o hoje é a revelação do espírito livre e inquieto.
Música: Ricardo Ribeiro Intérprete: Ricardo Ribeiro (in CD “Largo da Memória”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2013)
Chega-se a este ponto
Chega-se a este ponto em que se fica à espera Em que apetece um ombro o pano de um teatro um passeio de noite a sós de bicicleta o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte Encomenda-se um gin enquanto ela não chega Loucura foi não ter incendiado o bosque Já não sei em que mês se deu aquela cena
Já não sei em que mês… Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Chega-se a este ponto Arrepiar caminho Soletrar no passado a imagem do futuro Abrir uma janela Acender o cachimbo para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão Chega-se a este ponto em que apetece um ombro e nos pedem um sabre Em que a rota do Sol é a roda do sono Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
Chega-se a este ponto… Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
Chega-se a este ponto… em que se fica à espera Chega-se a este ponto… em que a gente não sabe Chega-se a este ponto… em que se fica à espera
Poema: David Mourão-Ferreira (adaptado) Música: José Mário Branco Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)
Chegámos, tu e eu
[ Cena Final ]
Chegámos, tu e eu, ao fim do jogo O nosso amor morreu, não há mais fogo Eu compreendo… Lamento não poder chorar de raiva Mas entendo
Já palmilhámos juntos muita estrada E agora que estamos no fim da jornada Fica um vazio… Eu não quero mais ser marinheiro No teu navio
No teu navio E ter a vida Por um fio
Não esperes tu de mim que de ti fuja Não gosto de lavar a roupa suja, Fica tão mal… Confesso que nunca pensei ser actor Da cena final
Se há coisa que comigo não resulta É sentir que trago a rédea curta, Eu não aguento… Do que eu gosto mesmo é de ser livre Como o vento
Eu não aguento Quero ser livre Como o vento
Não esperes tu de mim que de ti fuja Não gosto de lavar a roupa suja, Fica tão mal… Confesso que nunca pensei ser actor Da cena final
Se há coisa que comigo não resulta É sentir que trago a rédea curta, Eu não aguento… Do que eu gosto mesmo é de ser livre Como o vento
Eu não aguento Quero ser livre Como o vento
Letra e música: Aníbal Raposo Intérprete: Aníbal Raposo com Vânia Dilac (ao vivo no Teatro da Luz, Lisboa) Versão original: Aníbal Raposo (in CD “Maré Cheia”, Aníbal Raposo/MM Music, 1999)
Cheiro bom
[ Há Vida no Bairro ]
Cheiro bom Risos e gente a conversar
No jardim homens que sabem o que jogar
Há mais um vizinho novo para cantar
A canção marcha que o Bairro há-de ganhar
E tu quem és? De donde vens? Porque não te chegas mais? Vem cá ver, acreditar que as pessoas são bens reais!
Ser feliz é nunca mais voltar a estar só
No jardim falta uma peça ao dominó
Sê mais um para mostrar como se canta em dó
Aprender como se dança sem levantar pó
O que é meu é p’ra dar Deus não quer tralha no Céu Não há nada p’ra guardar Viver já é um troféu
O que é meu é p’ra dar Deus não quer tralha no Céu Não há nada p’ra guardar Viver já é um troféu
Ser feliz é nunca mais voltar a estar só
No jardim falta uma peça ao dominó
Sê mais um para mostrar como se canta em dó
Aprender como se dança sem levantar pó
Letra: Eugénia Ávila Ramos Música: Tiago Oliveira Intérprete: Rua da Lua Versão original: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Com um copo de vinho
[ A Tua Boca Tem Sabor a Mosto ]
Com um copo de vinho, afogo Esta mágoa de ver-me perdido Por um bago de esp’rança, que provo No lagar do teu corpo despido. És de uma casta que se apanha a gosto: Claretes, verdelhos… A tua boca tem sabor a mosto E a frutos vermelhos. E a fome que te sinto no meu peito Vai morrer de qualquer jeito No balseiro desta vida. Depois, abre-se a porta da adega E o teu corpo já se apega Numa prova de carinho.
Com um copo de vinho, levanto Este brinde ao corpo que canto. Ao teu ombro murmuro baixinho: Este corpo que bebo é vinho.
Com um copo de vinho, aqueço A palavra ternura e teço Estes versos de uva que esmago Com vontade de seres um bago. Beber-te toda neste copo imenso Sentindo que é cedo P’ra te deixar saber que tenho medo Que fujas… E penso: O amor é como o vinho encorpado, Deixa o corpo orvalhado Pelos beijos da manhã. Teu corpo é preciso esconder, Pois só eu posso saber O sabor que o vinho tem. Com um copo de vinho, levanto Este brinde ao corpo que canto. Ao teu ombro murmuro baixinho: Este corpo que bebo é vinho.
Letra: Álamo Oliveira Música: Carlos Alberto Moniz Intérprete: Carlos Alberto Moniz Versão original: Carlos Alberto Moniz (in Livro/2CD “O Vinho dos Poetas”: CD 1, Carlos Alberto Moniz/Ovação, 2014)
Coração Estoirado
[ Coração de Fita-Cola ]
Coração Estoirado, Peito feito mola Pelas ruas a teu lado Colado com fita-cola
Sempre vacilado, Sempre a 100 à hora Sem saber o que fazer Só tu perdes p’la demora
E num beijo longo, só te quero sentir Corro, sinto perigo, paro p’ra fingir
Sente a Solidão, meu corpo no tempo Dá-me a tua mão, meu tormento
Os teus passos mais distantes, Sempre sem saber Se o futuro agora é antes O que mais não posso ter
Saio porta fora Sem saber o que escrever Rasgo a vida e vou-me embora Nas palavras por dizer
E num beijo longo, só te quero sentir Corro, sinto perigo, paro p’ra fingir
Sente a Solidão, meu corpo no tempo Dá-me a tua mão, meu tormento
Sobre a tua mão Escrever o meu nome A palavra mais sincera Antes de a dizer, já era O verbo mais que perfeito Na perfeição desse jeito Com que a tua boca Diz e pede mais Amor
Letra e música: Jorge Roque Intérprete: Jorge Roque Versão original: Jorge Roque (in CD “Às Vezes”, Vidisco, 2013)
Coram de vermelho
[ Damas da Côrte ]
Coram de vermelho As damas de toda a côrte: Seu costume é velho, Não há moda que o troque!
E se por magia Sua pele mudou de cor, Foi amor de um dia, Não dura mas tem sabor…
Casam cinco damas E outras tantas são solteiras; Num amor em chamas As damas são as primeiras!
Damas de cristal, Coração tão valioso, Riso ou castiçal E um olhar mui carinhoso…
Letra e música: José Flávio Martins Intérprete: Senhor Vadio (in CD “Cartas de um Marinheiro”, José Flávio Martins/iPlay, 2013) [>> YouTube] [ao vivo nos estúdios do Porto Canal, 12 Nov. 2013 – a partir de 8′:06” >> Sapo Vídeos] Versão original: Frei Fado d’El Rei (in CD “Danças no Tempo”, Columbia/Sony Música, 1995) [>> YouTube]
Corre a gente decidida
[ A Correr ]
Corre a gente decidida P’ra ter a vida que quer, Sem repararmos que a vida Passa por nós a correr;
Às vezes até esquecemos, Nessa louca correria, Por que motivo corremos E p’ra onde se corria.
Buscando novos sabores Corre-se atrás de petiscos; Quem corre atrás de valores Corre sempre grandes riscos;
E dá p’ra ser escorraçado Correr de forma diferente; Há quem seja acorrentado Por correr contra a corrente.
Num constante corrupio Já nem sequer nos ocorre Que a correr até o rio, Chegando ao mar, também morre;
Ou atrás do prejuízo Ou à frente da ameaça Corremos sem ser preciso: E a correr, a vida passa.
Percorrendo o seu caminho, Correndo atrás dum sentido Há quem dance o corridinho; Eu canto o fado corrido
E o que me ocorre agora P’ra não correr qualquer perigo É correr daqui p’ra fora Antes que corram comigo.
Vou correr daqui p’ra fora Antes que corram comigo!
Letra: Manuela de Freitas Música: Alain Oulman (“O Pião”) Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)
Creio nos anjos
[ Credo ]
Creio nos anjos que andam pelo mundo, Creio na Deusa com olhos de diamantes, Creio em amores lunares com piano ao fundo, Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo De harmonizar as partes dissonantes, Creio que tudo é eterno num segundo, Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro, Na flor humilde que se encosta ao muro, Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas, Na ocupação do mundo pelas rosas, Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
Poema: Natália Correia (in “Sonetos Românticos”, 1990; “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”, 1993) Música: Janita Salomé (in CD “Raiano”, Farol Música, 1994)
Cruzaste horizontes
[ Nas Estradas a Guiar ]
Cruzaste horizontes Entre curvas e montes… Ó emigrante, eu quero apenas te lembrar! Passaste montanhas, Estradas estranhas… Ó emigrante, eu quero apenas te ajudar! Vens de tão longe, guiar bem é teu querer… Há tantas vidas perdidas p’ra recordar… Olha que a ti também te pode acontecer: Na estrada a morte espreita, Não a queiras encontrar! Tens a vida p’ra viver E tantos sonhos p’ra sonhar…
Trazes saudades contigo, vem devagar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar! Trazes saudades contigo p’ra festejar Tanto tempo ausente, Há sempre tempo p’ra chegar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo, vem devagar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar! Trazes saudades contigo p’ra festejar Tanto tempo ausente, Há sempre tempo p’ra chegar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar!
Cruzaste fronteiras Com tantas canseiras… Ó emigrante, eu quero apenas te ajudar! Vens sorridente, Feliz e tão contente… Ó emigrante, eu quero apenas te lembrar! Há tantas festas, romarias p’ra bailar… A vida são dois dias, não te deixes descuidar! Que tenhas sorte por aqui no teu país! Que sejas bem feliz Nas estradas a guiar! Tens a vida p’ra viver E tantos sonhos p’ra sonhar…
Trazes saudades contigo, vem devagar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar! Trazes saudades contigo p’ra festejar Tanto tempo ausente, Há sempre tempo p’ra chegar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo, vem devagar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar! Trazes saudades contigo p’ra festejar Tanto tempo ausente, Há sempre tempo p’ra chegar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo, vem devagar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar! Trazes saudades contigo p’ra festejar Tanto tempo ausente, Há sempre tempo p’ra chegar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo, vem devagar! Tem cuidado, emigrante, Nas estradas a guiar! Trazes saudades contigo p’ra festejar Tanto tempo ausente, Há sempre tempo p’ra chegar!…
Letra e música: Dino Meira Arranjo: Ramon Galarza Intérprete: Dino Meira (in single “Adeus Paris, Até Lisboa / Nas Estradas a Guiar”, Philips/Polygram, 1983; CD “O Melhor de Dino Meira”, col. Coração Português, Mercury/Universal, 1999; CD “O Melhor de Dino Meira”, Universal, 2007)
Dá-me o amanhã
Dá-me o amanhã Dá-mo, que depois de amanhã já cá não estou Vou na senda dos demais que se perdem
Quero o teu calor Quero o teu ser, o teu eu, o teu haver Quero provar-te e beber a tua dor
Quero-te nos braços Toma-me nos braços, quero as lágrimas que choras Não por mim, mas já que as choras Quero a pele que elas molham E os meus lábios as sorvam Quero o corpo onde moras
Dá-me o amanhã Dá-mo, que depois de amanhã já cá não estou Vou na senda dos demais que se perdem
Quero-te as entranhas Quero-te por dentro e por fora e já agora Quero roubar-te os sentidos Quero-te a ti por inteiro Quero que unamos destinos Quero-te a ti por inteiro Por inteiro
Letra e música: Manuel Maio Intérprete: A Presença das Formigas (in CD “Pé de Vento”, A Presença das Formigas/Careto/XMusic, 2014)
Dança comigo
Dança comigo, morena Leveza de pena Esta dança breve Dança e rodopia Solta-me a alegria De quem nada deve
Acende-me a cara, o rosto Os lábios de mosto Riso de marfim Requebra a cintura Que és a criatura Nascida para mim
Vamos, a dança é louca Dá-me a tua boca Que este beijo é meu Dança comigo amada Eu já estou na escada Que me leva ao céu
Ao som da concertina (Cinturinha fina Pele de cetim) Dança, meu amor Não sei doutra flor Que bem dance assim
Dança com fantasia No fim deste dia Que se vai embora No passo da vida Dancemos querida Que é a nossa hora
Vamos, a dança é louca Dá-me a tua boca Que este beijo é meu Dança comigo amada Eu já estou na escada Que me leva ao céu
Vamos, a dança é louca Dá-me a tua boca Que este beijo é meu Dança comigo amada Eu já estou na escada Que me leva ao céu
Vamos, a dança é louca Dá-me a tua boca Que este beijo é meu Dança comigo amada Eu já estou na escada Que me leva ao céu
Letra e música: Aníbal Raposo (2006-09-26) Intérprete: Aníbal Raposo Versão original: Aníbal Raposo (in CD “Rocha da Relva”, Aníbal Raposo/Global Point Music, 2013)
Das casas que ninguém construiu
Das casas que ninguém construiu me deram esta para morar: ficou-me o céu como tecto e o vento como lençóis… Dos trapos que atiram fora me permitiram um para eu vestir. Das chuvas que caem do tecto do meu lar me consentiram abafos para as quatro estações. (Ah, se não fosse às vezes fazer sol…) Das mulheres que ninguém quer me negaram a última de todas, a última de todas as mulheres! E quando notaram que eu parecia um homem, pois tinha ouvidos para ouvir e olhos para ver, em todas as estradas do mundo me gritaram: — Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!
Poema: Manuel da Fonseca (in “Rosa-dos-Ventos”, Lisboa: Imprensa Baroeth, 1940; “Poemas Completos”, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 3.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1969 – p. 35-36; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 5.ª edição, Lisboa: Forja, 1975 – p. 58) Música: Paulo Ribeiro Arranjo: Jorge Moniz Intérprete: Paulo Ribeiro Versão original: Paulo Ribeiro (in CD “O Céu Como Tecto e o Vento Como Lençóis”, Açor/Emiliano Toste, 2017)
[ O Vagabundo ]
Dás mais um passo no escuro
[ Dalla ]
Dás mais um passo no escuro Sem olhar para trás a pensar Nem anos nem meses, sem contar as vezes Que a vida te olhou a cantar
Passas o circo a correr, A banda sempre a tocar Sem rede e sem chão, agarras a minha mão E pedes p’ra eu te salvar
Se eu fosse um anjo, tu serias Um ser Maior, maior que encanto Cantas a noite em vez do dia Guardas a paz num doce manto Às vezes cantas num leve beijo brando
Lamentas que riam de ti, Pensas diferente e depois Libertas Amor sem qualquer pudor, Singela partilha entre dois A vida passou, e tu já sentes Um pouco mais de solidão Acabas cansado, p’ra sempre roubado Do ouro do teu coração
Se eu fosse um anjo, tu serias Um ser Maior, maior que encanto Cantas a noite em vez do dia Guardas a paz num doce manto Às vezes cantas num leve beijo brando
Letra e música: Jorge Roque Intérprete: Jorge Roque Versão original: Jorge Roque (in CD “Às Vezes”, Vidisco, 2013)
De São Mateus ao Pesqueiro
[ Vinho de Cheiro ]
De São Mateus ao Pesqueiro A recta só tem três curvas; Em São Mateus vinho de cheiro Mas no Pesqueiro é que há uvas.
Porto Martins: uva preta; Biscoitos: chão de verdelho; Da Praia inté à Serreta: Vinho novo, vinho velho.
Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, Ai, ai, meu vinho festeiro! Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, O povo chama ao terreiro.
‘Tá um sol qu’inté consola, O adro ficou à cunha; Bota aqui mais meia-bola P’rás favas de molho de unha!
Empina o canjirão! Leva à boca a teladeira! O toiro é um malão, Não saias da minha beira!
Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, Ai, ai, meu vinho festeiro! Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, O povo chama ao terreiro.
Sempre desde pechinchinho Que sonhava ser moleiro: E a mó do meu moinho Só rodava a vinho de cheiro.
P’ra que fosse um matulão Mamãe teve este cuidado: Comi das sopas que dão Ao cavalo quando cansado.
Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, Ai, ai, meu vinho festeiro! Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, O povo chama ao terreiro.
Nasci no mês de Janeiro, Era um bezerro mamão: Só mamava vinho de cheiro Na teta dum garrafão.
No “Biéxe” comprei uns blue jeans Todos brancos – um brinquinho; Mas ao chupar uns “candins” Borrei as calças de vinho.
Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, Ai, ai, meu vinho festeiro! Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, O povo chama ao terreiro.
Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, Ai, ai, meu vinho festeiro! Vinho de cheiro, Vinho de cheiro, O povo chama ao terreiro.
Letra: Vasco Pereira da Costa Música: Carlos Alberto Moniz Intérprete: Carlos Alberto Moniz Versão original: Carlos Alberto Moniz (in Livro/2CD “O Vinho dos Poetas”: CD 2, Carlos Alberto Moniz/Ovação, 2014)
De um trapo velho
[ Cinco Vidas ]
De um trapo velho fiz cinco saias que querem rodar Num pano branco cosi cinco bolsos para te levar
De saco às costas parti sem saber se ia voltar Cabeça erguida e olhos de quem quer olhar
Pus-te na minha mão cinco dedos para me escapar O mundo deu-me então cinco vidas para me curar
E lá do bolso de trás perguntaste se ainda podias falar Cabeça erguida, respondi: tanto me faz
Pela estrada andei quantas voltas eu dei sem encontrar um motivo para voltar
De um trapo velho fiz cinco saias que querem rodar Num pano branco cosi cinco bolsos para te levar
E lá do bolso de trás perguntaste quando ia parar Cabeça erguida, respondi: até ter paz
Pela estrada andei quantas voltas eu dei sem encontrar um motivo para voltar
tanto me faz até ter paz
Letra: Eugénia Ávila Ramos Música: Tiago Oliveira Intérprete: Rua da Lua Versão original: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Deixei de olhar p’ra quem fui
[ Cantiga do Tempo Novo ]
Deixei de olhar p’ra quem fui, Do passado estou ausente; Às vezes mais vale a pena Rir de tudo o que faz pena Da alma triste da gente.
Vou lançar mãos à aventura, Correr noutra direcção; Quanto mais nos lamentamos Ainda mais presos ficamos E nos dói o coração.
Quando me ponho a pensar Em alguém que tanto quis, Já não me sento a chorar E até me dá p’ra cantar Modas que um dia lhe fiz.
Agora sinto-me livre, Sem nada p’ra me prender: E vou pela estrada fora Rumo ao sul vou sem demora, Basta o sol p’ra me aquecer.
A nossa vida é um mar Com muitas marés e vagas: Não temos nada a perder, O melhor mesmo é viver Combatendo as nossas mágoas.
Tenho o mundo à minha espera, Há ilhas por descobrir: E há uma vontade nova, Um tempo que se renova, Novo amor que vai surgir.
Letra e música: Paulo Ribeiro Arranjo: Há Lobos Sem Ser na Serra Intérprete: Há Lobos Sem Ser na Serra (in CD “Cantares do Sul e da Utopia”, Há Lobos Sem Ser na Serra/Alain Vachier Music Editions, 2016) Versão original: Paulo Ribeiro com o Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias” (in CD “Aqui Tão Perto do Sol”, EMI-VC, 2002) Outra versão de Paulo Ribeiro (in CD “Canções 1998-2002”, Paulo Ribeiro, 2014)
Deixo-te ao postigo
[ Amores de Jericó ]
Deixo-te ao postigo Um lenço e uma rosa; Vou partir p’ra longe, Partir sem demora.
Não chores por mim! Eu não o mereço: Sou sombra fugaz Mas não te esqueço.
Não queiras saber O que eu não te digo: Sou fora-da-lei, Sou mais que um bandido.
Não venhas por mim Que eu não sei amar! Com a faca nos dentes Meu verbo é zarpar.
O Sol já desponta, Vai-se a madrugada: O perigo espreita; Adeus, minha amada!
Não quero teus ais, Ouve o que eu te digo: Ande eu onde andar, Estarás sempre comigo.
Não queiras saber O que eu não te digo: Sou fora-da-lei, Sou mais que um bandido.
Não venhas por mim Que eu não sei amar! Com a faca nos dentes Meu verbo é zarpar.
Não queiras saber O que eu não te digo: Sou fora-da-lei, Sou mais que um bandido.
Não venhas por mim Que eu não sei amar! Com a faca nos dentes Meu verbo é zarpar.
Letra e música: Celina da Piedade e Alex Gaspar Intérprete: Celina da Piedade Versão original: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)
Dizem
Dizem que nunca te amei, Que fui sempre um ‘bon vivant’ E que vou ser sempre assim. Também dizem que sou ‘gay’, Que durmo em qualquer divã Quando a noite chega ao fim.
Dizem que não te mereço, Que p’ra mim tudo tem preço: Sou oferta e oferecido. Dizem que eu ando à mercê, Que não sou o que se vê: Bandido e caso perdido.
Dizem que fui e não vou, Dizem que estive e não estou, Mas que devia ter ido. Também dizem, quando estou, Que o dia bom já passou: Não sou tido nem ouvido.
Dizem uns que outros não dizem, Porque não querem saber Do tanto que há por dizer. Dos tantos que tanto dizem, Nada sabem do que dizem E mais nada vão saber.
Dos tantos que tanto dizem, Nada sabem do que dizem E mais nada vão saber.
Letra: Duarte Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição) Intérprete: Duarte* (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Do Cerro venho descendo
[ Piedra y Camino ]
Do Cerro venho descendo, Caminho e pedra; Trago enredada na alma, vida, Uma tristeza.
Acusas de não querer-te, Isso não faço: Talvez não compreendas nunca, vida, Porque me afasto.
É o meu destino, Pedra e caminho; De um sonho longínquo e belo, vida, Sou peregrino.
Por mais que a dita busque, Vivo penando; E quando devo ficar, vida, Eu vou andando.
Às vezes sou como um rio, Chego cantando; E sem que ninguém o saiba, vida, Sigo chorando.
É o meu destino, Pedra e caminho; De um sonho longínquo e belo, vida, Sou peregrino.
Letra e música: Atahualpa Yupanqui Adaptação ao português: Celina da Piedade Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016) Versão original: Atahualpa Yupanqui (in LP “Camino del Indio”, RCA Victor (Argentina), 1964; CD “Atahualpa Yupanqui”, Calle Mayor (Espanha), 2017) Outra versão: Mercedes Sosa (in LP “Mercedes Sosa interpreta Atahualpa Yupanqui”, Philips (Argentina), 1977, reed. Universal Music Argentina, 2010)
E o canto de quem dera
[ Quem Dera ]
E o canto de quem dera Não era bem seu canto; Seria profecia… Não era, E fez-se santo…
Quem dera que chovesse E o mar fosse p’ra o céu, P’ra que eu me convencesse A bailar com um só véu!
Misturo a minha espera, Sacudo o meu capote, E na história quem me dera Que o “burro” fosse mote…
Três cantos desta história Ficaram por contar; Só mesmo na memória Quem dera recordar…
Saída de um só dia Com traje a rigor: Quem dera a sinfonia Cantasse a sua cor…
A cor do teu lamento Sem tempo de pensar, A deusa do teu vento Nasceu no teu olhar…
Ah! Se eu soubesse… Ou adormecesse, Voava em tons de azul; Quem dera que eu soubesse…
E se uma quimera Logo me quisesse… Quem dera ela fosse, Na espera que eu soubesse…
E o canto de quem dera Não era bem seu canto; Seria profecia… Não era, E fez-se santo…
Quem dera que chovesse E o mar fosse p’ra o céu, P’ra que eu me convencesse A bailar com um só véu!
Misturo a minha espera, Sacudo o meu capote, E na história quem me dera Que o “burro” fosse mote…
Ah! Se eu soubesse… Ou adormecesse, Voava em tons de azul; Quem dera que eu soubesse…
E se uma quimera Logo me quisesse… Quem dera ela fosse, Na espera que eu…
Ah! Se eu soubesse… Voava em tons de azul, E se uma quimera Na espera que eu…
Ah! Se eu soubesse… Ou adormecesse, Voava em tons de azul; Quem dera que eu soubesse…
E se uma quimera Logo me quisesse… Quem dera ela fosse, Na espera que eu soubesse…
Ah! Se eu soubesse… Ou adormecesse, Voava em tons de azul, Quem dera que eu soubesse…
E se uma quimera Logo me quisesse… Quem dera ela fosse, Na espera que eu…
Ah! Se eu soubesse… Ou adormecesse, Voava em tons de azul; Quem dera que eu soubesse…
E se uma quimera Logo me quisesse… Quem dera ela fosse, Na espera que eu soubesse…
Letra: José Flávio Martins Música: José Flávio Martins e Paulo Coelho de Castro Intérprete: Senhor Vadio (in CD “Cartas de um Marinheiro”, José Flávio Martins/iPlay, 2013)
É ou Não É?
Cos’è, cos’è che fa andare la filanda? È chiara la faccenda son quelle come me.
E c’è, e c’è che ci lascio sul telaio le lacrime del guaio di aver amato te.
É ou não é que o trabalho dignifica? É assim que nos explica o rifão que nunca falha. É ou não é que disto toda a verdade é que só por dignidade, no mundo, ninguém trabalha?
É ou não é que o povo nos diz que não, que o nariz não é feição, seja grande ou delicado? No meio da cara tem por força que se ver mesmo a quem não o meter aonde não é chamado.
E digam lá se é assim ou não é? Ahi l’amore, ai l’amore!… Digam lá se é assim ou não é? Ahi l’amore che cos’è?
Cos’è, cos’è questa grande differenza se non facevi senza di questi occhi miei?
Perchè, perchè nella mente del padrone ha il cuore di cotone la gente come me?
É ou não é que um velho que à rua saia pensa, ao ver a mini-saia: “Este mundo está perdido!”? Mas se voltasse agora a ser rapazote acharia que o saiote é muitíssimo comprido.
É ou não é bondosa a humanidade? Todos sabem que a bondade é que faz ganhar a Céu; Mas a verdade, nua sem salamaleque, tive de a aprender, é que… ai de mim se não for eu!
E digam lá se é assim ou não é? Ahi l’amore, ai l’amore!… Digam lá se é assim ou não é? Ahi l’amore che cos’è?
Letra e música: Alberto Fialho Janes (com versos da versão italiana, intitulada “La Filanda”, escrita por Vito Pallavicini para a cantora Milva, in single “La Filanda / Un Uomo in Meno”, Dischi Ricordi, 1971, LP “La Filanda e Altre Storie”, Dischi Ricordi, 1972) Intérpretes: José Barros & Mimmo Epifani* (ao vivo no Teatro da Luz, Lisboa) Versão discográfica de José Barros & Mimmo Epifani (in CD “Mar da Lua”, José Barros/Tradisom, 2015) Versão original: Amália Rodrigues (in EP “É ou Não É?”, Columbia/VC, 1970; LP “Oiça Lá ó Senhor Vinho”, Columbia/VC, 1971, reed. EMI-VC, 1992; 2LP “O Melhor de Amália: Vol. II – Tudo Isto é Fado”: LP 2, EMI-VC, 1985, reed. EMI-VC, 2000)
Entre Sodoma e Gomorra
Entre Sodoma e Gomorra entrou na cama a barata a virginal favorita que às escondidas me mata
São horas de perder horas ou de minutos apenas Entre Sodoma e Gomorra fui ver o mar a Atenas
Entre Sodoma e Gomorra entrou na cama a barata a virginal favorita que às escondidas me mata
Entre Sodoma e Gomorra somaras a minha vida Barata, minha barata não me deixes à deriva
Entre Sodoma e Gomorra entrou na cama a barata a virginal favorita que às escondidas me mata
São horas de perder horas ou de minutos apenas Entre Sodoma e Gomorra fui ver o mar a Atenas
Poema: José Afonso (in “José Afonso: Textos e Canções”, org. J.H. Santos Barros, Lisboa: Assírio e Alvim, 1983 – p. 321; 3.ª edição revista, org. Elfriede Engelmayer, Lisboa: Relógio d’Água, 2000 – p. 75) Música: João Afonso Lima e Zé Lima Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017) Versão original: José Mário Branco, Amélia Muge e João Afonso (in 2CD “Maio Maduro Maio”: CD 1, Columbia/Sony Música, 1995)
Era redondo o vocábulo
[ Era um Redondo Vocábulo ]
Era redondo o vocábulo Uma soma agreste Revelavam-se ondas Em maninhos dedos Polpas seus cabelos Resíduos de lar Nos degraus de Laura A tinta caía No móvel vazio Convocando farpas Chamando o telefone Matando baratas A fúria crescia Clamando vingança Nos degraus de Laura No quarto das danças Na rua os meninos Brincavam e Laura Na sala de espera Inda o ar educa
Era redondo o vocábulo Uma soma agreste Revelavam-se ondas Em maninhos dedos Polpas seus cabelos Resíduos de lar Nos degraus de Laura A tinta caía No móvel vazio Convocando farpas Chamando o telefone Matando baratas A fúria crescia Clamando vingança Nos degraus de Laura No quarto das danças Na rua os meninos Brincavam e Laura Na sala de espera Inda o ar educa
Poema e música: José Afonso Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa) Versão anterior de Janita Salomé (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018) Outra versão de Janita Salomé, grav. ao vivo no CCB em 1998 (in CD “Utopia: Vitorino e Janita Salomé cantam José Afonso (ao vivo)”, EMI-VC, 2004) Versão original: José Afonso (in LP “Venham Mais Cinco”, Orfeu, 1973, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art’Orfeu Media, 2012)
Há dias que nascem
[ Às Voltas nas Incertezas ]
Há dias que nascem P’ra não ter um fim Sentidos inversos Cá dentro de mim E vou enganando a dor Fingindo que é mesmo assim
Desejos secretos De cor carmesim Agora vazios Outrora jardins E meus silêncios que escondem O sonho de um querubim
Às voltas nas incertezas Dançando sobre as brasas Que as penas magoadas São ar nas minhas asas E parto rumo a um novo dia Virgem como da primeira vez
Amores que se trazem De pó das estrelas Das cinzas renascem Montados sem selas Que em lume ardendo bem lento Se forjam as almas belas
Às voltas… Às voltas…
Às voltas nas incertezas Dançando sobre as brasas Que as penas magoadas São ar nas minhas asas E parto rumo ao infinito Como se fosse a primeira vez
Letra e música: Rui Filipe Reis Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)
Há um espaço entre tu e eu
[ Orla dos Malditos ]
Há um espaço entre tu e eu Sem esforço sinto-o aqui Em todo o lado Está de vazio ocupado
Espaço de nada, de ricos segredos De histórias, de homens, de medos Inexplorados De curandeiros, de magos
Diria mesmo que é baldio, Nasceu da luxúria, Do fogo, do prazer, do cio, E nada tem de aconchegado
De todos os monstros que vivem, Os mais estranhos habitam ao lado
E há povos malditos, Avós (a vós): filhos proscritos No mar Onde estou
Morrem de esperança, de sede, de fome De enganos, sonhos perdidos Vida encantada Quem mais tem é quem dá nada
Caminho longo com olhares Num horizonte de desejos Promessas de azares Imaginário e real (irreal)
Fronteiras e muralhas guardam Impérios longe da marginal
E há corpos errantes, Desertores, naufragantes No mar Onde vou
Deixa-me ser o teu abrigo, Que te abraça com doçura, Com calma, sem perigo… Como sol quente no fim do Verão
Letra e música: André Cardoso Intérprete: A Presença das Formigas (in CD “Pé de Vento”, A Presença das Formigas/Careto/XMusic, 2014)
Medo
[ Sai da Concha ]
Medo: a forma mais poderosa da crença Crença que é crença dá na TV e toda a gente consome e vê a ameaça, viver em terror
E quando sentes que tu não andas Bem a favor Sê a negra do rebanho do pastor Faz a diferença, sai da concha Sai da concha Sai da concha do medo
Cumpres o dever e vives apático Carregas a crença em piloto automático Todos te abordam em estilo dogmático Porque o medo é um motor
E quando sentes que tu não andas Bem a favor Sê a negra do rebanho do pastor Faz a diferença, sai da concha Sai da concha Sai da concha do medo
Quando tu queres pensar em paz e amor Enfiam-te a lógica do ser sonhador “És um tipo estranho, até me dás graça” Cravam-te o medo na carapaça
E quando sentes que tu não andas Bem a favor Sê a negra do rebanho do pastor Faz a diferença, sai da concha Sai da concha Sai da concha do medo
Jogos, net, drogas, prazer e viv’ó mercado! Vacinam-te na fé que só tu és culpado Tens a doença, tu vives em pecado De novo o medo põe-te ajoelhado
E quando sentes que tu não andas Bem a favor Sê a negra do rebanho do pastor Faz a diferença, sai da concha Sai da concha Sai da concha do medo
‘High society’, gira e boa, famosa, escultural E o lambe-botas que subiu afinal Dizem: “Mas eu não vejo qual é o mal, Subir na vida é natural”
E quando sentes que tu não andas Bem a favor Sê a negra do rebanho do pastor Faz a diferença, sai da concha Sai da concha Sai da concha…
Sai da concha Sai da concha Sai da concha… Sai da concha Sai da concha Sai da concha do medo
Letra e música: Luís Galrito Intérprete: Luís Galrito* (in CD “Menino do Sonho Pintado”, Kimahera, 2018)
Meu menino assustado
[ Menino do Sonho Pintado ]
Meu menino assustado Que tens o céu como tecto Tens estrelas a afagar O sonho por ti pintado
Tens a Lua como mãe Que te aconchega o jornal Conta a história de embalar Desliga a luz infernal
O pai sol de manhã vem Pelo vitral da bonança Que um dia o homem Que é dono da guerra Não roube o teu sonho de criança
O homem da guerra é tramado E difícil de entender Vive também assustado Com o medo de perder
Não vendo que já perdeu O que tu trazes contigo Menino, vês no outro lado Não medo mas um amigo
No Mundo que é de guerra Menino vem ver Todos temos contigo a aprender Que a verdade de ser grande É igual ao grande do teu ser
Ser amor, querer a Paz Apagar o céu riscado Assim tão mal desenhado Com tintas de medo e afins
Meu menino assustado Nesse teu céu desenhado Verás o teu amor sonhado Por ti e outros iguais a ti
O sonho é um menino eternamente menino O sonho é um tesouro antigo repartido por quem precisa O sonho é uma canção feliz para um menino triste
Letra e música: Luís Galrito Intérprete: Luís Galrito (in CD “Menino do Sonho Pintado”, Kimahera, 2018)
Na Machamba
Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dói-dói meu coração Por ti, meu amor, dói-dói meu coração
Desde que você foste embora sono não tem, não, não, não acorda na madrugada o galo cantando co-ri-cô-cô Nos olhos sono que pesa maningue saudade no coração Nos olhos sono que pesa maningue saudade no coração
Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dói-dói meu coração Por ti, meu amor, dói-dói meu coração
Pé no cacimba, vou na machamba sem matubixo Panela de mangungu não tem chicafo, não, não, não ô-ô-i-ô, Maria, meu amor Quando qu’eu zangou eu tinha era só babalaza Quando qu’eu zangou eu tinha era só babalaza
Mariana…
Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dói-dói meu coração Por ti, meu amor, dói-dói meu coração
Mariana Maria Madalena Mariana Maria Madalena Por ti, meu amor, dou dois xi-coração Por ti, meu amor, dou dois xi-coração…
Letra e música: Tomás Vieira Mário Intérprete: João Afonso com Las Hijas del Sol (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)
O coração
[ Mano Pedro ]
O coração tem a vista bem virada para o mar Tua mão cheia de areia faz de conta que é luar
Quando o vento se põe lesto faz-te à chuva e ao relento O meu irmão tem um sonho eu tenho-o no pensamento
O silêncio diz às vezes tudo aquilo que guardamos: os receios e os medos e outras coisas que não damos
Quando o céu se torna estrela a brilhar por um momento o meu irmão tem um sonho eu tenho-o no pensamento
Quando procuro guarida nas canções, no desabafo a dançar ao fim do dia no guardar do teu abraço
Pensar na cor da janela p’ra cantar, fazer em verso O meu irmão tem um sonho eu tenho-o no pensamento
Eu tenho-o no pensamento Eu tenho-o no pensamento Eu tenho-o no pensamento
Letra e música: João Afonso Lima Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)
João Afonso
Os Homens Mais Velhos do Bar
Os homens mais velhos do bar fazem lembrar os sinais do entardecer Como um dia que já passou mas que deixou tanta coisa por fazer Os homens mais velhos do bar entre cigarros e copos sem graça Vêem as gaiatas passar – a noite é que já nunca passa.
Os homens mais velhos do bar contam histórias quando o Outono vem Andaram por longe, eu sei lá, e há coisas que não vão contar a ninguém Os homens mais velhos do bar sabem que a vida já não lhes diz que sim P’ra os outros o bar está a fechar mas p’ra eles o bar não tem fim.
Senta-te aqui à minha frente Tenho uma história p’ra te contar Ficava triste se tu não tivesses Vontade de aqui ficar Vou-te falar de um lobo sozinho Que se apaixonou p’la lua-cheia E ainda tem um lugar vago Na cama que a lua não quis.
Os homens mais velhos do bar sabem que as nuvens são como a solidão Que às vezes parecem partir mas voltam sempre lá p’ra o fim do Verão Aos homens mais velhos do bar é a noite quem lhes afaga a mão Companheira que não tem destino mas que acaba sempre por ter razão.
O tempo é um doido a correr, a manhã está longe e não quer voltar Há muito que assim passou a ser p’ra quem pensa que assim vai passar E há tantos que não querem saber dos homens mais velhos do bar É que são mais os que se afogam num copo do que aqueles que se afogam no mar.
Senta-te aqui à minha frente Tenho uma história p’ra te contar Ficava triste se tu não tivesses Vontade de aqui ficar Vou-te falar de um lobo sozinho Que se apaixonou p’la lua-cheia Que ainda tem um lugar vago Na cama que a lua não quis.
Letra e música: Sebastião Antunes Arranjo: Gonçalo Pratas Intérprete: Sebastião Antunes (in CD “Singular”, Sebastião Antunes & Quadrilha/Alain Vachier Music Editions, 2017) Versão original: Quadrilha (in CD “Até o Diabo se Ria”, Polydor/Polygram, 1995)
Quando ela passa
[ Rosinha dos Limões ]
Quando ela passa, Franzina e cheia de graça, Há sempre um ar de chalaça No seu olhar feiticeiro; Lá vai catita, Cada dia mais bonita… E o seu vestido de chita Tem sempre um ar domingueiro.
Passa ligeira, Alegre e namoradeira, A sorrir p’rá rua inteira Vai semeando ilusões; Quando ela passa, Vai vender limões à praça… E até lhe chamam, por graça, A Rosinha dos limões.
Quando ela passa, Junto da minha janela, Meus olhos vão atrás dela Até ver da rua o fim; De ar gaiato, Ela caminha apressada Rindo por tudo e por nada… E às vezes sorri para mim.
Quando ela passa, Apregoando os limões, A sós com os meus botões No vão da minha janela, Fico pensando Que qualquer dia, por graça, Vou comprar limões à praça E depois caso com ela.
Quando ela passa, Apregoando os limões, A sós com os meus botões No vão da minha janela, Fico pensando Que qualquer dia, por graça, Vou comprar limões à praça E depois caso com ela.
Letra e música: Artur Ribeiro Intérprete: Real Companhia (in CD “Orgulhosamente Nós!”, Lusogram, 2000) Versão original: Artur Ribeiro (in single 78 r.p.m. “A Rosinha dos Limões / Canção da Beira”, Estoril, 1951; CD “Rosinha dos Limões (Original)”, Discoteca Amália, 1993) Primeira versão de Max (in single 78 r.p.m. “Ilha da Madeira / A Rosinha dos Limões”, Columbia/VC, 1954) Segunda versão de Max (in EP “Vielas de Alfama”, Decca/VC, 1967; CD “O Melhor de Max”, EMI-VC, 1989; CD “Max: Biografias do Fado”, EMI-VC, 2004; CD “Max: Essencial”, Edições Valentim de Carvalho/CNM, 2014)
Quando for grande
[ Carteiro em Bicicleta ]
Quando for grande vou ser quero ser um realejo ter um pedaço de terra fogo que salta ao braseiro dormir no fundo da serra quero ser um realejo
Carteiro em bicicleta leva recados de amor Vem o sono com a música ao som do… do realejo
Quando for grande vou ser quero ser um realejo ter um burro, viola e cão chamar a dança dos sapos correr com a bola na mão quero ser um realejo
Quando for grande vou ser quero ser um realejo colher amêndoa em telhados dar banana às andorinhas dobrar o cabo do mundo quero ser um realejo
Carteiro em bicicleta leva recados de amor Vem o sono com a música ao som do… do realejo
Quando for grande vou ser quero ser um realejo ter um burro, viola e cão chamar a dança dos sapos correr com a bola na mão quero ser um realejo
Carteiro em bicicleta leva recados de amor Vem o sono com a música ao som do… do realejo
Letra e música: João Afonso Lima Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)
Que faz o sol?
[ Eu Não Sei Que Faz o Sol ]
Que faz o sol? Que faz o sol? Que faz o sol? Que faz o sol?
Eu não sei que faz o sol que não dá na minha rua Hei-de me vestir de branco que de branco anda a lua
Não vi ribeira sem água nem praça sem pelourinho nem donzelas sem amores nem padres sem beber vinho
Que faz o sol? Que faz o sol? Que faz o sol? Que faz o sol?
Lindos olhos de pau-preto nariz de pena aparada dentes de letra miúda boca de carta cerrada
Lindos olhos tem a cobra quando olha de repente Mais vale um bom desengano que andar enganado sempre
Eu não sei que faz o sol que não dá na minha rua Hei-de me vestir de branco que de branco anda a lua
Não vi ribeira sem água nem praça sem pelourinho nem donzelas sem amores nem padres sem beber vinho
Que faz o sol? Que faz o sol? Que faz o sol? Que faz o sol?
Lindos olhos de pau-preto nariz de pena aparada dentes de letra miúda boca de carta cerrada
Lindos olhos tem a cobra quando olha de repente Mais vale um bom desengano que andar enganado sempre
Que faz o sol? Que faz o sol?
Mais vale um bom desengano que andar enganado sempre que andar enganado sempre que andar enganado sempre
Poema: José Afonso (in “José Afonso: Textos e Canções”, 2.ª edição revista e aumentada, org. Elfriede Engelmayer, Lisboa: Assírio e Alvim, 1988 – p. 289; 3.ª edição revista, org. Elfriede Engelmayer, Lisboa: Relógio d’Água, 2000 – p. 48) Música: João Afonso Lima Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)
José Afonso
Quem Não Tem Amor Sou Eu!
Quem não tem amor sou eu, Da rapaziada solteira; Vivo muito satisfeito Se nunca encontrar quem me queira.
I
Ainda nunca encontrei Raparigas a meu jeito; Todas me encontram defeito, Por isso é que não casei. Já algumas namorei, De que lado venho eu? Essa que a honra perdeu, Para mim não tem valia; Dos rapazes da freguesia, Quem não tem amor sou eu.
II
Há muito rapaz casado Que foi comigo ao sorteio; Eu digo e não me arreceio: Não quero mudar de estado Para não ser censurado, Por usar barba ou pêra; E se calho com uma zopeira Que não me sabe respeitar, Sou dos que fico a pensar, Da rapaziada solteira.
III
Muitos que vivem isentos, Até à hora de casar, Sua honra vão estragar Ao risco dos casamentos: Andam porcos e sebentos, Elas não lhes têm respeito; Tratam-nos com certo jeito, Sempre de tira-virão; Gabo-lhe opinião, Vivo muito satisfeito.
IV
Se eu soubesse que encontrava Uma séria rapariguinha, Mesmo pobre e honradinha, Com isso me contentava. Se vou calhar com uma diaba Que tenha a poltrona inteira, Seja porca ou caloteira, Que ninguém lhe dê capotes; É uma das melhores sortes Se nunca encontrar quem me queira.
Quem não tem amor sou eu, Da rapaziada solteira; Vivo muito satisfeito Se nunca encontrar quem me queira.
Letra: Popular Música: José Manuel David Intérprete: Pedro Mestre (in CD “Campaniça do Despique”, Viola Campaniça Produções Culturais/Pedro Mestre, 2015) Outra versão de Pedro Mestre (in DVD “No CCB: Pedro Mestre & Convidados”, Pedro Mestre, 2017)
Se abana a casa
[ O Dito por Não Dito ]
Se abana a casa, o pardal acorda, sacode a asa e não volta.
Se o mar devolve gente, em vez de peixe, há quem feche a porta e não deixe.
Que o tempo engana e a chuva molha, mas é gente humana que para ti olha.
Que eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Se abana a casa, o pardal acorda, sacode a asa e não volta.
Se o mar devolve gente, em vez de peixe, há quem feche a porta e não deixe.
Que o tempo engana e a chuva molha, mas é gente humana que para ti olha.
Que eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Custa muito ver o mundo estar tão perto da vista, essa turva luz ao fundo nem parece água lisa.
E esta Europa unida, tresmalhadita, lembra cabra tosquiadita.
E se o mundo não é perfeito, à portuguesa dá-se-lhe um jeito.
Se abana a casa, o pardal acorda, sacode a asa e não volta.
Se o mar devolve gente, em vez de peixe, há quem feche a porta e não deixe.
Que o tempo engana e a chuva molha, mas é gente humana que para ti olha.
Que eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Se abana a casa, o pardal acorda, sacode a asa e não volta.
Se o mar devolve gente, em vez de peixe, há quem feche a porta e não deixe.
Que o tempo engana e a chuva molha, mas é gente humana que para ti olha.
Que eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Que o tempo engana e a chuva molha, mas é gente humana que para ti olha.
Que eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Que eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Eu não era assim, foi o stress, vida ruim que tudo esquece.
Letra e música: José Barros Arranjo: José Barros Intérprete: José Barros e Navegante Versão original: José Barros e Navegante (in CD “À’Baladiça”, Tradisom, 2018)
Se o som vier
[ N’um Dôci Abraçu (eterno vacilar) ]
Se o som vier De dentro da alma Então será Tão vivo que acalma
O céu e o mar O Sol e a Lua Insinuação Paixão nua e crua
Um balanceio capaz de me levar À ida Uma lembrança que me faz regressar A esta vida N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz O tempo vem e volta a partir
Entre o ir e vir eu estou, eu venho e vou Com vontade de voltar Ai esta ventura assim, de ir e vir Neste eterno vacilar Entre o ir e vir eu estou, eu venho e vou Com vontade de voltar Ai esta ventura assim, de ir e vir E num verso me inventar
Já m’ bá, já m’ bem, já m’ bá e torná bem Lai a, lai a, lai a
Nasci na praia E aí me criei, ‘nha terra E foi nas ondas Que eu me embalei
Foi o meu pai Um fogo que ardia E a ‘nha mãe Fazia o que queria
A morna é mistura de calor E frio Um velho fado que ainda tem sabor A desvario N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz O tempo vem e volta a partir
N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz La la, lai a, lai a N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz La la, lai a, lai a N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz La la, lai a, lai a N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz La la, lai a, lai a
Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão) Música: Rui Filipe Reis Intérprete: Rosa Negra com Rita Lobo (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)
Sentir a dolência das águas
[ Calçada Esquecida ]
Sentir a dolência das águas, Saber o caminho da foz E o sol que se deita nas mágoas De um cais que se lembra de nós.
Subir a calçada esquecida, Guardar um olhar indiferente, Ouvir a conversa da vida, Falar desta vida da gente.
Sorrir, Pois sabe sempre bem lembrar; Não vale a pena esquecer, Mesmo que doa recordar; São lembranças Que aconchegam as ternuras: Ternuras da calçada esquecida Que dão um sorriso ao passar.
Mas sorrir, Pois sabe sempre bem lembrar; Eu que nem vou tentar esquecer, Mesmo que doa recordar; São lembranças Que aconchegam as ternuras: Ternuras que a calçada esquecida Me ajuda a lembrar.
Mas sorrir, Pois sabe sempre bem lembrar; Eu que nem vou tentar esquecer, Mesmo que doa recordar; São lembranças Que aconchegam as ternuras: Ternuras que a calçada esquecida Me ajuda a lembrar.
Letra: Sebastião Antunes Música: Carlos Lopes (Fado Bisnaga) Intérprete: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Sou formiga
[ Assim Sou Eu ]
Sou formiga, sou cigarra Sou cantiga, pinto a manta, faço a farra Sou a lebre e a tartaruga Sou de raça, estou em brasa, vou à luta Sou bichinho bem manhoso Poderoso e preguiçoso Com franqueza e arredia Sou tristeza e alegria Sou chorona, está na palma Rezingona, perco a calma Sou destino ensarilhado Diz a linha do meu fado
Sei que assim sou eu Sei lá eu porque sou assim Está-se mesmo a ver Sempre assim vou ser Está dentro de mim Eu ser assim
Sou areia, sou granito Fico cheia, sou “o bom e o bonito” Sou canseira, sou de gancho Parideira, só de filhos faço um rancho D’ir à luta tenho ganas Contra gregas e troianas Lusitana, luzidia Sou beleza e ousadia Sou mandona, está na alma Rezingona, perco a calma Tudo muito complicado Diz a letra do meu fado
Sei que assim sou eu Sei lá eu porque sou assim Está-se mesmo a ver Sempre assim vou ser Está dentro de mim Eu ser assim
Sei que assim sou eu Sei lá eu porque sou assim Está-se mesmo a ver Sempre assim vou ser Está dentro de mim Eu ser assim
Ser assim Ser assim Ser assim Ser assim
Letra: António Avelar de Pinho Música: João Gil Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)
Tinha uma história que nunca contava
[ Quando a Noite Já Ia Serena ]
Tinha uma história que nunca contava Trazia um quarto fechado no olhar E uma viagem que planeava mas não começava Para nunca acabar Tinha um sorriso guardado em segredo Mas não sorria p’ra não o contar Tinha uma chave que fechava o medo Nalgum arvoredo onde não queria entrar E quando a noite já ia serena Disse-me a frase mais terna que ouvi: “Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”
Tinha uma nuvem da cor do mistério Tinha palavras da cor do saber Tinha vontades de brincar a sério Mudar de hemisfério para não se perder Tinha a lembrança da cor do poente Tinha um poente inteiro no falar Guardava o sol num esconderijo ardente Tão quente, tão quente, já quase a queimar
E quando a noite já ia serena Disse-me a frase mais terna que ouvi: “Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”
Trazia a paz de uma dor que se apaga E um calor que se quer apagar Como quem grita do alto da fraga Que a vida nos traga distância p’ra andar Deixou correr o licor dos sentidos Até que o dia nos veio acordar De mãos trocadas, de braços caídos Achados perdidos
Veio a manhã, levezinha e serena Cantar-me a frase mais terna que ouvi: “Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.” Veio a manhã, levezinha e serena Cantar-me a frase mais terna que ouvi: “Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”
Letra e música: Sebastião Antunes Arranjo: Sebastião Antunes Intérprete: Sebastião Antunes com Tito Paris (in CD “Com Um Abraço”, Vachier & Associados, 2012; CD “Singular”, Sebastião Antunes & Quadrilha/Alain Vachier Music Editions, 2017)
Toma lá colchetes d’oiro
[ Prima da Chula ]
Toma lá colchetes d’oiro Aperta o teu coletinho Coração que é de nós dois Tem de andar conchegadinho
Por um olhar dos teus olhos Dera da vida a metade Por um riso dera a vida Por um beijo a eternidade
Aqui estou à tua porta Como um feixinho de lenha À espera da resposta Que dos teus olhos me venha
O dia tem duas horas Duas horas não tem mais Uma é quando vos vejo Outra quando me lembrais
Se tudo me foi vedado Se vivi de tudo à míngua Deixai que vos mostre a língua Com o freio bem cortado
A rica tem nome fino A pobre tem nome grosso A rica teve um menino A pobre pariu um moço
Letra: Popular e António Aleixo Música: Trovante Intérprete: Trovante (in “Baile no Bosque”, 1981; reed. EMI-VC, 1988)
Vai de Roda
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda que é tão breve; Tenho uns amigos na roda, Tenho uns amigos na roda, Deixam a roda mais leve.
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda alguns amores; Quantos mais amores na roda, Quantos mais amores na roda Mais te perseguem as dores.
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda até ao fim; Já tentei fugir da roda, Já tentei fugir da roda Mas ela rodou por mim.
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda sem parar; Quem nunca esteve na roda, Quem nunca esteve na roda Não pode a roda enganar.
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda até ao fim; Já tentei fugir da roda, Já tentei fugir da roda Mas ela rodou por mim.
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda sem parar; Quem nunca esteve na roda, Quem nunca esteve na roda Não pode a roda enganar.
Vai de roda, vai de roda, Vai de roda sem parar; Quem nunca esteve na roda, Quem nunca esteve na roda Não pode a roda enganar.
Letra e música: Duarte (Outubro de 2010) Intérprete: Duarte com Mara (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018) Versão original: Duarte (in CD “Sem Dor Nem Piedade”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2015)
Vai Tão Sozinho
Vai, menino, vai! Cuida do teu fulgor! Cuida de ti, amor!
Vai, segue o rumo das estrelas Que, caindo, se centelham Em faúlhas de mil cores!
Vai, menino, vai, Brilho que o mundo tem! Cuida de ti, meu bem!
És como sol a dar na eira! Branca flor, és cerejeira que eu rego ao cantar!
(Ao meu benzinho faz chegar Formoso melro este cantar)
Vai tão sozinho… Vai devagarinho sem saber…
Vai, menino, vai, Brilho que o mundo tem! Cuida de ti, meu bem!
És como sol a dar na eira! Branca flor, és cerejeira que eu rego ao cantar!
(Ao meu benzinho faz chegar Formoso melro este cantar)
(Ao meu benzinho faz chegar Formoso melro este cantar)
Vai tão sozinho… Vai devagarinho sem saber…
Letra e música: Manuel Maio Intérprete: A Presença das Formigas (in CD “Pé de Vento”, A Presença das Formigas/Careto/XMusic, 2014)
A Presença das Formigas, Pé de Vento
Vejam Bem
Vejam bem que não há só gaivotas em terra quando um homem se põe a pensar quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem dorme à noite ao relento n’areia dorme à noite ao relento no mar dorme à noite ao relento no mar
E se houver uma praça de gente madura e uma estátua e uma estátua de febre a arder
Anda alguém pela noite de breu à procura e não há quem lhe queira valer e não há quem lhe queira valer
Vejam bem daquele homem a fraca figura desbravando os caminhos do pão desbravando os caminhos do pão
E se houver uma praça de gente madura ninguém vem levantá-lo do chão ninguém vem levantá-lo do chão
Vejam bem que não há só gaivotas em terra quando um homem quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem dorme à noite ao relento n’areia dorme à noite ao relento no mar dorme à noite ao relento no mar
Vejam bem que não há só gaivotas em terra quando um homem se põe a pensar quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem dorme à noite ao relento n’areia dorme à noite ao relento no mar dorme à noite ao relento no mar
E se houver uma praça de gente madura e uma estátua e uma estátua de febre a arder
Anda alguém pela noite de breu à procura e não há quem lhe queira valer e não há quem lhe queira valer
Letra e música: José Afonso Intérprete: José Afonso (in LP “Cantares do Andarilho”, Orfeu, 1968, 1970, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art’Orfeu Media, 2012)
Vinha com a minha toada
[ Com a Minha Toada ]
Vinha com a minha toada entretida na viola Mas quando penso o que penso com a vertigem duma história fico apenas com a minha toada fico apenas com a minha toada
Janela aberta e o pastor dormia O tempo inerte sob o sol sumia e beijo a moça num lençol de rio e beijo a moça num lençol de rio
Andam cavalos pintados no campo, numa lagoa O sonho pertence à tel e alguém desenha que voa Fico apenas com a minha toada Fico apenas com a minha toada
Janela aberta e o pastor dormia O tempo inerte sob o sol sumia e beijo a moça num lençol de rio e beijo a moça num lençol de rio
A moldura sem retrato recua pr’além Protesto, mundo errado que este mundo tem
A moldura sem retrato recua pr’além Protesto, mundo errado que este mundo tem
Letra e música: João Afonso Lima Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)
Ai de mim que me perdi Pelos caminhos do tédio Perdi-me, cheguei aqui Agora não tem remédio
Ai de mim que me perdi Perdi-me no fim da estrada Ai de mim porque vivi A vida desencontrada
Tantos caminhos andados Não fui eu que os descobri Foram meus passos mal dados Que me trouxeram aqui
Perdida me acho da vida E a vida já me perdeu Ando na vida perdida Sem saber quem a viveu
Por mais que queira encontrar A razão do meu viver A razão de cá andar Não posso compreender
Que culpa tem o destino Dos caminhos que eu andei? Fui eu no meu desatino Que andei e não reparei
Perdida estou sem remédio Meu pecado e meu castigo Pecado é morrer de tédio Castigo é viver contigo
Por mais que queira encontrar A razão do meu viver A razão de cá andar Não posso compreender
Não posso compreender A razão de cá andar A razão do meu viver Não posso compreender
Poema: Amália Rodrigues (ligeiramente adaptado) Música: Amélia Muge Arranjo: José Mário Branco Intérprete: Amélia Muge (in CD “Amélia com Versos de Amália”, Amélia Muge/Leve Music, 2014)
Alguém que Deus já lá tem
[ Fado Malhoa ]
Alguém que Deus já lá tem Pintor consagrado Que foi bem grande e nos dói Já ser do passado Pintou numa tela Com arte e com vida A trova mais bela Da terra mais querida
Subiu a um quarto que viu à luz do petróleo E fez o mais português dos quadros a óleo Um Zé de samarra co’amante a seu lado Com os dedos agarra Percorre a guitarra e ali vê-se o fado
Faz rir a ideia de ouvir com os olhos, senhores Fará, mas não p’ra quem já o viu, mas em cores Há vozes de Alfama naquela pintura E a banza derrama canções de amargura
Dali vos digo que ouvi a voz que se esmera O som dum faia banal, cantando a Severa Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa Boémia e fadista Aquilo é da artista, aquilo é Malhoa
Letra: José Galhardo Música: Frederico Valério
Ando na vida à procura
[ Triste Sorte ]
Ando na vida à procura Duma noite menos escura Que traga luar do céu, Duma noite menos fria Em que não sinta agonia Dum dia a mais que morreu.
Vou cantando amargurado, Vou dum fado a outro fado Que fale dum fado meu: Meu destino assim cantado Jamais pode ser mudado Porque do fado sou eu.
Ser fadista é triste sorte Que nos faz pensar na morte E em tudo que em nós morreu, E andar na vida à procura Duma noite menos escura Que traga luar do céu.
Letra: João Ferreira-Rosa Música: Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado Cravo) Intérprete: Camané Versão discográfica anterior de Camané (in CD/DVD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)
Outras versões: Camané (in 2CD “Como Sempre… Como Dantes”: CD 1 – “Como Sempre: Ao Vivo em Palco”, EMI-VC, 2003); Camané (in 2CD “Como Sempre… Como Dantes”: CD 2 – “Como Dantes: Ao Vivo no Embuçado”, EMI-VC, 2003); Camané (in DVD “Ao Vivo no S. Luiz”, EMI, 2006); Camané (in CD/DVD “Ao Vivo no Coliseu: Sempre de Mim”, EMI, 2009; 2CD “Camané: O Melhor 1995-2013 (Edição Especial)”: CD 1, EMI, 2013)
Versão original: João Ferreira-Rosa (in EP “Embuçado”, Columbia/VC, 1965; CD “Embuçado” (compilação), EMI-VC, 1988, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007; 2CD “Ontem e Hoje”: CD 1, EMI-VC, 1996; CD “O Melhor de João Ferreira-Rosa”, Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008; CD “João Ferreira-Rosa: Essencial”, Edições Valentim de Carvalho/CNM, 2014)
Outras versões: João Ferreira-Rosa (in LP “Fado”, Imavox, 1978); João Ferreira-Rosa (in CD “No Wonder Bar do Casino Estoril”, Ovação, 2004)
Bendita esta forma de vida
[ Bendito Fado, Bendita Gente ]
Intérprete: Mafalda Arnauth
Chegaste a horas
[ Leva-me aos fados ]
Intérprete: Ana Moura
Convém que seja moderno
[ Que Fado É Esse, Afinal? ]
Convém que seja moderno, Ritmado sem critério E fácil de consumir; Que não deixe de imitar As modas que estão a dar, Que não ouse resistir.
Convém que não seja triste, Que se venda, que se lixe O valor do seu passado; Que se sirva ao desbarato Como um hambúrguer no prato, Produto pré-fabricado.
Convém que seja feliz, Não importa o que se diz Se agradar a toda a gente; Que a nada diga respeito, Seja a música um efeito E a palavra indiferente.
Convém que seja educado, Que se cante em qualquer lado, Popular, comercial. Mas quando o oiço cantar, Só me resta perguntar: Que Fado é esse, afinal?
Mas quando o oiço cantar, Só me resta perguntar: Que Fado é esse, afinal?
Letra: Duarte Música: José Mário Branco (Fado Gripe) Intérprete: Duarte (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Deixa Que te Cante um Fado
Deixa que te cante um fado, Ao menos de vez em quando! Deixa que te cante um fado Como quem reza chorando!
Deixa que te cante um fado Que me fale sempre em ti! Cantarei de olhos cerrados, Os olhos com que te vi.
Deixa que te cante um fado, Mesmo sem fé ou sem arte! Se nunca pude esquecer-te É que não posso deixar-te.
Deixa que te cante um fado! Todo o meu sonho está nisto: Que depois de o ter cantado Te lembres que ainda existo.
Poema: Pedro Homem de Mello Música: José Marques do Amaral (Fado José Marques do Amaral) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Fados (Fado das Faias)”, RCA Victor, 1963; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978)
Descalço, venho dos confins da infância
[ Entrega ]
Descalço, venho dos confins da infância Que a minha infância ainda não morreu. Atrás de mim em face ainda há distância, Menino Deus, Jesus da minha infância, Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!
Venho da estranha noite dos poetas, Noite em que o mundo nunca me entendeu. Vê, trago as mãos vazias dos poetas, Menino Deus, amigo dos poetas, Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!
Feriu-me um dardo, ensanguentei as ruas Onde o demónio em vão me apareceu. Porque as estrelas todas eram suas, Menino irmão dos que erram pelas ruas, Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!
Quem te ignorar ignora bem os que são tristes Ó meu irmão Jesus, triste como eu. Ó meu irmão, menino de olhos tristes, Nada mais tenho além dos olhos tristes Mas o que tenho, e nada tenho, é teu!
Poema: Pedro Homem de Mello Música: Carlos Gonçalves Intérprete: Ricardo Ribeiro Primeira versão discográfica de Ricardo Ribeiro (in CD “Largo da Memória”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2013) Versão original: Amália Rodrigues (in LP/CD “Obsessão”, EMI-VC, 1990, reed. Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008)
Desdenharam-me, bem sei
[ Fado Lenitivo ]
Desdenharam-me, bem sei, Quando um dia comecei A cantar sofrida o fado; Não sabiam o motivo: É que o fado é lenitivo D’um coração torturado.
Ao ver de todo perdidas, As minhas esperanças mais queridas, Senti, fui talvez pisada; E era doce companhia Para a minha melancolia O chorar d’uma guitarra.
Amarguras e cansaços, A minha dor em pedaços Eu vou esquecendo a cantar; E nos queixumes do fado, Já nem sei se é um trinado Se a minh’alma a soluçar.
Sei que me ouves lamentando, As mágoas que vou cantando Só tu podes entender; Vou meu fado dedicar-te: Uma dor que se reparte Não custa tanto a sofrer.
Letra: Fernanda Santos Música: Helena Moreira Vieira Intérprete: Tânia Oleiro (in CD “Terços de Fado”, Museu do Fado Discos, 2016) Versão original: Maria do Rosário Bettencourt (in EP “Lenitivo”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1966; CD “Maria do Rosário Bettencourt”, col. Fados do Fado, vol. 41, Movieplay, 1998)
Desta luta constante
[ O fado que me traga ]
Desta luta constante O futuro é meu alento Numa roda gigante Tão gigante que pára o tempo
Uma volta sem regresso Até uma terra esquecida E na minha sorte tropeço Sozinha na madrugada perdida
O fado que me traga O que o tempo me levou A saudade que me abra O caminho do que sou O fado que me traga O que a saudade não deixou O sentido das palavras Que o tempo apagou
Uma lágrima no mar Perdida na voz do silêncio Aprisiona a ternura E adormece o meu encanto
Quando me sinto nua Não me quero ver mais ao espelho O destino não me quer tua Porque o amor morreu no desejo
O fado que me traga O que o tempo me levou A saudade que me abra O caminho do que sou O fado que me traga O que a saudade não deixou O sentido das palavras Que o tempo apagou
Letra: Samuel Lopes Música: Miguel Rebelo Intérprete: Ana Laíns (in CD “Sentidos”, Difference, 2006)
Deus pede
Conta e Tempo
Deus pede [hoje] estrita conta do meu tempo E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta; Mas como dar, sem tempo, tanta conta, Eu que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para dar a minha conta feita a tempo O tempo me foi dado, e não fiz conta; Não quis, sobrando tempo, fazer conta, Hoje quero acertar conta e não há tempo.
Oh! vós, que tendes tempo sem ter conta, Não gasteis o vosso tempo em passa-tempo! Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta Pois aqueles que sem conta gastam tempo, Quando o tempo chegar de prestar conta, Chorarão, como eu, o não ter tempo!
Poema: Frei António das Chagas (António da Fonseca Soares, 1631-1682) Música: José Júlio Paiva (Fado Complementar) Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)
Dizem que o fado é saudade
[ O Sentir do Cantador ]
Dizem que o fado é saudade, Miséria, sofrer e dor… Mas o fado é, na verdade, O sentir do cantador.
Em cada palavra sua, Em cada verso cantado, O cantador insinua A tristeza do seu fado.
Não canta por simpatia, Não canta para viver: É que cantando alivia Um pouco do seu sofrer.
Tornando tão magoado O timbre da sua voz, Que o fado fica gravado Na alma de todos nós.
Letra: Maria Manuel Cid Música: Francisco José Marques (Fado Évora) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Passeio à Mouraria”, RCA Victor, 1964; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978)
Então, até amanhã, meu dia triste
[ Último Poema ]
Então, até amanhã, meu dia triste, Na taverna da noite do meu fado, Onde canto o amor que não existe, Neste meu amanhã abandonado.
Grito dentro de mim a noite e o dia, Nesta hora do sonho mais profundo, Que regressa na voz da despedida Com que te vejo por estar no mundo.
Nas palavras amadas que perdi, O ontem que tu foste já me foge. “Então, até amanhã!”, disseste, e eu vi Que o amanhã não chega ao ontem de hoje.
“Então, até amanhã!”, disseste, e eu vi Que o amanhã não chega ao ontem de hoje.
Letra: Vasco de Lima Couto Música: Manuel Mendes Intérprete: Ricardo Ribeiro Primeira versão discográfica de Ricardo Ribeiro (in CD “Hoje É Assim, Amanhã Não Sei”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2016) Versão original: Beatriz da Conceição [ao vivo no Restaurante Típico Nónó, Lisboa
Era o amor
[ Verdes Anos ]
Era o amor que chegava e partia: estarmos os dois era um calor que arrefecia sem antes nem depois…
Era um segredo sem ninguém para ouvir: eram enganos e era um medo, a morte a rir nos nossos verdes anos…
Foi o tempo que secou a flor que ainda não era. Como o Outono chegou no lugar da Primavera!
Era o amor que chegava e partia: estarmos os dois era um calor que arrefecia sem antes nem depois…
Era um segredo sem ninguém para ouvir: eram enganos e era um medo, a morte a rir nos nossos verdes anos…
No nosso sangue corria um vento de sermos sós. Nascia a noite e era dia, e o dia acabava em nós…
Poema: Pedro Tamen (excerto) Música: Carlos Paredes (introdução de “Despertar”, in EP “Guitarradas Sob o Tema do Filme Verdes Anos”, Alvorada, 1964; CD “Carlos Paredes e Artur Paredes”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 36, Movieplay, 1994; CD “Os Verdes Anos de Carlos Paredes: As Primeiras Gravações a Solo 1962-1963”, Movieplay, 2003; Livro/4CD “O Mundo Segundo Carlos Paredes: Integral 1958-1993”: CD1 – “Despertar”, EMI-VC, 2003) Intérprete: Mariana Abrunheiro (in Livro/CD “Cantar Paredes”, Mariana Abrunheiro/BOCA – Palavras Que Alimentam, 2015) Versão original (canção): Teresa Paula Brito (in filme “Os Verdes Anos”, de Paulo Rocha, 1963) Outra versão de Teresa Paula Brito (in EP “Canções Para Fim de Noite”, Riso e Ritmo, 1968; CD “Teresa Paula Brito”, col. Clássicos da Renascença, vol. 61, Movieplay, 2000)
És Povo feito Mulher
[ Ai, Amália! ]
És Povo feito Mulher; A cantar és toda a gente que sabe aquilo que quer e diz aquilo que sente.
As tuas caras são tantas: mais de mil que Deus te deu… Com mil corações tu cantas e há mais mil dentro do teu.
Ai, Amália das mil caras e mais de mil corações! Ai, rio que nunca páras até à foz das canções!…
Nos ecos da tuz voz, nos silêncios que a torturam sofrem pedaços do nós, pedaços que se procuram.
Levantas a tua voz, o Fado nasce ao teu jeito! E sentimos todos nós que te cabemos no peito…
Ai, Amália das mil caras e mais de mil corações! Ai, rio que nunca paras até à foz das canções!…
Ai, Amália das mil caras e mais de mil corações! Ai, rio que nunca paras até à foz das canções!…
Letra: Luísa Bivar Música: João Braga Intérprete: João Braga (in LP “Do João Braga para a Amália”, Diapasão/Lamiré, 1984; CD “João Braga”, col. Fado Alma Lusitana, vol. 19, Levoir/Correio da Manhã, 2012)
Esta ilha que há em mim
[ A Ilha do Meu Fado ]
Esta ilha que há em mim E que em ilha me transforma Perdida num mar sem fim Perdida dentro de mim Tem da minha ilha a forma
Esta lava incandescente Derramada no meu peito Faz de mim um ser diferente Tenho do mar a semente Da saudade tenho o jeito
Trago no corpo a mornaça Das brumas e nevoeiros Há uma nuvem que ameaça Desfazer-se em aguaceiros Nestes meus olhos de garça
Neste beco sem saída Onde o meu coração mora Oiço sons da despedida Vejo sinais de partida Mas teimo em não ir embora
Letra: João Mendonça Letra: José Medeiros Intérprete: Dulce Pontes (in CDs “Caminhos”, Movieplay, 1996; “O Coração Tem Três Portas”, Ondeia Música, 2006)
Eu quero cantar palavras
[ Fado Não-Valentim ]
Eu quero cantar palavras De letras por inventar,
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
Implacáveis como espadas, Tão profundas como o mar.
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
As palavras por dizer Por dentro das que são ditas,
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
Impossíveis a crescer Por fora das mais bonitas.
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
Ditas todas devagar No silêncio mais sonante,
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
Como um conto de encantar, Como a vaga mais distante.
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
E quando para as cantar Elas se façam escrever,
Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
As letras serão meus lábios, A tinta o meu sangue a arder.
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
Dizer palavras de mel Até a voz ficar rouca.
Quero outro fado, ó-laró-laró! Quero outro fado, ó-laró, meu bem!
Gastar toda a minha pele Nos beijos da tua boca.
Quero outro fado, ó-laró-laró…, Nos beijos da tua boca.
Letra: João Gigante-Ferreira Música: Popular Intérprete: Helena Sarmento Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
Eu sei que esperas por mim
[ Mais um Fado no Fado ]
Eu sei que esperas por mim, Como sempre, como dantes, Nos braços da madrugada; Eu sei que em nós não há fim, Somos eternos amantes Que não amaram mais nada.
Eu sei que me querem bem, Eu sei que há outros amores Para bordar no meu peito; Mas eu não vejo ninguém Porque não quero mais dores Nem mais bâton no meu leito.
Nem beijos que não são teus Nem perfumes duvidosos, Nem carícias perturbantes; E nem infernos, nem céus, Nem sol nos dias chuvosos, Porque ‘inda somos amantes.
Mas Deus quer mais sofrimento, Quer mais rugas no meu rosto E o meu corpo mais quebrado; [bis] Mais requintado tormento, Mais velhice, mais desgosto E mais um fado no fado.
Letra: Júlio de Sousa Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição) Intérprete: Camané Outras versões: Camané (in CD “Pelo Dia Dentro”, EMI-VC, 2001; 2CD “Camané: O Melhor 1995-2013 (Edição Especial)”: CD 2, EMI, 2013); Camané (in 2CD “Como Sempre… Como Dantes”: CD 1 – “Como Sempre: Ao Vivo em Palco”, EMI-VC, 2003); Camané (in DVD “Ao Vivo no S. Luiz”, EMI, 2006) [ao vivo com Fábia Rebordão, 2008 / Gala 12 do programa “Operação Triunfo”; Camané (in CD/DVD “Ao Vivo no Coliseu: Sempre de Mim”, EMI, 2009). Versão original [?]: Rui David (com música de Alfredo Marceneiro – Fado Cravo) (in EP “Meu Amor, Minha Saudade”, FF/RR Discos, ?)
Eu sei que sou demais
Eu sei que sou demais na tua vida, Eu sei que nem me vês tão apagado, Apenas uma sombra indefinida, O resto de voz triste condenada. Eu sei que sou demais na tua vida, De tudo quanto fui não sou mais nada.
Ai quem me dera prender o teu futuro E uni-lo ao meu, assim tal maneira, Como hera verde se prende ao velho muro E ali fica p’la vida inteira!
Eu sei que estou a mais no teu caminho, Eu sei que nada tens p’ra me dar, E sei que nesta luta estou vencido Por outro amor que tens no meu lugar. Mas sei, amor, que eu, da tua vida, Ninguém jamais, ninguém pode apagar.
Ai quem me dera prender o teu futuro E uni-lo ao meu, assim tal maneira, Como hera verde se prende ao velho muro E ali fica p’la vida inteira!
Ai quem me dera prender o teu futuro E uni-lo ao meu, assim tal maneira, Como hera verde se prende ao velho muro E ali fica p’la vida inteira!
Letra e música: Joaquim Tavares Pimentel Intérprete: Ricardo Ribeiro Primeira versão discográfica de Ricardo Ribeiro (in CD “Hoje É Assim, Amanhã Não Sei”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2016) Versão original: Alice Maria (in EP “Primeiro Amor”, Estúdio/Mundusom, 1972?)
Eu uso um xaile bordado
[ Num Gesto Que se Adivinha ]
Eu uso um xaile bordado Porque os p’rigos que há no fado São bem maiores que os da vida; O xaile é como uma pele E quando me embrulho nele Sinto-me mais protegida.
Parece umas mãos de mãe: Sabem guiar-nos tão bem E sossegam tantos medos Que sempre que elas me tocam As franjas do xaile evocam A ternura dos seus dedos.
Num gesto que se adivinha O xaile é uma andorinha Num céu que eu mesma criei; Mas assim que o braço pára O xaile que antes voara Parece o manto de um rei.
E quando o corpo desiste Numa palavra mais triste, Num grito mais demorado, O xaile velho e sem franjas São asas de anjos ou anjas Que me aconchegam ao Fado.
O xaile velho e sem franjas São asas de anjos ou anjas Que me aconchegam ao Fado.
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Armando Machado (Fado Maria Rita) Intérprete: Katia Guerreiro* (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)
Existe um fado
[ Não Existe Fado Antigo ]
Existe um fado, um só fado Que assenta na tradição; E p’ra ser bem cantado Só faz falta um coração.
Não é por pôr uma tuba, Acrescentar a bateria Que uma geração derruba O que antes se fazia.
Não quero a eternidade Nem os momentos de glória: Quero deixar na saudade Um pouco da minha história.
Não existe fado novo Como não há fado antigo: Ele é o grito que um povo Carrega sempre consigo.
Não existe fado novo Como não há fado antigo: Ele é o grito que um povo Carrega sempre consigo.
Letra: Tiago Torres da Silva Música: João do Carmo Noronha (Fado Pechincha) Intérprete: Celeste Rodrigues (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)
Foi assim
[ Lume ]
Foi assim: era costume… Tu vinhas pedir-me lume Ao balcão daquele bar E eu disse que não, primeiro; Depois, comprei um isqueiro E até voltei a fumar.
As noites que nós passámos! Quantos cigarros fumámos! Tanto lume que eu te dei! Um dia acordei com frio: Estava o cinzeiro vazio E nunca mais te encontrei.
Mas ontem, naquele bar De repente vi-te entrar, Foste direita ao balcão: Como era teu costume Vieste pedir-me lume Mas eu disse-te que não.
Se quando te foste embora Deitei o isqueiro fora, Que lume te posso eu dar? Pede a outro que te ajude! P’ra bem da minha saúde Eu já deixei de fumar.
Sem dormir, de madrugada Ouvi teus passos na escada, Vi da janela o teu carro; Debaixo do travesseiro Encontraste o meu isqueiro E acendeste-me o cigarro.
Letra: Manuela de Freitas Música: Armando Machado (Fado Santa Luzia) Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)
Já toda a gente sabe
[ Aos Sete Ventos ]
Já toda a gente sabe a novidade: o Fado, que nasceu na Mouraria, é Património da Humanidade e quebra mais fronteiras dia a dia.
Há quem tenha aprendido português p’ra entender de um modo mais profundo os fados que a ‘Amália Rodriguez’ cantava aos sete ventos pelo mundo.
‘Thank you’, ‘gracias’, ‘merci’ ou ‘arigato’ são formas de o fadista agradecer: quando ao chegar o fim de cada acto vê lágrimas nos rostos a escorrer.
Em Espanha, no Brasil ou no Japão o Fado é cada vez mais bem cantado; e porque ali se escuta um coração é Portugal que diz: “muito obrigado!”
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Armando Machado (Fado Aracélia ou Fado Cunha e Silva) Intérprete: Cristina Branco (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)
Lavava no rio lavava
Lavava no rio lavava Gelava-me o frio gelava Quando ia ao rio lavar Passava fome passava Chorava também chorava Ao ver minha mãe chorar
Cantava também cantava Sonhava também sonhava E na minha fantasia Tais coisas fantasiava Que esquecia que chorava Que esquecia que sofria
Já não vou ao rio lavar Mas continuo a chorar Já não sonho o que sonhava Se já não lavo no rio Por que me gela este frio Mais do que então me gelava
Ai minha mãe, minha mãe Que saudades desse bem Do mal que então conhecia Dessa fome que eu passava Do frio que me gelava E da minha fantasia
Já não temos fome, mãe Mas já não temos também O desejo de a não ter Já não sabemos sonhar Já andamos a enganar O desejo de morrer
Letra: Amália Rodrigues Música: José Fontes Rocha Intérprete: Amália Rodrigues (in “Gostava de Ser Quem Era”, Columbia/VC, 1980, reed. EMI-VC, 1995; CD “O Melhor de Amália”, vol. III, EMI-VC, 2003)
Luas de prata gentia
[ Se ao menos houvesse um dia ]
Luas de prata gentia Nas asas de uma gazela E depois, do seu cansaço, Procurasse o teu regaço
No vão da tua janela Se ao menos houvesse um dia Versos de flor tão macia Nos ramos com as cerejas E depois, do seu Outono, Se dessem ao abandono Nos lábios, quando me beijas Se ao menos o mar trouxesse O que dizer e me esquece Nas crinas da tempestade As palavras litorais As razões iniciais Tudo o que não tem idade Se ao menos o teu olhar Desse por mim ao passar
Como um barco sem amarra Deste fado onde me deito Subia até ao teu peito Nas veias de uma guitarra
Letra: João Monge Música: Casimiro Ramos (Fado Três Bairros)
Intérprete: Camané (in CD “Esta Coisa da Alma”, EMI-VC, 2000)
Na ribeira deste rio
Na ribeira deste rio Ou na ribeira daquele Passam meus dias a fio Nada me impede, me impele Me dá calor ou dá frio
Vou vendo o que o rio faz Quando o rio não faz nada Vejo os rastros que ele traz Numa sequência arrastada Do que ficou para trás
Vou vendo e vou meditando Não bem no rio que passa Mas só no que estou pensando Porque o bem dele é que faça Eu não ver que vai passando
Vou na ribeira do rio Que está aqui ou ali E do seu curso me fio Porque se o vi ou não vi Ele passa e eu confio
Letra: Dori Caymmi, sobre poema de Fernando Pessoa Música: Dori Caymmi ? Intérprete: Paulo Bragança (in CD “Os Mistérios do Fado”, Polydor, 1996)
Na tua voz
[ Amália ]
Na tua voz há tudo o que não há, há tudo o que se diz e não se diz; Há os sítios da saudade em tua voz, o passado, o futuro, o nunca, o já; Há as sílabas da alma e há um país. Porque tu, mais que tu, és todos nós.
Na tua voz embarca-se e não mais, não mais senão o mar e a despedida. Há um rasto de naufrágio em tua voz, onde há navios a sair do cais, nessa voz por mil vozes repartida. Porque tu, mais que tu, és todos nós.
Há mar e mágoa, e a sombra de uma nau, a gaivota de O’Neill e o rio Tejo, saudade de saudade em tua voz, um eco de Camões e o escravo Jau, amor, ciúme, cinza e vão desejo. Porque tu, mais que tu, és todos nós.
Amor, ciúme, cinza e vão desejo. Porque tu, mais que tu, és todos nós.
Poema: Manuel Alegre Música: José Fontes Rocha Intérprete: João Braga (in CD “Fado Fado”, Ariola/BMG Portugal, 1997; CD “Fados Capitais”, Impreopa/A Capital, 2002)
Não Sou Fadista de Raça
Não sou fadista de raça, Não nasci no Capelão; Eu canto o fado que passa Nas asas da tradição!
Nunca usei negra chinela Nem vesti saia de lista; Nunca entrei numa viela Mas tenho raça fadista!
Tirei suspiros ao vento, Olhei um pouco o passado; Busquei do mar um lamento E fiz assim o meu fado.
É este fado famoso Que, em noites enluaradas, O Conde de Vimioso Tangia nas guitarradas.
Era fidalgo de raça E ficou na tradição Cantando o fado que passa Na Rua do Capelão.
Letra: Maria Teresa Cavazinni Música: Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado Bailarico) Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “O Riso Que me Deste”, RCA Victor, 1967; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)
Nesta terra soberana e fadista
[ No Sítio do Coração ]
Nesta terra soberana e fadista Concebido fruto da contradição Eu nasci independente e meio artista Navegante e poeta de ocasião Eu nasci independente, mar à vista Marinheiro e idealista de ocasião
Há quem diga que o futuro já está escrito E por isso não adianta o que eu fizer Outros dizem que isso não é mais que um mito Inventado por um príncipe qualquer
Canta! Ouve a guitarra que trina Acompanhando o lamento De tantas penas em vão! Sente O sentimento da gente Que já só tem desalento No sítio do coração!
Da janela do meu quarto vê-se o rio Branqueando as suas águas na maré Desaguando as suas mágoas num vazio Para quem foi tudo pouco nada é E ao olhar o seu reflexo tão vazio Alguém viu que ele finge que não vê
Canta! Ouve a guitarra que trina Acompanhando o lamento De tantas penas em vão! Sente O sentimento da gente Que já só tem desalento No sítio do coração!
Eu nasci independente e meio artista Navegante e poeta de ocasião
Canta! Ouve a guitarra que trina Acompanhando o lamento De tantas penas em vão! Sente O sentimento da gente Que já chegou o momento De ouvirmos outra canção!
Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão) Música: Rui Filipe Reis Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)
Nunca tive moeda de troca
[ Moeda de Troca ]
Nunca tive moeda de troca Para o que recebi da saudade Mas é só pelo que ela me toca Que tudo o que canto, é verdade É essa a moeda de troca Cantar o meu fado, para o dar à saudade.
Mas às vezes o fado acontece Sem que a gente entenda, O que fez E o fadista cansado agradece E chora baixinho, outra vez
Quero unir a minha às vossas almas Sem perder a saudade de vista Não me importa que me batam palmas Ou gritem à grande “Ahhh fadista!!” Quero ouvir o silêncio das almas Assim que o mistério do fado as conquista.
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Manuel Graça Pereira Intérprete: Catarina Rocha
O Fado é triste
[ Fado do Contra ]
Perguntaste-me outro dia
[ Tudo Isto É Fado ]
Perguntaste-me outro dia Se eu sabia o que era o fado; Eu disse que não sabia, Tu ficaste admirado.
Sem saber o que dizia, Eu menti naquela hora E disse que não sabia, Mas vou-te dizer agora.
Se queres ser o meu senhor E teres-me sempre a teu lado, Não me fales só de amor: Fala-me também de fado.
A canção que é meu castigo Só nasceu p’ra me prender: O fado é tudo o que eu digo Mais o que eu não sei dizer.
Almas vencidas, Noites perdidas, Sombras bizarras; Na Mouraria Canta um rufia, Choram guitarras.
Amor, ciúme, Cinzas e lume, Dor e pecado: Tudo isto existe, Tudo isto é triste, Tudo isto é fado.
Se queres ser o meu senhor E teres-me sempre a teu lado, Não me fales só de amor: Fala-me também de fado.
A canção que é meu castigo Só nasceu p’ra me prender: O fado é tudo o que eu digo Mais o que eu não sei dizer.
Almas vencidas, Noites perdidas, Sombras bizarras; Na Mouraria Canta um rufia, Choram guitarras.
Amor, ciúme, Cinzas e lume, Dor e pecado: Tudo isto existe, Tudo isto é triste, Tudo isto é fado.
Letra: Aníbal Nazaré Música: Fernando Carvalho Intérprete: Rua da Lua Primeira versão de Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016) Versão original: Amália Rodrigues (grav. 1952) (in CD “Abbey Road 1952”, EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Quando o fado era menino
[ Quando o Fado For Grande ]
Quando o Fado era menino Dizia: “quando eu for grande Hei-de inventar um destino Que meu coração comande.”
E percebeu que os poetas Eram quem, como as crianças, Abriam portas secretas Sem chaves nem alianças.
Ao entrar no universo Do poeta popular, Ele vai escrevendo um verso Que já nasce milenar.
E por saber que os adultos Podem voltar à infância, Não quer que os poetas cultos Se mantenham à distância.
Rouba um poema a Pessoa, Ao Ary pede uma glosa E uns versos sobre Lisboa Ao mestre Linhares Barbosa.
Se voltasse a ser menino Diria: “quando eu crescer Hei-de inventar um destino Num poema por escrever.”
Letra: Tiago Torres da Silva Música: Alberto Simões da Costa (Fado Torres do Mondego) Intérprete: Ricardo Ribeiro (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)
Se o fado é esta sina
[ É o Mar Que nos Ensina ]
Se o fado é esta sina que nos lava a alma, é o mar quem nos ensina quando nos devolve a calma.
Não aceitar pantomina, o que a sorte nos destina. Sem saber o que queremos, temos o que merecemos.
A vida assim não é um canto à dor. O fado é sina mas também amor.
Diziam que era um povo que não se governava, mas forte o coração não se deixava governar.
Somos terra de lavrar e sabemos o mar de cor, mas esta gente a cantar é bem capaz do melhor.
A vida assim não é um canto à dor. O fado é sina mas também amor.
E lá bem no fim do mundo, não se entendendo as palavras, sente-se a saudade eterna no trinado das guitarras.
Porque a razão não se entende nem se vê o fim ao mar, mas na voz ainda há quem pense ver o fado a marear.
A vida assim não é um canto à dor. O fado é sina mas também amor.
A vida assim não é um canto à dor. O fado é sina mas também amor.
Letra e música: José Barros Arranjo: José Barros e Mimmo Epifani Intérprete: José Barros e Navegante Versão original: José Barros e Navegante (in CD “À’Baladiça”, Tradisom, 2018)
Sou do Fado
[ Loucura ]
Intérprete: Ana Moura
Sou cavaleiro errante
[ Fado Mutante ]
Sou cavaleiro errante Deserto, imensidão E vou errando sempre buscando o Oriente Secreto no meu coração
Sou cavaleiro ausente Tão-só recordação E vou atrás do vento que vem de Levante E cheira a jasmim e açafrão
Um dia vou contar a minha história Talvez assim me prestes atenção Porque o que eu sou é parte da memória Que a gente tem guardada num caixão
Ai este fado mutante De lua emigrante De tempo liberto Ai esta sina minguante Às vezes tão longe As vezes tão perto
Tão longe, tão longe, tão perto…
Sou cavaleiro andante Herói de uma ficção E levo sempre a luz de uma estrela cadente Na palma da minha mão…
Um dia vou contar a minha história Talvez assim me prestes atenção Porque o que eu sou é parte da memória Que a gente tem guardada num caixão
Ai este fado mutante De lua emigrante De tempo liberto Ai esta sina minguante Às vezes tão longe Às vezes tão perto
Às vezes longe Às vezes perto Às vezes longe Às vezes perto Às vezes longe Às vezes perto Às vezes longe Às vezes perto
Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão) Música: Rui Filipe Reis Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)
Sou do fado
[ É Loucura ]
Sou do fado como sei, Vivo um poema cantado Dum fado que eu inventei. A falar não posso dar-me, Mas ponho a alma a cantar, E as almas sabem escutar-me.
Chorai, chorai, poetas do meu país Troncos da mesma raiz Da vida que nos juntou! E se vocês não estivessem a meu lado, Então… não havia fado Nem fadistas como eu sou.
Esta voz, tão dolorida, É culpa de todos vós, Poetas da minha vida. “É loucura!”, oiço dizer, Mas bendita esta loucura De cantar e de sofrer.
Chorai, chorai, poetas do meu país, Troncos da mesma raiz Da vida que nos juntou! E se vocês não estivessem a meu lado, Então… não havia fado Nem fadistas como eu sou.
E se vocês não estivessem a meu lado, Então… não havia fado Nem fadistas como eu sou.
Letra: Júlio de Sousa Música: Júlio de Sousa (Fado Loucura) Intérprete: Marta Pereira da Costa Versão original: Lucília do Carmo (in LP “Recordações”, Decca/VC, 1971, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008; 2LP/CD “O Melhor de Lucília do Carmo”, EMI-VC, 1990; CD “O Melhor de Lucília do Carmo”, Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008)
Sou filho de um deus menor
[ Adeus, Até um Outro Dia ]
Sou filho de um deus menor E de um corrido maior Mas seja lá o que for Já nasci com esta dor
Cresci no fio da navalha Sei a cartilha de cor Num coração de canalha Mora um pobre pinga-amor
Ai mas que triste a triste vida em que vive um desgraçado Sempre a cavalo entre a desgraça e o fado malogrado
Muito boa noite, minhas senhoras, meus senhores! Desculpem lá o meu atraso, cheguei tarde mas cheguei E já que vim o melhor é eu cantar E só não canto melhor porque eu não sei
A minha sorte na vida Já adivinho qual é: Ser uma rosa enjeitada De que ninguém quer saber
Em tudo eu sou infeliz Mesmo até no meu cantar Põe-se a tremer a guitarra Antes de me acompanhar
Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela companhia No peito levo uma saudade, adeus, até um outro dia
Muito obrigado madames e cavalheiros Mostrem lá os mealheiros para eu me motivar E já que pedem vou-vos fazer a vontade Que eu só canto pelo gosto de cantar
Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela companhia No peito levo uma saudade, adeus, até um outro dia Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela… em tão bela companhia No peito levo… levo uma saudade, adeus, adeus, até um outro dia
Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela companhia No peito levo uma saudade, adeus, até um outro dia
Muito obrigado madames e cavalheiros Mostrem lá os mealheiros para eu me motivar E já que pedem vou-vos fazer a vontade Que eu só canto pelo gosto de cantar
Muito obrigado madames e cavalheiros Os aplausos servem sempre para eu me consolar E já que pedem vou-vos fazer a vontade Que eu só canto pelo gosto de cantar
Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão) Música: Rui Filipe Reis Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)
Temos pena, hoje não dá
[ Fado Abananado ]
Temos pena, hoje não dá estou fechada para balanço Temos pena, hoje não dá estou fechada para balanço querem fado, pois não há se não gostam como eu danço querem fado, pois não há se não gostam como eu danço”
Desculpe lá, turista Bater o nariz na porta A nossa fadista Está numa de ir embora Diz ela que não canta Se não for para dançar Falar, pouco adianta Pois responde a cantar:
Refrão
Desculpe lá, turista Também sinto aquilo que sente A ingrata fadista Acha que hoje isto é diferente “fruta cristalizada” Diz que é “só no bolo rei!” Já nos mandou à fava E canta por aí, que eu sei:
Refrão
Desculpe lá, turista Já tomámos providência É a sétima fadista Com esta exigência Querem abanar o fado E nós dizemos que não Mas o fado, abananado, Já só pega de abanão
Refrão
Pedro da Silva Martins Música: Manuel Graça Pereira Intérprete: Catarina Rocha
Toda a saudade é fingida
[ Covers ]
Toda a saudade é fingida, A tristeza disfarçada: Parecem já não ter vida, De fado não têm nada.
Já não são fados, são ‘covers’: Imitações desalmadas, Reproduções do destino Tantas vezes tão cantadas.
Esses que tentam viver Aquilo que outros viveram Acabam por se perder No tanto que não fizeram.
Vampiragem pós-moderna Da Lisboa dos turistas: Falam da velha taberna Mas querem ser futuristas.
Letra: Duarte Música: João do Carmo Noronha (Fado Pechincha) Intérprete: Duarte (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Verdes ondas branca flor
[ Fado Azul (Se Azul se Atreve) ]
Verdes ondas branca flor Cor-do-vento espuma breve Verdes ondas branco-em-flor Cor-do-vento espuma breve Qualquer cor a do Amor Beijo-azul p’ra quem se atreve Qualquer cor a do Amor Beijo-azul p’ra quem se entregue
Como barco rumo ao sul No meu corpo a maresia Como barco rumo ao sul No meu corpo a maresia À procura desse azul Que o teu corpo prometia Na procura desse azul Naveguei-te até ser dia
Tão constante foste vaga Tão ardente a maré-viva Tão constante foste vaga Tão ardente a maré-viva Tua proa que naufraga Nosso rasto de saliva Tua proa que em mim naufraga Nossas bocas à deriva
Este jeito de ser livre Na prisão da tua boca Este jeito de ser livre Na prisão da tua boca Sabe a tudo onde não estive Lucidez que me põe louca Sabe a tudo onde não estive Lucidez é coisa pouca
Somos chuva tão precisa Somos ventos do Magrebe Somos ecos da Galiza Somos tudo o que se perde Somos língua que desliza Como tudo o que se escreve Somos beijo desta brisa Beijo-azul se azul se atreve.
Letra: João Gigante-Ferreira Música: Francisco Viana (Fado Vianinha) Intérprete: Helena Sarmento Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
Voar
[ Fado em Branco ]
Voar Sem culpa do mar Que nunca se deita Sentir A chuva a cair De vida insuspeita
Sofrer A dor de morrer Na dor imperfeita Sorrir Por dentro mentir Verdade perfeita
Assim é a vida De dor dividida Cerrada no peito Um barco à deriva Verdade fingida Doença sem leito
Eu bem que não queria Saber algum dia Que sempre serei O vento do norte Sem vida nem morte Sem crime nem lei
Amar De amor sufocar A boca na boca
Florir Ficar e partir De tanto ser pouca
Vender De graça o prazer Sentir como louca
Chorar Sem culpa do mar Do beijo e da boca
Assim é a vida De amor dividida Cerrada no peito Um barco à deriva Mentira fingida Doença sem leito
Eu bem que não queria Saber algum dia Que sempre serei O vento do norte Sem vida nem morte Sem crime nem lei
Eu bem que não queria Saber algum dia Que sempre serei O vento do norte Sem vida nem morte Sem crime nem lei
O verso da sorte Sem que isso me importe Saber que cheguei
Letra: João Gigante-Ferreira Música: Samuel Cabral e João Gigante-Ferreira Intérprete: Helena Sarmento Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
Poema de Sebastião da Gama (in “Campo Aberto”, Lisboa: Portugália, 1951; Lisboa: Edições Ática, Colecção Poesia, 4.ª edição, 1983 – p. 45) Recitado por José Nobre (in CD “Sebastião da Gama: Meu Caminho É por Mim Fora”, JGC, 2010) Música: Rui Serôdio
Dá-se aos que têm sede, não exige pureza. Ah!, se fôssemos puros, p’ra melhor merecê-la…
Sabe a terra, a montanhas, caules tenros, raízes, e no entanto desce da floresta dos mitos.
Água tão generosa como a que a gente bebe, fuja dela Narciso e quem não tenha sede.
Na viagem
[ Viagem do Verso ]
Letra: José Flávio Martins Música: Cristina Bacelar Intérprete: Frei Fado d’El Rei (in CD “Em Concerto”, Açor/Emiliano Toste, 2003)
Na viagem De cada palavra, Cada verso Muda o tempo do saber!
No destino Da estrofe nascente, Cada frase, É um rio solitário!
No regresso Do verbo “chegar”, Porque chego e me despeço, À noite, ao luar!…
Sou um verso de marés… Sobre a rima de um poema! Sou um verso de marés… Sobre a rima de um poema!
Em ti… mora, o meu beijo! Porque… chora, meu poema!…
No destino Da estrofe nascente, Cada frase, É um rio solitário!
No regresso Do verbo “chegar”, Porque chego e me despeço, À noite, ao luar!…
Sou um verso de marés… Sobre a rima de um poema! Sou um verso de marés… Sobre a rima de um poema!
Se ao menos houvesse um dia
Letra: João Monge Música: Casimiro Ramos (Fado Três Bairros) Intérprete: Camané (in CD “Esta Coisa da Alma”, EMI-VC, 2000)
Se ao menos houvesse um dia Luas de prata gentia Nas asas de uma gazela E depois, do seu cansaço, Procurasse o teu regaço No vão da tua janela
Se ao menos houvesse um dia Versos de flor tão macia Nos ramos com as cerejas E depois, do seu Outono, Se dessem ao abandono Nos lábios, quando me beijas
Se ao menos o mar trouxesse O que dizer e me esquece Nas crinas da tempestade As palavras litorais As razões iniciais Tudo o que não tem idade
Se ao menos o teu olhar Desse por mim ao passar Como um barco sem amarra Deste fado onde me deito Subia até ao teu peito Nas veias de uma guitarra
Senhores jurados sou um poeta
[ A Defesa do Poeta ]
Poema de Natália Correia (in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1993) Recitado por Afonso Dias Também recitado pela autora (in EP “Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria”, VC, 1969; CD “A Defesa do Poeta”, EMI-VC, 2003)
Senhores jurados sou um poeta um multipétalo uivo um defeito e ando com uma camisa de vento ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto e por fim com a paciência dos versos espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos (curtido couro de cicatrizes) uma avaria cantante na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade o vosso enfarte serei não há cidade sem o parque do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes a prémio minha rara edição de raptar-me em crianças que salvo do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho de em pó volverdes sois os reis sou um poeta jogo-me aos dados ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes puro exercício de ninguém minha cobardia é esperar-vos umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete que medo vos pôs na ordem? que pavor fechou o leque da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais a pena na tinta da natureza não apedrejeis meu pássaro sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas apanhadas em delito de paixão a raiz quadrada da flor que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta de um verso onde o possa escrever. Ó subalimentados do sonho! a poesia é para comer.
Ser poeta
[ Existir (O Homem e o Universo) ]
Poema: Fernando Pessoa/Alberto Caeiro (compilação de versos extraídos d’ “O Guardador de Rebanhos” e de “Poemas Inconjuntos”, in “Poemas de Alberto Caeiro”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Lisboa: Edições Ática, 1946, 10.ª edição, 1993 – p. 22, 25, 50, 48, 83, 99, 57, 62, 68-69)
Adaptação: Samuel Lopes Música: Samuel Lopes Intérprete: Citânia com Luís Filipe Sarmento
Versão original: Citânia com Luís Filipe Sarmento (in Livro/CD “Segredos do Mar”, Seven Muses, 2011)
Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho. Amar é a eterna inocência, E a única inocência é não pensar… O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê, Nem ver quando se pensa. O que é preciso é ser-se natural e calmo Na felicidade ou infelicidade, Sentir como quem olha, Pensar como quem anda, Assim é e assim seja. Basta existir para se ser completo. Basta existir para se ser completo. Quero as coisas que existem, Não o tempo que as mede. A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos. Querer mais é perder isto, e ser infeliz. Bendito seja o mesmo Sol de outras terras, Que faz meus irmãos todos os homens. Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu. Basta existir para se ser completo. Basta existir para se ser completo. Procuro dizer o que sinto, Sem pensar em que o sinto. Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu. E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, Mas como quem sente a Natureza, e mais nada. E assim escrevo, ora bem, ora mal, Caindo aqui, levantando-me acolá, Mas indo sempre no meu caminho. Ainda assim, sou alguém. Sou o Descobridor da Natureza. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-próprio.
Ser poeta é ser mais alto
[ Perdidamente ]
Poema: Florbela Espanca Música: João Gil Intérprete: Trovante (in CD “Terra Firme”, EMI-VC, 1987)
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhas de oiro e de cetim… É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente… É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!
Acredito em pouca coisa que venha escrita em loiça, dessa de pôr na parede.
Acredito mais no desempenho da laranja que apanho, que como e me mata a sede.
Acredito nas façanhas, muito menos nas patranhas de quem faz só porque sim.
Acredito nas crianças, no meu ventre são esperanças de um futuro sem fim.
Acredito na loucura de quem pede mais ternura e vira costas à guerra.
Acredito na fé dos outros que às vezes abrem poços só para encontrar mais terra.
Acredito no Caetano, no Zambujo que é meu mano, em todas as vozes calmas.
Acredito na poesia e também na aletria, em todos adoçantes de almas.
Acredito na minha mãe, ela que sofreu bem para que eu fosse como sou.
Crente nos frutos e flores, nos mais impossíveis amores, onde o Sol mais brilhar eu estou.
Eu estou Eu estou Eu estou Eu estou Eu estou
Letra: Celina da Piedade Música: Alex Gaspar Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)
Eu ia não sei p’ra onde
[ Que Bonito Que Seria ]
Cantiga primeira:
Eu ia não sei p’ra onde, Encontrei não sei quem era: Encontrei o mês de Abril Procurando a Primavera.
Moda:
Que bonito que seria Se houvesse compreensão: Os homens não se matavam E davam-se como irmãos.
É tão linda a Liberdade, Até que chegou um dia; Se houvesse compreensão, Então que bonito que seria.
Cantiga segunda:
Não há bem que sempre dure Nem mal que não acabe; Mas há quem lute Pelo fim desta nossa Liberdade.
Moda:
Que bonito que seria Se houvesse compreensão: Os homens não se matavam E davam-se como irmãos.
É tão linda a Liberdade, Até que chegou um dia; Se houvesse compreensão, Então que bonito que seria.
Letra e música: Popular (Alentejo) Intérprete: Grupo Coral “Os Ganhões de Castro Verde” (in CD “O Círculo Que Leva a Lua”, Associação de Cante Alentejano “Os Ganhões”, 2003; Livro/2CD “Terra: Antologia 1972-2006”: CD 2, Associação de Cante Alentejano “Os Ganhões”, 2006) Primeira versão do Grupo Coral “Os Ganhões de Castro Verde” (in LP “Os Ganhões de Castro Verde”, Metro-Som, 1980, reed. Metro-Som, 1997)
É o amor
[ Juntos somos mais fortes ]
Intérprete: Amor Electro
Nunca sofri de raça
[ Sangue Bom ]
Nunca sofri de raça Minha pele é muito boa Tenho sangue mouro de Goa E sangue louro de Mombaça
Saiba o senhor Minha raça é meio-errante Num dia sou quase zulu No outro dia, xavante Mulato, preto-fulo
Saiba o senhor Saiba o senhor
Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça é superstição de gente mal arraçada
Saiba o senhor: eu não creio em raça, não, raça danada Raça é superstição de gente mal arraçada Eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não
Eu sou o avesso da raça Minha alma é muito à toa Gosto d’amêijoas com jimboa A toda a mistura acho graça
Saiba o senhor Saiba o senhor
Minha raça é um jardim Num dia sou quase azul No outro, cor de marfim Sou Bissau e sou Cochim
Saiba o senhor Saiba o senhor
Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça é superstição de gente mal arraçada
Saiba o senhor: eu não creio em raça, não, raça danada Raça é superstição de gente mal arraçada Eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Raça danada, eu não creio em raça, não Eu não creio em raça, não
(Raça dum cabrão!) Poema: José Eduardo Agualusa (Para o Caetano Veloso que quis um dia saber a minha raça) Música: João Afonso Lima Intérprete: João Afonso com António Afonso
São dois braços
[ Canção dos abraços ]
São dois braços, são dois braços Servem p’ra dar um abraço Assim como quatro braços Servem p’ra dar dois abraços
E assim por ai fora Até que quando for a hora Vão ser tantos os abraços Que não vão chegar os braços
Vão ser tantos os abraços Que não vão chegar os braços P’ra os abraços
Intérpete: Sérgio Godinho
Sérgio Godinho
Da peça de Sérgio Godinho Eu, tu, ele, nós, vós, eles
1. Bebe a terra negra e à terra as árvores as águas aos ventos o sol às águas e ao sol a lua E as estrelas claras Porque é que só eu não hei-de beber?
2. Traz a água e o vinho e coroas de flores que agora com Eros me debato…
3. De novo amo e já amo Deliro e não deliro Estou louco e não estou louco
Poema: Anacreonte (Grécia, séc. VI a.C.) (in O Vinho e as Rosas: Antologia de Poemas Sobre a Embriaguez , org. Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 1995) Recitado por Carlos Mota de Oliveira Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)
DEVE-SE ESTAR SEMPRE EMBRIAGADO
[Embriagai-vos ]
Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais importa. Para que o horrível fardo do tempo não vos pese sobre os ombros e vos faça pender para a terra, deveis embriagar-vos sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos! E se um dia, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma valeta, na solidão baça do vosso quarto, acordades, já sóbrios, perguntai ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai: “Que horas são?”. E o vento, a onda, a estrela, a ave, o relógio, responder-vos-ão: “São horas de vos embriagardes!”. Para que não sejais os escravos martirizados do tempo, embriagai-vos sem cessar. De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha.
Poema em prosa: Charles Baudelaire (in O Vinho e as Rosas: Antologia de Poemas Sobre a Embriaguez, org. Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 1995) Recitado por Carlos Mota de Oliveira Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)
DONDE VEM RODRIGO
[ Cantigas às Serranas ]
Donde vem Rodrigo, Donde vem Gonçalo, De sachar o milho, De mondar o prado.
Seja diligente Quem amor semeia, Que quem não granjeia Não colhe a semente. Semeou Rodrigo, Semeou Gonçalo, Haverão do milho Se mondam o prado. Quem de amor se esquece No tempo de verde, Não colhe o que perde Entre erva que cresce, Por isso Rodrigo, Por isso Gonçalo, Vão sachar o milho, Vão mondar o prado. Amor que aproveita, Se antes de gradar Cresce em seu lugar Ciúme e suspeita, Triste de Rodrigo, Triste de Gonçalo, Mal por seu cuidado, Se não sacha o milho, Se não monda o prado. Amor que ficou Em terra deserta Colhe quem acerta, Não quem semeou. Semeou Rodrigo, Semeou Gonçalo, Para haverem o milho Cumpre haver cuidado. Em terra mimosa Ninguém faça escolha, Vai-se o grão na folha, De muito viçosa. Gonçalo e Rodrigo, Cumpre ser lembrado, De sachar o milho, De mondar o prado.
Letra: Baltazar Estaço Música: Custódio Castelo Intérprete: Cristina Branco (in CD “Sensus”, Universal, 2003)
HOJE O ESPAÇO É ESPLÊNDIDO
[ O Vinho dos Amantes ]
Hoje o espaço é esplêndido Sem freio, sem esporas, sem rédea, Partamos evolados do vinho Para um céu mágico e divino!
Como dois anjos que calentura implacável tortura No azul cristal da manhã Sigamos a miragem distante!
Mansamente balouçados sobre a asa Do turbilhão inteligente, Num delírio paralelo,
Minha irmã, voando olhos nos olhos, Fugiremos sem descanso nem tréguas Para o paraíso dos meus sonhos
Poema: Charles Baudelaire (versão livre de Janita Salomé) Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)
QUEM QUISER QUE CANTE
[ Quadras ]
Quem quiser que cante bem Dê-me uma pinga de vinho O vinho é coisa boa Faz o cantar mais fininho
Venha vinho, beberemos Molharemos a garganta Eu sou como o rouxinol Quanto mais bebe mais canta
O vinho é coisa santa Que nasce da cepa torta A uns faz perder o tino A outros errar a porta
O meu amor já vem torto Já se perdeu no caminho Já não se lembra de mim
Quadras populares (recolhidas por Manuel Rocha, da Brigada Victor Jara), excepto a penúltima, da autoria de António Aleixo, e a última, de Francisco Hélder Pimenta (Ti Chico Chinês), do Redondo. Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)
VÁ DE BOCA EM BOCA
[ No Banquete ]
Vá de boca em boca Uma taça dourada Somos pó e nada, Estamos a passar Como o vinho passa Na taça Da vida P’ra logo em seguida No chão se entornar.
Vá de boca em boca Uma taça bem cheia. A luz da candeia Fez de nós iguais. Só gente e tristeza Na mesa Da vida Até que a bebida Nos torne imortais.
Vá de boca em boca Uma taça de prata. Se o prazer nos mata, Deixá-lo matar. É a melhor morte Que em sorte Nos calha Cair na batalha No chão do lagar.
Vá de boca em boca Uma taça de cobre. E se houver que sobre Siga outra rodada Bebamos, que foge Já hoje Outro dia E no fim da orgia Somos pó e nada.
Poema (inédito): Hélia Correia Música: Janita Salomé Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)
Ando na rua da noite, Bebo vinho de saudade; Cada esquina é um açoite Fustigando a claridade.
Vou de noite pela noite, De uma vida sem idade: Não há corpo onde me acoite, Não há casas na cidade.
Vou de noite pelo ventre De ruas mal-assombradas, Levo uma alma doente Nas minhas mãos desfasadas.
Vou de noite pela noite, De uma vida sem idade: Não há corpo onde me acoite, Não há casas na cidade.
No rio vejo um navio Rumando rumo à infância… Tenho frio, tenho frio, Morro do mal da distância.
Corro as ruas da cidade Sempre à procura de mim, Mas ela não tem piedade E nunca mais chego ao fim.
Ando na rua da vida, Bebo sumo de tristeza; Deitando contas à vida Somo apenas a pobreza.
Ando na rua da vida, Bebo sumo de tristeza; Quem andar assim perdida Não se encontra, com certeza.
Na cama só vejo lama, Na rua só piso água; Quem me fala? Quem me chama O nome de Mulher-Mágoa?
Corro as ruas da cidade Sempre à procura de mim, Mas ela não tem piedade E nunca mais chego ao fim.
Letra: José Carlos Ary dos Santos Música: Nuno Nazareth Fernandes Intérprete: Elisa Lisboa (in EP “Mulher-Mágoa”, Columbia/EMI, 1969, reed. digital Edições Valentim de Carvalho, 2021) Elisa Lisboa – voz Arranjo e direcção de orquestra – Jorge Machado
Elisa Lisboa, EP Mulher-Mágoa, Columbia/EMI, 1969
As canseiras desta vida
[ Canseiras ]
As canseiras desta vida Tanta mãe envelhecida A escovar A escovar A jaqueta carcomida Fica um farrapo a brilhar
Cozinheira que se esmera Faz a sopa de miséria A contar A contar Os tostões da minha féria E a panela a protestar
Dás as voltas ao suor Fim do mês é dia 30 E a sexta é depois da quinta Sempre de mal a pior
E cada um se lamenta Que isto assim não pode ser Que esta vida não se aguenta – o que é que se há-de fazer?
Corta a carne, corta o peixe Não há pão que o preço deixe A poupar A poupar A notinha que se queixa Tão difícil de ganhar
Anda a mãe do passarinho A acartar o pão pró ninho A cansar A cansar Com a lama do caminho Só se sabe lamentar
É mentira, é verdade Vai o tempo, vem a idade A esticar A esticar A ilusão de liberdade Pra morrer sem acordar
É na morte ou é na vida Que está a chave escondida Do portão Do portão Deste beco sem saída -qual será a solução?
Autor: Bertolt Brecht/José Mário Branco Intérprete: José Mário Branco
Já estou louca de estar só
[ Fala da Mulher Sozinha ]
Já estou louca de estar só, Acompanhada de nada; Já estou cheia de ser rua Tão corrida, tão pisada; Já estou prenhe de amizades, Tão barriga de saudades…
Ai eu ainda um dia irei rasgar a solidão E nela entrelaçar o olhar duma canção: Chegar ao cume, ao cimo, ao alto, Mais longe e mais além, Mas a saber que sou alguém!
Na cidade sou loucura, Sou begónia, sou ciúme… E eu que sonhava ser lume, Caminho, atalho e lonjura, Não tenho assento na festa, Sou a migalha que resta…
Ai eu ainda um dia irei rasgar a solidão E nela entrelaçar o olhar duma canção: Chegar ao cume, ao cimo, ao alto, Mais longe e mais além, Mas a saber que sou alguém!
Chegar ao cume, ao cimo, ao alto, Mais longe e mais além, Mas a saber que sou alguém!
Letra: Eduardo Olímpio Música: Paco Bandeira Intérprete: Margarida Bessa (in CD “Fado”, Movieplay, 1995)
Lá vem a Marianita
[ História da Marianita ]
Lá vem a Marianita, foi posta com as malas à porta O amo mandou-a embora mas ela não chora, cá pouco se importa Andava fisgado nela, foi ter-lhe ao quarto à tardinha “Mariana, por mais que tu faças, tu de hoje não passas, és minha!” “Não me dás cabo da vida que essa não ta dou por nada! Mil vezes me dei perdida, mas outras mil eu dei-me achada.”
Desdenha, vem prenha Pragueja, deseja e ralha mas quando trabalha não estranha
Que tens tu, ó Mariana, que não sossegas um dia? Não foi proveito nem fama: já chora já mama, cá tudo se cria Vai por serras e veredas a ver onde é que há jornada Que importa que o povo diga se a vida castiga por tudo e por nada O amo quere-a de volta mas ela não verga a haste Hei-de criá-lo sozinha, a cria é só minha, tu tarde piaste
Desdenha, vem prenha Pragueja, deseja e ralha mas quando trabalha não estranha
Desdenha, vem prenha Pragueja, deseja e ralha mas quando trabalha não estranha
A noite é que guarda a Lia O poente é que a embala P’ra a vida não ser bravia Tem de a gente amansá-la A mão que nos guarda a vida É a mão que nos dá a manha Só leva a vida vencida Quem aprova e não estranha
Letra e música: Sebastião Antunes Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019) Versão original: Quadrilha com Segue-me à Capela (in CD “A Cor da Vontade”, Vachier & Associados, 2003)
Luísa sobe
[ Calçada de Carriche ]
Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas, não dá por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda Luísa…
Poema: António Gedeão (excerto) Música: José Niza Arranjo: José Calvário Intérprete: Carlos Mendes (in LP “Fala do Homem Nascido”, Orfeu, 1972, reed. Movieplay, 1998)
CALÇADA DE CARRICHE
António Gedeão, in “Teatro do Mundo”, Coimbra: Edição do autor, 1958; “Poesias Completas”, Portugália Editora, 1964, 5.ª edição, 1975 – p. 115-120; “Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor”, Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997 – p. 34-37).
Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas, não dá por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; bebeu da sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada; salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Maria Joana, do que és tu feita?
[ Mulher Feiticeira ]
Maria Joana, do que és tu feita? És entre os poetas mulher perfeita São quantos os homens contigo enrolada Na mente, no peito, na cama deitada?
São quantas as cores entre os teus amores que ficam mais vivas? São quantos alentos que mudas ao centro por dentro da vida Como uma miragem, contigo em viagem, teus apaixonados Que ficam para sempre contigo na mente e em parte alterados?
O que tu tens, o que tu tens, Maria? O que tu tens e do que é feito o teu ser? O que tu tens, porque tens tu magia? O que tu tens, o que tu tens que eu quero ter?
Maria Joana, descomplicada Fragrância em delírio bem perfumada Faz seus prisioneiros relaxando a vida Dá o seu corpo inteiro com peso e medida
Acende-se a chama, ficas inspirado levando o teu ser À serotonina que sobe tão fina subindo o prazer De corpo suado, mostrando outro lado num lado qualquer Fez sua magia, fez feitiçaria, Maria mulher
O que tu tens, o que tu tens, Maria? O que tu tens e do que é feito o teu ser? O que tu tens, porque tens tu magia? O que tu tens, o que tu tens que eu quero ter?
No ser delicada, na vida focada e tão original Que já não vê fronteiras, contorna barreiras, faz o desigual Assume na vida nova perspectiva e sabe o que não quer Faz feitiçaria com sua magia, Maria mulher
O que tu tens, o que tu tens, Maria? O que tu tens e do que é feito o teu ser? O que tu tens, porque tens tu magia? O que tu tens, o que tu tens que eu quero ter?
Letra e música: Luís Pucarinho Intérprete: Luís Pucarinho (in CD “SaiArodada”, Luís Pucarinho/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Menina de olhar sereno
[ Menina do Alto da Serra ]
Menina de olhar sereno raiando pela manhã de seio duro e pequeno num coletinho de lã.
Menina cheirando a feno casado com hortelã.
Menina que no caminho vais pisando formosura levas nos olhos um ninho todo em penas de ternura. Menina de andar de linho com um ribeiro à cintura.
Menina de andar de linho com um ribeiro à cintura.
Menina da saia aos folhos quem te vê fica lavado água da sede dos olhos pão que não foi amassado.
Menina de riso aos molhos minha seiva de pinheiro menina da saia aos folhos alfazema sem canteiro.
Menina de corpo inteiro com tranças de madrugada que se levanta primeiro do que a terra alvoraçada.
Menina de corpo inteiro com tranças de madrugada que se levanta primeiro do que a terra alvoraçada.
Menina da saia aos folhos quem te vê fica lavado água da sede dos olhos pão que não foi amassado.
Menina de fato novo Ave-Maria da terra rosa brava rosa povo brisa do alto da serra.
Rosa brava rosa povo brisa do alto da serra.
Letra: José Carlos Ary dos Santos Música: Nuno Nazareth Fernandes Intérprete: Kátia Guerreiro e Ney Matogrosso (in CD “Tudo ou Nada”, Som Livre, 2005) Versão original: Tonicha – “Menina” (1971)
Minha mulher
[ Minha Metade ]
Minha mulher Singelo encanto Minha alma-irmã És meu farol Raio de sol Luz da manhã
Minha empatia Sabedoria Sem ter idade Minha poesia Minha alegria Minha metade
Meu lindo bem-querer Rosa do meu jardim Não canso de dizer O que és p’ra mim:
Minha água clara Pedra tão rara Meu talismã Rima e compasso Meu terno amasso Minha maçã
Letra e música: Aníbal Raposo (2011-01-31) Intérprete: Aníbal Raposo (in CD “Rocha da Relva”, Aníbal Raposo/Global Point Music, 2013)
Mulher chegada ao sonho adolescente
[ Mulher-Amor ]
Mulher chegada ao sonho adolescente botão de esperança num sorriso alegre mulher inteira, coração contente que guarda com ternura a última boneca para quem o amor é a coisa mais pura
Mulher capaz de ter nas mãos serenas toda a força do amor que habita em si e sabe pôr nas coisas mais pequenas um gesto de ternura mulher igual a mim mulher que és mãe és a mulher mais pura
Mulher que chega à esquina da idade carregada dos seus anos doirados cada ruga lhe traz uma saudade e afaga com ternura seus cabelos grisalhos bebendo o amor da sua fonte pura
cada ruga lhe traz uma saudade e afaga com ternura seus cabelos grisalhos bebendo o amor da sua fonte pura
Letra: Manuel Lima Brummon Música: António Chainho Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Teresa Tarouca”, col. Clássicos da Renascença, vol. 15, Movieplay, 2000; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)
Olha, não chores, maninha
[ Cicatriz de Ser Mulher ]
Olha, não chores, maninha, que eu não sei se vai passar… essa tristeza tão funda não sei se passa a chorar!
Olha, que pena, maninha, essa flor de malmequer, essa tristeza tão funda, cicatriz de ser mulher!
Lembras? Que lindo o teu homem e que meigo o seu olhar e como ardia o teu corpo ao seu mais leve tocar?
Foi de repente, maninha, como tudo se mudou: o amante foi senhor, o senhor tudo esmagou!
Sei que é tão frágil a flor que brotou do coração e dói ver um corpo bandido desfolhá-la pelo chão!
Olha, que os homens, maninha, andam tontos pelo mundo: pisam com fúria tamanha o seu berço mais profundo!
E já não falo da guerra com soldados frente a frente: deixam a saia sangrando, deixam pegadas no ventre!
Dizem “quem cala consente!”, mas custa tanto falar: o medo dentro da gente ficou mudo de gritar!
Olha, não chores, maninha, que eu apago, se puder, essa tristeza tão funda, cicatriz de ser mulher!
Letra e música: João Lóio Intérprete: João Lóio* (in CD “Canções de Amor e Guerra”, João Lóio, 2002)
[Créditos gerais do disco]: Carlos Rocha – guitarras acústica e eléctrica João Lóio – voz e guitarra acústica Firmino Neiva – baixo eléctrico Arnaldo Fonseca – acordeão Mário Teixeira – caixa de rufo Regina Castro e Guilhermino Monteiro – coros Arranjos e direcção musical – Carlos Rocha, Firmino Neiva e João Lóio Gravado por Fernando Rangel, nos Estúdios Fortes & Rangel, Porto, em Abril de 2002 Mistura – Fernando Rangel, Carlos Rocha, Firmino Neiva e João Lóio Masterização – Fernando Rangel
Veio de longe
Maria Lua (Mulher)
Veio de longe para encontrar outra lua, outro lugar Veio sozinha Maria Lua acende o mar
Sem pressa… Sem medo… nem nada…
Veio de longe veio a cantar outra terra, outro ar Veio sozinha Maria Lua cor de luar
Maria Lua lua do mar…
Ela sabe quem é cheira a café Ela sabe o que quer é mulher
Maria Lua nunca se há-de casar Ela é amante do mar
Veio de longe para encontrar outra lua, outro lugar Veio de longe Maria Lua acende o mar
Maria Lua lua do mar…
Ela sabe quem é cheira a café Ela sabe o que quer é mulher
Maria Lua nunca se há-de casar Ela é amante do mar
Maria Lua nunca se há-de casar Ela é amante do mar
Maria Lua lua do mar…
Ela é amante do mar Maria Lua lua do mar…
Letra: Eugénia Ávila Ramos Música: Tiago Oliveira Intérprete: Rua da Lua (ao vivo no Teatro da Luz, Lisboa) Versão original: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Velha da terra morena Pensa que é já lua cheia; Vela que a onda condena Feita em pedaços na areia.
Saia rota subindo a estrada, Inda a noite rompendo vem, A mulher pega na braçada De erva fresca, supremo bem.
Canta a rola numa ramada, Pela estrada vai a mulher: “Meu senhor, nesta caminhada Nem m’alembra do amanhecer!”
Há quem viva sem dar por nada, Há quem morra sem tal saber… Velha ardida, velha queimada, Vende a fruta se queres comer.
À noitinha, a mulher alcança Quem lhe compra do seu manjar, Para dar à cabrinha mansa, Erva fresca da cor do mar.
Na calçada uma mancha negra Cobriu tudo e ali ficou: Anda, velha da saia preta, Flor que ao vento no chão tombou!
No Inverno terás fartura Da erva fora supremo bem… Canta, rola, tua amargura! Manhã moça nunca mais vem…
Letra e música: José Afonso Intérprete: Teresa Silva Carvalho / introdução por Vitorino (in LP “Ó Rama, Ó Que Linda Rama”, Orfeu, 1977, reed. Movieplay, 1994)
Créditos gerais do disco: Teresa Silva Carvalho – voz Júlio Pereira – violas acústica e clássica, bandolim e percussões Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa e rabeca Catarina Latino – flauta barroca e cornamusa Zé Luiz Iglésias – viola clássica Pintinhas – percussões Hélder Reis – acordeão Vitorino – voz masculina Grupo Coral de cantadores do Redondo Produção e direcção musical – Vitorino Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa Técnicos de som – Manuel Cunha e Moreno Pinto URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/teresa-silva-carvalho
Capa do LP “Ó Rama, Ó Que Linda Rama” (Orfeu, 1977) Desenho e execução – Jean Laffront
Elfiede Engelmayer dá a explicação deste texto: trata-se de uma velha mulher do Alentejo que ganhava a vida com a venda de erva.
José Afonso conheceu-a quando ela já tinha mais de setenta anos. Todos os dias, andava pelas ruas e estradas com uma cesta de erva cuja venda era o seu sustento e com que se alimentava o gado. Esta “profissão” desapareceu com a modernização da agricultura. A canção relata o encontro entre o cantor e a mulher.
Na segunda estrofe, ele vê-a a subir a estrada, vindo na sua direcção. Na terceira, eles trocam algumas palavras e depois ela prossegue o seu caminho sem ouvir o comentário do cantor. Na primeira estrofe, a “vela condenada pela onda” simboliza que ela não tem, e nunca teve, futuro.
Oona Soenario (in “A canção de intervenção Portuguesa: Contribuição para um estudo e tradução de textos”, Universidade de Antuérpia, 1994-1995)