O poemário do cancioneiro português (incluindo fado, música tradicional e ligeira) pretende fomentar o gosto da poesia como parceira da música e a divulgação dos poetas cuja importância nem sempre é justamente reconhecida. Fontes: Blogue A Nossa Rádio, Álvaro José Ferreira.

fadista Helena Sarmento

A lonjura é um degredo

[ Lonjura ]

A lonjura é um degredo
Sem grades para assaltar;
Sem olhos, sem mãos, segredo,
Boca calada de amar.

É mar que afunda a fragata,
É cotovia sem voz;
É um orvalho sem prata
Letra sem rosto, sem foz.

É lágrima, é destempero,
É tabuada aldrabada;
Diário do desespero,
Diário branco, sem nada.

Um chapéu cheio de traça,
A sina contada à toa;
A lonjura é uma desgraça,
Não há dor que tanto doa.

Letra: Joaquim Sarmento
Música: João Black (Fado Menor do Porto)
Intérprete: Helena Sarmento
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)

A minha alma está doente

[ Confirmação ]

A minha alma está doente,
Quiseram em vão curá-la
E quantos ingenuamente
Tentaram amortalhá-la!

Fizeram cerco e, no meio
De toda aquela muralha,
Eu (que sofria!) cantava…
Não me servira a mortalha!

E à medida que o segredo
Vinha em meus lábios poisar-se, |
Embriagado, eu cantava…
Não me servira o disfarce!

Mas, por fim, vendo, talvez,
Que nenhum remédio havia
Deram à minha surdez
O nome de poesia…

Poema: Pedro Homem de Mello (ligeiramente adaptado)
Música: Renato Varela (Fado Meia-Noite)
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)

CONFIRMAÇÃO

(Pedro Homem de Mello, in “Eu Hei-de Voltar um Dia”, Lisboa: Edições Ática, 1966, reimp. 1999 – p. 63)

A minha alma está doente,
Quiseram em vão curá-la
E quantos ingenuamente
Tentaram amortalhá-la!
Formaram cerco e, no meio
De toda aquela muralha,
Eu (que sofria!) cantava…
Não me servira a mortalha!
E à medida que o segredo
Vinha em meus lábios poisar-se,
Embriagado, eu cantava…
Não me servira o disfarce!
Mas, por fim, vendo, talvez,
Que nenhum remédio havia
Deram à minha surdez
O nome de poesia…

À rapariga mais nova

[ Testamento ]

À rapariga mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo meus brincos lavrados
Em cristal límpido e puro.

E àquela virgem esquecida,
Sonhando alto uma lenda,
Deixo o meu vestido branco
Todo tecido de renda.

E este meu rosário antigo,
De contas da cor dos céus,
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus.

E os livros, rosários meus
Das contas d’outro sofrer,
São para os homens humildes
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses que são só de dor,
E aqueles que são de esperança
São para ti, meu amor.

P’ra que tu possas, um dia,
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua.

Poema: Alda Lara (adaptado)
Música: Popular (Fado Menor)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “O Riso Que me Deste”, RCA Victor, 1967; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

TESTAMENTO

(Alda Lara, in “Poemas”, Sá da Bandeira, Angola: Imbondeiro, 1966, reed. Braga: APPACDM, 1997, 2005)

À prostituta mais nova
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
em cristal, límpido e puro…
E àquela virgem esquecida,
rapariga sem ternura
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda…
Este meu rosário antigo
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus…
E os livros, rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes
que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada…
esses, que são de esperança,
desesperada mas firme,
deixo-os a ti, meu amor…
Para que, na paz da hora,
em que a minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,
vás por essa noite fora,
com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua…

Caía a tarde

[ O Bêbado e a Equilibrista ]

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel,
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens, lá no mata-borrão do céu,
Chupavam manchas torturadas, que sufoco!
Louco, um bêbado com chapéu-côco
Fazia irreverências mil p’rá noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete
Chora a nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há-de ser inutilmente a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo o artista tem que continuar

Letra: Aldir Blanc
Música: João Bosco (a partir da música “Smile”, de Charles Chaplin, composta para a banda sonora do filme “Tempos Modernos”, 1936)
Intérprete: Helena Sarmento*
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
Versão original: João Bosco (in LP “Linha de Passe”, RCA Victor, 1979, reed. RCA, 2004)
Outra versão: Elis Regina (in LP “Elis, Essa Mulher”, Warner Bros. Records, 1979, reed. Warner Music Brasil/WEA Music, 1989)

Ciganos

Ciganos! Vou cantar, não a beleza
Dos vossos corações que não conheço.
Mas esse busto de medalha e preço
Que nem é carne vã, nem alma acesa!

Saúdo em vós o corpo, unicamente,
Desumano e cruel como uma chama!
Em vós, saúdo a graça omnipotente
Do lírio que ainda flor por entre a lama.

A vossa vida não pertence ao rei.
Não mutilaste estradas verdadeiras.
Quem ama a liberdade odeia a lei
Que deu à terra a foice das fronteiras.

E, enquanto o aroma e a brisa e até as almas
Ficam irmãs das pérolas roubadas,
As mãos dos homens que vos são negadas
Tremem quando passais. Mas batem palmas.

As mãos dos homens que vos são negadas
Tremem quando passais. Mas batem palmas.

Poema: Pedro Homem de Mello (excerto adaptado)
Música: José Belo Marques (Fado Fora d’Horas)
Intérprete: Tereza Tarouca* (in LP “Tereza Tarouca Canta Pedro Homem de Mello”, Edisom, 1989; CD “Teresa Tarouca”, col. Clássicos da Renascença, vol. 15, Movieplay, 2000; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

CIGANOS

(Pedro Homem de Mello, in “Miserere”, Porto, 1948; “Poesias Escolhidas”, col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: IN-CM, 1983 – p. 110)

Ciganos! Vou cantar, não a beleza
Dos vossos corações que não conheço.
Mas esse busto de medalha e preço
Que nem é carne vã, nem alma acesa!
Saúdo em vós o corpo, unicamente,
Desumano e cruel como o dum bicho!
Em vós, saúdo a graça omnipotente
Do lírio que ainda flor por entre o lixo.
Eu vos saúdo, pela poesia,
Que nasceu pura e não se acaba mais.
E pelo ritmo ardente que inebria
Meus olhos como fios que enlaçais!
A vossa vida não pertence ao rei.
Não mutilaste estradas verdadeiras.
Quem ama a liberdade odeia a lei
Que deu à terra a foice das fronteiras.
E, enquanto o aroma e a brisa e até as almas
Ficam irmãs das pérolas roubadas,
As mãos dos homens que vos são negadas
Tremem quando passais. Mas batem palmas.

Era um Redondo Vocábulo

Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa…

Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa…

Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Nos degraus de Laura
No quarto das danças

Letra e música: José Afonso
Intérprete: Helena Sarmento
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)

Éramos três

[ A Rapariga das Violetas ]

Éramos três quando passou por nós
quando passou por nós
com o cesto das violetas.
Disse a primeira: como vai cansada,
e descalça, coitada, coitada!
Disse a outra: tão suja e desgrenhada,
olhem os pés sem cor, as unhas pretas!

Eu, a terceira… eu não disse nada,
não disse nada, não disse nada.
… Que lindas as violetas!

Poema: Fernanda de Castro (adaptado)
Música: Manuel Lima Brummon
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)

A rapariga das violetas

(Fernanda de Castro, in “Exílio”, Lisboa: Livraria Bertrand, 1952 – p. 93)

Éramos três quando passou por nós
com o cesto das violetas.
Disse a primeira: como vai cansada,
e descalça, coitada!
Disse a outra: tão suja e desgrenhada,
olhem os pés sem cor, as unhas pretas!

Eu, a terceira… eu não disse nada.
… Que lindas as violetas!

Fado

Ao passar pelo ribeiro
Onde, às vezes, me debruço,
Fitou-me alguém. Corpo inteiro,
Curvado com um soluço!

Que palidez nesse rosto
Sob o lençol do Luar!
Tal e qual quem, ao Sol-Posto,
Estivera a agonizar…

E aquelas pupilas baças
Acaso seriam minhas?
Meu amor, quando me enlaças,
Porventura as adivinhas?

Deram-me, então, por conselho,
Tirar de mim o sentido.
Mas, depois, vendo-me ao espelho,
Cuidei que tinha morrido!

Poema: Pedro Homem de Mello (ligeiramente adaptado)
Música: José Marques do Amaral (Fado José Marques do Amaral)
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)

FADO

(Pedro Homem de Mello, in “As Perguntas Indiscretas”, Porto: Editorial Domingos Barreira, 1968; “Poesias Escolhidas”, col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: IN-CM, 1983 – p. 295)

Ao passar pelo ribeiro
Onde, às vezes, me debruço,
Fitou-me alguém. Corpo inteiro,
Curvado como um soluço!

Que palidez nesse rosto
Sob o lençol do Luar!
Tal e qual quem, ao Sol-Posto,
Estivera a agonizar…

Aquelas pupilas baças
Acaso seriam minhas?
Meu amor, quando me enlaças,
Porventura as adivinhas?

Deram-me, então, por conselho,
Tirar de mim o sentido.
Mas, depois, vendo-me ao espelho,
Cuidei que tinha morrido!

Fica longe o sol que vi

[ Quadras da Minha Solidão ]

Fica longe o sol que vi
aquecer meu corpo outrora…
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora!…

Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir
rumo ao sol do meu país…

Por isso as asas dormentes
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes
não podem voar mais eu…

que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor…
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.

E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono…
Passam as horas esguias,
levando o meu abandono…

Poema: Alda Lara (excerto)
Música: Jaime Santos (Fado da Bica)
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)

QUADRAS DA MINHA SOLIDÃO

(Alda Lara, in “Poemas”, Sá da Bandeira, Angola: Imbondeiro, 1966, reed. Braga: APPACDM, 1997, 2005)

Fica longe o sol que vi
aquecer meu corpo outrora…
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora!…

Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir
rumo ao sol do meu país…

Por isso as asas dormentes
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes
não podem voar mais eu…

que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor…
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.

Mas dor de quê? dor de quem,
se nada tenho a sofrer?…
Saudade?… Amor?… Sei lá bem!
É qualquer coisa a morrer…

E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono…
Passam as horas esguias,
levando o meu abandono…

Lá vem num corcel

[ Trovas do Meu Povo ]

Lá vem num corcel
o príncipe real
vem saber dos favos
vem medir o mel

vem ver os pastores
pastarem o gado
são seus os pastores
e é seu todo o prado

Lá vem num cavalo
o senhor regedor
vem ver como cumprem
as ordem do rei

pela terra alheia
vem ver lavradores
vê o que semeiam
vem contar as flores

Lá vem num burrico
o senhor abade
vem pedir prás almas
prás almas salvar

são suas as almas
que o povo lhas deu
partilha por todos
a fé que perdeu

Lá vem todo o povo
a pé no povoado
de Cristo nos ombros
à cruz arrancado

pois Cristo resiste
não morre entre o povo
porque em cada um
há sempre um Cristo novo

La, la, la…

Letra: Manuel Lima Brummon
Música: Luís Alexandre
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)

Lavava no rio, lavava

Lavava no rio, lavava,
Gelava-me o frio, gelava,
Quando ia ao rio lavar!
Passava fome, passava,
Chorava também, chorava
Ao ver minha mãe chorar!

Cantava também, cantava!
Sonhava também, sonhava!
E na minha fantasia
Tais coisas fantasiava,
Que esquecia que chorava,
Que esquecia que sofria!

Já não vou ao rio lavar,
Mas continuo a chorar!
Já não sonho o que sonhava!
Se já não lavo no rio,
Porque me gela este frio
Mais do que então me gelava?

Ai, minha mãe, minha mãe,
Que saudades desse bem,
Do mal que então conhecia!
Dessa fome que eu passava,
Do frio que nos gelava
E da minha fantasia!

Já não temos fome, mãe,
Mas já não temos também
O desejo de a não ter!
Já não sabemos sonhar,
Já andamos a enganar
O desejo de morrer!

Letra: Amália Rodrigues
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: Joana Amendoeira (in CD “Amor Mais Perfeito: Tributo a José Fontes Rocha”, CNM, 2012)
Versão original: Amália Rodrigues (in LP “Gostava de Ser Quem Era”, Valentim de Carvalho, 1980, reed. EMI-VC, 1995, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007; “Amália 50 Anos”: CD “Amália Mais os Poetas Populares”, EMI-VC, 1989; 2CD “O Melhor de Amália”: vol. III – “Fado da Saudade”: CD 2, EMI-VC, 2003)

Joana Amendoeira, Amor Mais Perfeito
Joana Amendoeira, Amor Mais Perfeito

Meu país esperando

[ Portugal Triste ]

Meu país esperando na esquina do tempo
de braços abertos a todo o momento
vou seguindo sempre calculando os passos
e se o que criei desfaço e refaço
meus olhos despertos abrem-se para o mundo
e eu caio em mim cada vez mais fundo

Meu país perdido na esquina do tempo
triste Portugal tão pequeno e imenso
pois eu te garanto, país, que este povo
traz no coração sempre um amor novo

Não quero que pensem que já me perdi
nem quero que julguem que fujo de mim
tenho lucidez para poder viver
eu sou vertical, não me hão-de torcer
sempre fui mais forte quando me quiseram
tornar serva ou fraca e nunca me venceram

Tenho a dimensão do que quero alcançar
e nada que fiz tenho a lamentar
pois para me encontrar ainda vos digo
que nunca vendi meu cantar de amigo

Portugal que eu canto deixa a boca amarga
mas eu estou bem firme, não estou derrotada

Letra e música: Manuel Lima Brummon
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

Mordi a Tua Mão

Mordi a tua mão, depois morri;
Caí sobre o teu corpo inanimado:
Que importa se estou preso ou se prendi!
Quem morre assim não tem que ser julgado.

Mordi a tua mão, depois morri;
Passei por um lugar que não tem nome,
Que fica muito além do que sofri:
Maior que a dor, que o mar, maior que a fome.

Beijei a tua mão, depois vivi;
Deixei-me ali ficar de olhos fechados.
Ainda perguntei: “Tu estás aqui?”;
Depois dormi nos braços arranhados.

Letra: Duarte
Música: Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado CUF)
Intérprete: Duarte (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)

Nesse teu olhar magoado

[ Espero a Morte a Cantar ]

Nesse teu olhar magoado
Vejo a cor dos olhos meus;
Tem a dor um tom pisado
Que é o tom dos olhos teus.

Sofro a dor por te querer
Esquecendo que te perdi,
Mas um dia quis te ver
E louca d’amor fugi.

Nos meus olhos vivem ainda
Saudades dum olhar teu;
No meu peito vive infinda
Essa dor que em ti viveu.

Hoje canto de amargura
Já cansada de te amar,
E vencida pela tortura
Espero a morte a cantar.

Letra: Francisco Pessoa
Música: Joaquim Campos (Fado Amora)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Saudade, Silêncio e Sombra”, RCA Victor, 1964)

No silêncio do meu quarto

[ Um Fado para Fred Astaire ]

No silêncio do meu quarto… de incerteza
Não vos sei dizer se morro… ou ressuscito;
Faz-se noite quando parto… com tristeza
E talvez peça socorro… mas não grito.

Quem diria que os teus pés… de bailarino
Entrariam para a história… da saudade,
E que meio de viés… por teu destino
Brindarias à memória… que me invade?!

Quase toco a tua mão… presa ao ecrã,
Mas tropeço nos meus passos… sem esperança;
Não existe solidão… nem amanhã
Quando danço nos teus braços… de criança.

Eu é que sou a menina,… mas não quero,
E não vou mudar de idade… e ai de mim
Se a memória só termina… e volta a zero
Quando acabar a saudade… que é sem fim.

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Popular e Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado Menor com Versículo)
Intérprete: Cristina Nóbrega
Versão discográfica de Cristina Nóbrega (in CD “Um Fado para Fred Astaire”, Watch & Listen, 2014)
Versão original: Deolinda Rodrigues (inédita)

Deolinda Rodrigues fadista
Deolinda Rodrigues fadista

O Cristo inerte

[ Não Fui Eu ]

O Cristo inerte preso à cruz
A luz da vela que O reduz
À sombra triste na parede entrecortada

Dos lábios solta-se, indulgente
A prece inútil do não-crente
Entre palavras que por fim não dizem nada

Não fui eu, não fui eu
Não deixei a porta aberta
Não fui eu, não fui eu
Ficou-me a casa deserta

Há como um fugidio rumor
De passos no corredor
Induzem na minh’alma a dor da esperança vã

Sinais do tempo a humedecer
A voz que teima enrouquecer
E o corpo dorido pela noite no divã

Não fui eu, não fui eu
Não deixei a porta aberta
Não fui eu, não fui eu
Ficou-me a casa deserta

Como esta febre me destrói
Perdido amor, quanto me dói
Desceste em mim o cruel manto da tristeza

Em cada noite morro, amor
E a solidão faz-me maior
Mal amanhece e volta o medo que anoiteça

Não fui eu, não fui eu
Não deixei a porta aberta
Não fui eu, não fui eu
Ficou-me a casa deserta

Letra e música: Jorge Fernando
Intérprete: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)

Por ti cheguei a amar o desumano

[ A Outra Face da Alegria ]

Por ti cheguei a amar o desumano
e fiz da minha angústia amor total
vi florir primaveras todo o ano
nunca ninguém te amou com amor igual

Por ti bastava a sombra fugidia
do teu olhar no meu insatisfeito
e tudo o que não tinha pressentia
como quem tem dois corações no peito

Por ti reinventei lindas palavras
nas mãos tive oiro e estrelas só por ti
e nada te bastou, nada aceitavas
mas roubaste o melhor que havia em mim

Por ti gastei a face da alegria
e andei morrendo um pouco em toda a parte
embriagaste a luz de cada dia
os dias mais belos da minha idade

Letra e música: Manuel Lima Brummon
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

Quem dorme à noite comigo?

[ Medo ]

Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo.
Mas se insistirem lhes digo:
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo.

E cedo, porque me embala
Num vai-e-vem de solidão,
É com o silêncio que fala:
Com voz que move onde estala
E nos perturba a razão.

Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me,
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

Poema: Reinaldo Ferreira
Música: Alain Oulman
Intérprete: Júlio Resende com Amália Rodrigues (in CD “Amália por Júlio Resende”, Edições Valentim de Carvalho, 2013)
Versão original: Amália Rodrigues (grav. 1966, CD “Segredo”, EMI-VC, 1997; 2CD “O Melhor de Amália: Vol. II – Tudo Isto É Fado”: CD 1, EMI-VC, 2000; Livro/4CD “O Melhor de Amália”: CD 3, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)

Talvez a solidão se torne um mito

[ Um Quê de Eternidade ]

Talvez a solidão se torne um mito
pr’àqueles que se entregam à saudade,
pois se uma tem um pouco de infinito
a outra tem um quê de eternidade.

A solidão não sabe de quem gosta:
por isso é que elas andam sempre juntas,
porque uma é a pergunta sem resposta
e a outra é a resposta sem perguntas.

Mas é com a saudade que me entendo,
porque ela se apaixona só por quem
descobre em cada verso que vai lendo
que a solidão não gosta de ninguém.

Não sei porque é que vai baixando a voz,
nem sei porque é que esconde o que revela,
mas sei que se ela diz gostar de nós
já não aceita que gostemos dela.

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Raul Pereira (Fado Zé Grande)
Intérprete: Cristina Nóbrega
Versão original: Cristina Nóbrega (in CD “Um Fado para Fred Astaire”, Watch & Listen, 2014)

Cristina Nóbrega, Um fado para Fred Astaire
Cristina Nóbrega, Um fado para Fred Astaire

Um malmequer desfolhei

[ Malmequer Desfolhado ]

Um malmequer desfolhei,
Nunca tal tivesse feito;
Não sabia o que já sei,
Tinha-te ainda no peito!

P’ra saber s’inda era meu
O homem que eu tanto amei,
Com os olhas fitos no céu
Um malmequer desfolhei!

E da flor fui arrancando
Esperanças que fora deito;
E agora eu estou chorando…
Nunca tal tivesse feito!

Julgando ter-te na vida
E seres p’ra mim minha lei,
Passava o tempo iludida…
Não sabia o que já sei!

Sonhava meu coração,
E agora sonho desfeito
Vivendo da ilusão…
Tinha-te ainda no peito!

Letra: D. António de Bragança
Música: Francisco Viana (Fado Francisco Viana ou Fado Mouraria do Vianinha)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Mouraria”, RCA Victor, 1963; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978)

Partilhe
Share on facebook
Facebook
Sons Vadios, Cantos de Cego

Vieste lá da Galiza

Desgarrada

— Vieste lá da Galiza
Com vontade de cantar;
Trouxeste uma sanfona
E romances de encantar.

E agora que aqui estás,
Mostra a tua habilidade!
Não és cego, nem tens cão
E vives numa cidade.

— Eu veño lá de lonxe,
Catro horas de camiño,
Para cantar e tocar
Os romances do ceguiño.

Como non hai unha feira
Podemos, enton, gravar:
Esta é unha maneira
Da memória conservar.

Isso, sim, é de valor!
Boa ideia, genial:
Tocar as canções de cego
Da Galiza e Portugal!

Isso, sim, é de valor!
Boa ideia, genial:
Tocar as canções de cego
Da Galiza e Portugal!

Letra e música: César Prata
Intérpretes: Ariel Ninas & César Prata* (in CD “Cantos de Cego da Galiza e Portugal”, aCentral Folque, 2016)

Partilhe
Share on facebook
Facebook
Brincar aos fados

Acredito

Acredito em pouca coisa
que venha escrita em loiça,
dessa de pôr na parede.

Acredito mais no desempenho
da laranja que apanho,
que como e me mata a sede.

Acredito nas façanhas,
muito menos nas patranhas
de quem faz só porque sim.

Acredito nas crianças,
no meu ventre são esperanças
de um futuro sem fim.

Acredito na loucura
de quem pede mais ternura
e vira costas à guerra.

Acredito na fé dos outros
que às vezes abrem poços
só para encontrar mais terra.

Acredito no Caetano,
no Zambujo que é meu mano,
em todas as vozes calmas.

Acredito na poesia
e também na aletria,
em tod’os adoçantes de almas.

Acredito na minha mãe,
ela que sofreu bem
para que eu fosse como sou.

Crente nos frutos e flores,
nos mais impossíveis amores;
onde o Sol mais brilhar eu estou.

Eu estou
Eu estou
Eu estou
Eu estou
Eu estou

Letra: Celina da Piedade
Música: Alex Gaspar
Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)

Era não era

[ Era Não Era do Tamanho de um Pardal ]

Era não era
Foi deixado ao abandono
Num dia quente de Outono
No meio de um meloal
Era não era
Sei lá eu se era ou não era
Só sei que os lados da esfera
Cortam mais do que um punhal

São mais ou menos
Cento e vinte e quatro lados
Redondinhos, afiados
Do tamanho de um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

Era não era
Palmilhei o mar profundo
Sem parar um só segundo
P’ra apanhar estrelas do céu
No meio das nuvens
Nadei eu entre os rochedos
Cheio de frio e de medos
Ao sabor do macaréu

Os macaréus
São umas ondas muito altas
Da família das pernaltas
E maiores do que um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

São mais ou menos
Cento e vinte e quatro lados
Redondinhos, afiados
Do tamanho de um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

Os macaréus
São umas ondas muito altas
Da família das pernaltas
E maiores do que um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

Era não era
Diz o nabo p’ra o repolho:
“Tu não me franzas o olho
Que eu de ti não tenho medo!”
Era não era
Diz a ameixa p’ra a cenoura:
“Vou para Paredes de Coura,
Vou partir de manhã cedo”

Uma linda terra
Do concelho de Alcobaça
Só conhece quem lá passa
Junto à tasca do Pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

São mais ou menos
Cento e vinte e quatro lados
Redondinhos, afiados
Do tamanho de um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

Os macaréus
São umas ondas muito altas
Da família das pernaltas
E maiores do que um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

São mais ou menos
Cento e vinte e quatro lados
Redondinhos, afiados
Do tamanho de um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

Os macaréus
São umas ondas muito altas
Da família das pernaltas
E maiores do que um pardal
Mas sem as penas
Nem as partes comestíveis
Nem a caixa dos fusíveis
Nem a corda do estendal

Os macaréus…

Letra e música: Carlos Guerreiro
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa
Versão original: Gaiteiros de Lisboa (in CD “Macaréu”, Aduf Edições, 2002; CD “A História”, Uguru, 2017)

Fez sábado quinta-feira

Fez sábado quinta-feira,
P’ra lá d’Évora três semanas,
Estive dez dias num Verão
Nas Américas Romanas.

Embarquei em dois caleiros
Na baía de Lisboa;
Arribei, fui dar a Goa,
Desembarquei em Alenquer;
Casei com sete mulheres,
Falta uma p’rá primeira;
Fui dar à Ilha Terceira,
Com três dias numa hora;
Abalei e vim-me embora,
Fez sábado quinta-feira.

Agarrei nos alforginhos,
Pus um pão em quatro enxacas,
Na gamela duas vacas
E na borracha toucinho;
Um açafate com vinho,
Trinta metros de banana;
Dei passos à americana,
Fui passar a Ayamonte;
Abalei hoje, cheguei ‘onte’
P’ra lá d’Évora três semanas.

Eu já estive em Erapouca,
Numa ocharia empregado;
Foi-se um carro carregado
Numa abóbora canoca;
Um mosquito com um boi na boca
Cem léguas em proporção;
Atirei-lhe um bofetão
Que pelo ar o fez ir;
À espera dele cair
Estive dez dias num Verão.

Fui soldado, assentei praça
No 15 de Sapadores;
Maquinista de vapores
Na carreira de Alcobaça;
Venci o Forte da Graça,
Também a Vila de Terena
E as províncias arraianas,
Venci toda a nobrezia;
Bati-me com a Turquia
Nas Américas Romanas.

Fez sábado quinta-feira,
P’ra lá d’Évora três semanas,
Estive dez dias num Verão
Nas Américas Romanas.

Letra: Popular
Música: José Manuel David
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa
Versão original: Gaiteiros de Lisboa com Luís Espinho e João Paulo Sousa (Adiafa) (in CD “Avis Rara”, d’Eurídice/d’Orfeu Associação Cultural, 2012; CD “A História”, Uguru, 2017)

Lá no adro da igreja

[ Abaladiça ]

Lá no adro da igreja
Pára o Chico Pintaínho
Pede a Deus que bem proteja
Quem lhe der mais um copinho

Tem o filho para Lisboa
A mulher já lhe morreu
Não lhe anda a vida boa
Foi pró vinho que lhe deu

A Isaura é metediça
Com um lado reverente
Quando pode está na missa
Mas diz mal de toda a gente

Pode ser que seja fé
Ou que goste do prior
Tira bicas no café
Bem pingadas sem pudor

Vai mais uma abaladiça
Outro dedo de conversa
Esta agora pago eu
Depois tu e vice-versa
Dedilhando a campaniça
São dez cordas de saudade
À saúde dos que estamos
E de quem está na cidade

É na Tasca do João
Que a malta vai ao petisco
Há tomate, azeite e pão
E tremoço por marisco

Ninguém sai desconsolado
Por não ter o que comer
Bota abaixo um abafado
Para a gente se aquecer

Vai mais uma abaladiça…

Letra: José Fialho Gouveia
Música: Rogério Charraz
Intérprete: Rogério Charraz

Manhã na minha ruela

[ Dia de Folga ]

Intérprete: Ana Moura

Manhã na minha ruela, sol pela janela.
O Sr. jeitoso dá tréguas ao berbequim.
O galo descansa. Ri-se a criança,
Hoje não há birras, a tudo diz que sim.
O casal em guerra do segundo andar
Fez as pazes, está lá fora a namorar.

Cada dia é um bico d’obra,
Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar
Baterias. Há razões de sobra
Para celebrarmos hoje com um fado que se empolga.
É dia de folga!

Sem pressa de ar invencível, saia, saltos, rímel,
Vou descer à rua, pode o trânsito parar.
O guarda desfruta, a fiscal não multa.
Passo e o turista, faz por não atrapalhar.
Dona Laura hoje vai ler o jornal.
Na cozinha está o esposo de avental.

Cada dia é um bico d’obra
Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar
Baterias. Há razões de sobra
Para celebrarmos hoje com um fado que se empolga.
É dia de folga!

Folga de ser-se quem se é
E de fazer tudo porque tem que ser.
Folga para ao menos uma vez
A vida ser como nos apetecer.

Cada dia é um bico d’obra,
Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar
Baterias. Há razões de sobra
Para a tristeza ir de volta e o fado celebrar.

Cada dia é um bico d’obra
Uma carga de trabalhos. Faz-nos falta renovar
Baterias. Há razões de sobra
Para celebrarmos hoje com um fado que se empolga.
É dia de folga!

Este é o fado que se empolga
No dia de folga,
No dia de folga.

No Império das aves raras

[ Avejão ]

No Império das aves raras
Quem não tem penas é Rei;
Entre pêgas e araras
Os Patos-Bravos são Lei.

A terra dos Patos-Bravos
Parece mais um vespeiro:
Andam todos à bicada
Para chegar ao poleiro.

Por sobre a terra, por sobre o mar
O Grande Irmão zela por nós:
A sua sombra é protectora,
Já vem dos egrégios avós.

Na terra dos papagaios
Quem não tem poleiro é pato;
Andam todos à bicada
Só p’ra ficar no retrato.

No reino das trepadoras
O papagaio é Senhor:
Mesmo até sem saber ler
Qualquer papagaio é Doutor.

Por sobre a terra, por sobre o mar
O Grande Irmão zela por nós:
A sua sombra é protectora,
Já vem dos egrégios avós.

Voar mais alto que os outros,
Esse era o sonho do galo:
Roubar as asas ao Pégaso
E voar como um cavalo.

Mas o galo de ser galo
É ter o chão junto à barriga;
Para alcançar o poleiro
Tem que usar de muita intriga.

Por sobre a terra, por sobre o mar
O Grande Irmão zela por nós:
A sua sombra é protectora,
Já vem dos egrégios avós.

No reino dos voadores
Impera a grande anarquia,
E a barata voadora
Já tem lugar de chefia.

A passarada oprimida
Só deseja que isto mude,
Mas as aves de rapina
Cada vez têm mais saúde.

Por sobre a terra, por sobre o mar
O Grande Irmão zela por nós:
A sua sombra é protectora,
Já vem dos egrégios avós.

Letra e música: Carlos Guerreiro
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa
Versão original: Gaiteiros de Lisboa com Sérgio Godinho & Armando Carvalhêda (in CD “Avis Rara”, d’Eurídice/d’Orfeu Associação Cultural, 2012)

As forças em parada desfilam junto à tribuna de honra que é composta por cinquenta poleiros, onde estão representadas as espécies ornitológicas democraticamente nomeadas pelo marechal Avejão. Desfilam, neste momento, o esquadrão Falcão e o esquadrão Abutre, garantes da paz, da ordem, da liberdade e da segurança. À sua passagem, o marechal Avejão perfila-se no seu poleiro e erguendo a asa direita saúda as tropas em sinal de respeito e gratidão.

Ó Ana, Vem Ver

Ó Ana, vem ver! Ó Ana, vem ver!
Há fogo no mar e os peixes a arder!
La ri lo lela! Ó Ana, vem ver!

Oh alto e oh alto, oh alto, piu piu!
Passarinho novo da mão me fugiu!
La ri lo lela, oh alto, piu piu!

Senhora Maria, senhora Maria,
O seu galo canta e o meu assobia!
La ri lo lela, senhora Maria!

Galo

Galo

Oh alto e oh alto, oh alto e oh alto!
Quanto mais acima maior é o salto!
La ri lo lela, oh alto e oh alto!

Ó Ana, vem ver! Ó Ana, vem ver!
Há fogo no mar e os peixes a arder!
La ri lo lela! Ó Ana, vem ver!

Senhora Maria, senhora Maria,
O seu galo canta e o meu assobia!
La ri lo lela, senhora Maria!

Oh alto e oh alto, oh alto, piu piu!
Passarinho novo da mão me fugiu!
La ri lo lela, oh alto, piu piu!

Eu quero, eu quero, eu quero, eu queria
Dormir uma noite contigo, Maria!
La ri lo lela, eu quero, eu queria!…

Letra e música: Tradicional (Beira Interior)
Intérprete: Real Companhia (in CD “Orgulhosamente Nós!”, Lusogram, 2000)

O Judas teve sarampo

[ Quando Judas Teve Sarampo ]

O Judas teve sarampo,
Herodes teve bexigas;
Pilatos teve sezões,
O Caifás teve lombrigas.

O Judas quando nasceu
Foi de uma velha gaiteira,
O Diabo foi parteira;
Quando Judas rescendeu
Foi padrinho um pigmeu
Para o livrar do quebranto.
A todos causou espanto
Tal era a figura horrenda,
Mas só o Diabo se lembra
E Judas teve sarampo.

O Judas teve sarampo,
Herodes teve bexigas;
Pilatos teve sezões,
O Caifás teve lombrigas.

Letra: Popular (Monte Real, Leiria, Alta Estremadura); adap. Carlos Guerreiro
Música: Carlos Guerreiro
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa
Versão original: Gaiteiros de Lisboa (in CD “Macaréu”, Aduf Edições, 2002; CD “A História”, Uguru, 2017)

Quem quer brincar

[ Brincar aos Fados ]

Quem quer brincar a uma nova brincadeira,
Que não tem índios, nem polícias, nem ladrões
E toda a gente pode brincar à primeira,
Basta saber cantarolar duas canções.

Uma vassoura pode ser uma viola,
Uma guitarra pode ser feita em cartão:
É muito fácil… basta usar tesoura e cola
Para dar asas à tua imaginação.

Uma cortina faz de xaile improvisado
E num instante nasce um palco no quintal;
Até o gato que não quer ser chateado
É a plateia que te aplaude no final.

Então tu escolhes um CD… põe-lo baixinho
E em ‘karaoke’, em ‘playback’ ou a cantar
És a Amália, a Mariza ou a Carminho
E vais aos fados… mesmo que seja a brincar.

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Bernardo Lino Teixeira (Fado Ginguinha)
Intérprete: Camané (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)
Outra versão: Rodrigo Costa Félix

Subir, Subir

Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir
Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir

Mensageiros de Cupido
Eu ando deprimido
Intercedei por mim ao vosso Deus!
Estou de amores com uma catraia
Que p’ra subir a saia
Exige grandes sacrifícios meus

Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir
Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir

Levantei velas à barca
Mas a brisa era parca
Nem deu para agitar o meu corcel
Assim nunca mais te chego
A ter no aconchego
Tirar-te dessa ilha de papel

Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir
Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir

Fiz consulta a feiticeiros
E santos padroeiros
Deixei bruxeiros de cabeça à toa
Findei o consultamento
E como rendimento
Saíram-me (imaginem!) os Gaiteiros de Lisboa

Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir
Subir, subir
lnd’ hei-de conseguir
Morder-te, ó cachopa,
Por dentro do teu vestir

Letra e música: Mário Alves (Vozes da Rádio)
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa
Versão discográfica ao vivo dos Gaiteiros de Lisboa, com Vozes da Rádio (in 2CD “Dançachamas: Ao Vivo”: CD 1, Farol Música, 2000)
Versão original: Vozes da Rádio com Gaiteiros de Lisboa (in CD “Mappa do Coração”, Ariola/BMG Portugal, 1997)

Tubarão tinha dentes de tainha

[ Tamboril ]

Tubarão tinha dentes de tainha
E a tainha tinha dentes de tambor
Toca traz tempo chuva tempestade
Tubarão trincou um touro nos taleigos da vontade

Tubarão tinha o tímpano trocado
E trocado estava o tempo todo o ano
Toca traz tempo chuva tempestade
Tubarão tamborilou ‘inda a missa ia a metade

Tubarão traficou-se em tamboril
Troca-tintas com retoque teatral
Toca terça, quarta, quinta, noite e dia
Travestido no Entrudo c’uma tromba de enguia

Tamboril teve tísica ao contrário
Já tossia como tosse o tubarão
Toca terça, quarta, quinta, noite e dia
Tamboril entubarou num atalho p’rá Turquia

Tubarão tinha dentes de tainha
E a tainha tinha dentes de tambor
Toca traz tempo chuva tempestade
Tubarão trincou um touro nos taleigos da vontade

Tubarão tinha o tímpano trocado
E trocado estava o tempo todo o ano
Toca traz tempo chuva tempestade
Tubarão tamborilou ‘inda a missa ia a metade

Tubarão traficou-se em tamboril
Troca-tintas com retoque teatral
Toca terça, quarta, quinta, noite e dia
Travestido no Entrudo c’uma tromba de enguia

Tamboril teve tísica ao contrário
Já tossia como tosse o tubarão
Toca terça, quarta, quinta, noite e dia
Tamboril entubarou num atalho p’rá Turquia

Letra: Miguel Cardina
Música: Pedro Damasceno e Celso Bento
Arranjo: Diabo a Sete e Julieta Silva
Intérprete: Diabo a Sete (in CD “Figura de Gente”, Sons Vadios, 2016)

Partilhe
Share on facebook
Facebook
Camilo Pessanha, poeta

A minha canção é verde

[ Canção Verde ]

A minha canção é verde.
Sempre de verde a cantei.
De verde cantei ao Povo
E fui de verde, de verde,
Cantar à mesa do Rei.

Tive um amor — triste sina!
Amar é perder alguém…
Desde então, ficou mais verde
Tudo em mim: a voz, o olhar…
E o meu coração também!

Deu-me a vida, além do luto,
Amor à margem da lei…
Amigos são inimigos.
— Paga-me! disseram todos.
Só eu de verde fiquei.

A minha canção é verde [bis]
— Canção à margem da lei…
A minha canção é verde,
Verde como este poema
Que por meu mal te cantei!

A minha canção é verde,
Verde, verde, verde, verde…
Mas… porque é verde?
— Não sei…

Poema: Pedro Homem de Mello (adaptado)
Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “O Riso Que me Deste”, RCA Victor, 1967; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

A noite caiu

[ Poema da Utopia ]

A noite caiu sem manchas e sem culpa.
Os homens largaram as máscaras de bons actores.
Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde.
No alto, a utópica Lua vela comigo
E sonha coalhar de branco as sombras do mundo.
Um palhaço, a seu lado, sopra no ventre dos búzios.
Noite! se o espectáculo findou
Deixa-nos também dormir.

Poema: Fernando Namora (in “Relevos”, Coimbra: Portugália, 1937; “As Frias Madrugadas”, Lisboa: Arcádia, 1959, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997 – p. 50)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

A Voz Que Eu Tenho

A voz que eu tenho, como pensamento,
Veio de longe, devagar e triste;
Veio rasando os areais do vento
Onde a palavra amor ainda existe.

Respirou com o povo as madrugadas,
Soube do mar e foi beber o mar;
E gritou no silêncio das estradas
A solidão que eu tenho p’ra vos dar.

Cresce-me a voz nesta prisão do encanto,
Com a amizade que me faz viver;
E sem saber se me entendeis, eu canto
A presença do amor e a dor de o ter.

Poema: Vasco de Lima Couto
Música: Júlio Proença (Fado Esmeraldinha)
Intérprete: Carlos do Carmo (in LP “Carlos do Carmo”, Tecla, 1970, reed. Edisom, 1984, Movieplay, 2003, Série “Carlos do Carmo 50 Anos”, Vol. 01, Universal Music, 2013)

CANÇÃO VERDE

(Pedro Homem de Mello, in “Adeus”, Porto, 1951 p. 25-27; “Poesias Escolhidas”, col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: IN-CM, 1983 – p. 131-132)

A minha canção é verde.
Sempre de verde a cantei.
De verde cantei ao Povo
E fui de verde vestido
Cantar à mesa do Rei.

Porque foi verde o meu canto?
Porque foi verde?
— Não sei…

Verde, verde, verde, verde,
Verde, verde, em vão, cantei!
— Lindo moço! — disse o Povo.
— Verde moço! — disse El-Rei.

Porque me chamaram verde?
Porque foi? Porquê?
— Não sei…

Tive um amor — triste sina!
Amar é perder alguém…
Desde então, ficou mais verde
Tudo em mim: a voz, o olhar,
Cada passo, cada beijo…
E o meu coração também!

Coração! Porque és tão verde?
Porque és verde assim também?

Deu-me a vida, além do luto,
Amor à margem da lei…
Amigos são inimigos.
— Paga-me! disseram todos.
Só eu de verde fiquei.

Porque fiquei eu de verde?
Porque foi isto?
— Não sei…

A minha canção é verde
— Canção à margem da lei…
Verde, ingénua, verde e moça,
Como a voz deste poema
Que por meu mal vos cantei!

A minha canção é verde,
Verde, verde, verde, verde…
Mas… porque é verde?
— Não sei…

Ai Flores do Verde Pino

(cantiga de amigo)

– Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado?
Ai Deus, e u é?

– Vós me preguntades polo voss’amigo?
Eu bem vos digo que é san’e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amado?
Eu bem vos digo que é vivo e sano.
Ai Deus, e u é?

Eu bem vos digo que é san’e vivo
e seerá vosc’ant’o prazo saído.

Eu bem vos digo que é vivo e sano
e seerá vosc’ant’o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Eu bem vos digo que é san’e vivo
e seerá vosc’ant’o prazo saído.

Eu bem vos digo que é vivo e sano
e seerá vosc’ant’o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde pino…

Poema: D. Dinis (ligeiramente adaptado)
Música: Helena de Alfonso e Jose Lara Gruñeiro
Arranjo: Paulo Loureiro
Intérprete: Ana Laíns (in CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017)
Versão original: Barahúnda / voz de Helena de Alfonso (in CD “Al Sol de la Hierba”, Nufolk/GalileoMC, 2002)

D. Dinis

D. Dinis

Ai flores, ai flores do verde pino

(D. Dinis, 1261-1325, in “cancioneiro da Biblioteca Nacional”, B 568; “cancioneiro da Vaticana”, V 171)

– Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs conmigo?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado?
Ai Deus, e u é?

– Vós me preguntades polo voss’amigo
e eu ben vos digo que é san’e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amado
e eu ben vos digo que é viv’e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san’e vivo
e seerá vosc’ant’o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv’e sano
e seerá vosc’ant’o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Glossário:

– pino: pinheiro.
– sabedes: sabeis.
– novas: notícias.
– Ai Deus, e u é?: Ai Deus, e onde está?
– do que pôs comigo: sobre aquilo que combinou comigo (o encontro sob os pinheiros).
– sano: são, saudável.
– seerá vosc’ant’o prazo saído: estará convosco antes de terminar o prazo.

Anda o Sol na minha rua

Anda o Sol na minha rua,
Cada vez até mais tarde,
A ver se pergunta à Lua
A razão por que não arde.

Tanto quer saber porquê,
Mas depois fica calado;
E nunca ninguém os vê
Andarem de braço dado.

Se me persegues de dia,
Se à noite sempre me deixas,
Não digas que é fantasia
A razão das minhas queixas.

Só andas enciumado
Quando eu não te apareço,
Mas se me tens a teu lado
Nem ciúmes te mereço!

Anda o Sol na minha rua,
Cada vez até mais tarde,
A ver se pergunta à Lua
A razão por que não arde.

Letra: David Mourão-Ferreira
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: Joana Amendoeira (in CD “Amor Mais Perfeito: Tributo a José Fontes Rocha”, CNM, 2012)
Primeira versão (com música de José Fontes Rocha): Amália Rodrigues (in EP “Ai Chico, Chico”, Columbia/VC, 1969; LP “Anda o Sol na Minha Rua” (compilação), Valentim de Carvalho, 1977; CD “Ai Chico, Chico” (compilação), col. Caravela, EMI-VC, 1996; 2CD “O Melhor de Amália”: vol. III – “Fado da Saudade”: CD 1, EMI-VC, 2003; CD “Amália Canta David”, Edições Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011)
Versão original (com música de Joaquim Campos): Mercês da Cunha Rego (in EP “Mercês da Cunha Rego (Fado dos Ninhos)”, Áquila, 1968; CD “Mercês da Cunha Rego [e] Teresa Siqueira”, col. Fados do Fado, vol. 49, Movieplay, 1998)

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira

Antes que o Inverno chegue

[ Canto Tardio ]

Antes que o Inverno chegue
volto a ser cigarra. Canto.
Da laboriosa agonia me liberto e exalto.
Canto sem cessar o tempo
temendo e saboreando o tempo,
galo da aurora
que não tem tempo de acordar dormindo
De celeiro vazio, canto,
surdo aos lobos e aos ratos
que esgadanham o restolho.
Canto no Outono, que é oiro velho
e um rosto rugoso e macio.
Canto só porque é tarde para o canto
e a cantar adio o que tarde veio.
Cantando abro-me às formigas
e ofereço-lhes o indigesto banquete
para que a morrer cantando
me devorem vivo.

Fernando Namora

Fernando Namora

Poema: Fernando Namora (in “Marketing”, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1969, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997 – p. 99)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Bastam-me as cinco pontas de uma estrela

[ Poema Destinado a Haver Domingo ]

Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor de um navio em movimento.
E como ave, ficar parada a vê-la.
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio de cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara p’ra passear a pé
Essa distância achada p’lo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama num domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa num flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre.

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara p’ra passear a pé
Essa distância achada p’lo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Daquilo que é.
Daquilo que é.
Daquilo que é.

Poema: Natália Correia (ligeiramente adaptado)
Música: Aníbal Raposo
Intérprete: Musica Nostra* (in CD “Cantos da Terra”, Açor/Emiliano Toste, 2009)
Versão original: Aníbal Raposo (in CD “Maré Cheia”, MM Music, 1999)

POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO

(Natália Correia, in “Passaporte”, Lisboa: Edição da autora, 1958; “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I”, Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 205; “Poesia Completa”, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 153-154)

Bastam-me as cinco pontas duma estrela
E a cor dum navio em movimento.
E como ave, ficar parada a vê-la.
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio do cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama dum domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa num flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre.

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.

Bóiam leves, desatentos

[ Vestígios ]

Bóiam leves, desatentos,
Meus pensamentos de mágoa
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

À tona d’águas paradas,
Bóiam como folhas mortas.
São coisas pedindo nadas,
São pós que dançam nas portas
Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,
Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se pára, se flui;
Não sei se existe ou se dói.

Poema: Fernando Pessoa (adaptado)
Música: Joaquim Campos (Fado Tango)
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)

Bóiam leves, desatentos

(Fernando Pessoa, 4-8-1930, “Poesias de Fernando Pessoa”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 15.ª edição, 1995 – p. 120-121)

Bóiam leves, desatentos,
Meus pensamentos de mágoa
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

Bóiam como folhas mortas
À tona de águas paradas.
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,
Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se pára, se flui;
Não sei se existe ou se dói.

Dia Não

De paisagens mentirosas
De luar e alvoradas
De perfumes e de rosas
De vertigens disfarçadas

Que o poema se desnude
De tais roupas emprestadas
Seja seco, seja rude
Como pedras calcinadas

Que não fale em coração
Nem de coisas delicadas
Que diga não quando não
Que não finja mascaradas

De vergonha se recolha
Se as faces tiver molhadas
Para seus gritos escolha
As orelhas mais tapadas

E quando falar de mim
Em palavras amargadas
Que o poema seja assim
Portas e ruas fechadas

Ah! que saudades do sim
Nestas quadras desoladas!

Poema: José Saramago (in “Os Poemas Possíveis”, Lisboa: Portugália Editora, 1966 – p. 24-25)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília (in LP “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1”, Moshé-Naïm, 1967; CD “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours”, EMEN, 1996)

Versão de Manuel Freire

Poema: José Saramago (in “Os Poemas Possíveis”, Lisboa: Portugália Editora, 1966 – p. 24-25)
Música: Luís Cília
Intérprete: Manuel Freire (in LP “Devolta”, Diapasão/Lamiré, 1978)

José Saramago, escritor e poeta

José Saramago, escritor e poeta

Do cardo que carda a gente

[ Cantilena ]

Do cardo que carda a gente
nele se vê a roupa pouca
corpo tosco tosca terra
nele se escuta a voz ausente

Da água que fura a pedra
vão lamento gasto tempo
dura água que vai dentro
do mais oculto da serra

Da saliva que o mar bebe
sonho leve ondas tontas
luas ocas que nos seguem
na palidez das lucernas

Do povo que pesa os ares
asas vagas bater de asas
sono ébrio que braveja
no crepitar das miragens

Na mão que enxuga a dor
morre a ira cansa a fera
da semente que diz não
iça a torre seca a hera

Povo povo quem te chama
tem a espora no dizer
cada quimera esvaída
no deserto vai morrer

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 165-166)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Dolente

[ Música na Praia ]

Dolente
indolente
no mar indo
no mar vindo
na espuma se abrindo
espreguiçada
dolente
toada brasileira
que dorme
desperta
indo e vindo
vindo e indo
que acorda sonhando
dormindo gemendo
espreguiçada
na areia
melopeia
brasileira
voz quente
na praia ensonada
no mar bocejando
voz quente
quebrando quebrando
cansada
de ir morrendo
mas tão viva sendo
na praia extasiada

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 154-155)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia* (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Dos meus poetas

[ Aos Meus Poetas ]

Dos meus poetas
recebo a alma
em cada palavra.

Suspenso, o vocábulo espera;
a respiração trémula
solta um ciciar inseguro
anunciando o mistério
da melodia.

Dos meus poetas
recebo a alma
em cada palavra.

Música, alimento de música
(os meus poetas)
atingem em cheio
o que de mais oculto
cegamente procuro
numa íntima busca…

Música, alimento de música
(os meus poetas)
atingem em cheio
o que de mais oculto
cegamente procuro
numa íntima busca
deliciosamente eterna…

Poema e música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa)
Versão original: Janita Salomé com Catarina Molder (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)

Eis a que tudo deu

[ Mariana ]

Poema: Manuel Alegre
Música: João Braga
Voz: Maria Ana Bobone

Esta gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

Poema: Sophia de Mello Breyner Andresen (adaptado)
Música: Manuel Lima Brummon
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

Sophia de Mello Breyner

Sophia de Mello Breyner

Esta gente

(Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Geografia”: II – “Procelária”, Lisboa: Edições Ática, 1967; “Obra Poética”, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015 – p. 508)

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo

Homem que vês humanas desventuras

[ Soneto XIV ]

Homem que vês humanas desventuras,
Que te prendes à vida e te enamoras,
Que tudo sabes e que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras;

Que te debruças pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras —
E na ambição das coisas mais impuras
És grande simplesmente quando choras;

Que prometes cumprir e que te esqueces,
Que te dás à virtude e ao pecado,
Que te exaltas e cantas e aborreces,

Arquitecto do sonho e da ilusão,
Ridículo fantoche articulado
— Eu sou teu camarada e teu irmão. [bis]

Poema: António Botto (com o primeiro verso modificado)
Música: Fernando Guerra
Arranjo e orquestração: Jorge Costa Pinto
Intérprete: Carlos do Carmo* (in LP “Carlos do Carmo”, Tecla, 1972; LP “Canoas do Tejo”, Edisom, 1984, reed. Movieplay, 1992, 1998, Universal Music, Série ’50 Anos’, 2013)

António Botto

António Botto

Horizonte

[ Estio ]

Horizonte
todo de roda
caiado de sol.
Ao meio
do cerro gretado
esguia cabeça de cobra
olha assobios de lume
sobre espigas amarelas…
(…Campaniços degredados
na vastidão das searas
sonham bilhas de água fria!…)

Poema: Manuel da Fonseca (in “Planície”, Coimbra: Novo cancioneiro, 1941; “Poemas Completos”, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 3.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1969 – p. 97; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 5.ª edição, Lisboa: Forja, 1975 – p. 108; “Obra Poética”, pref. Mário Dionísio, Lisboa: Editorial Caminho, 1984 – p. 113)
Música: Paulo Ribeiro
Intérprete: Fernando Pardal (in CD “O Céu Como Tecto e o Vento Como Lençóis”, de Paulo Ribeiro, Açor/Emiliano Toste, 2017)

Já Bocage não és

[ Bocage ]

Já Bocage não és, nem podes ser,
a alma do que foste é um soneto
português até no jeito de sofrer
transformando a mágoa em doce afecto.

Animaste as tertúlias lisboetas
com as rimas do ciúme mitigado
engrandecendo a fama dos poetas
à custa da tristeza do teu fado.

Sadino, alfacinha e do mundo,
poeta do assombro de uma escrita
que levou o desespero até ao fundo.

Já Bocage não és, nem podes ser,
a alma do que foste é um soneto
português até no jeito de sofrer
transformando a mágoa em doce afecto.

Sadino, alfacinha e do mundo,
poeta do assombro de uma escrita
que levou o desespero até ao fundo.

Bocage deste sonho que se agita
revelando o que tem de mais profundo
por saber que só alma é infinita.

Poema: José Jorge Letria
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa)
Versão original: Janita Salomé (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)

Meu pai tinha sandálias de vento

[ Um Segredo ]

Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem estar em todos os sítios.

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.

Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.

Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.

Ainda que por ele devorados.

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 16-18)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Não Sei Quantas Almas Tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.

Poema: Fernando Pessoa (ligeiramente adaptado)
Música e arranjo: Paulo Loureiro
Intérprete: Ana Laíns (in CD “Fernando Pessoa: O Fado e a Alma Portuguesa”, Seven Muses/Warner Music, 2013; CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017)
Versão original: Ana Laíns (in Livro/CD “Os Mensageiros: Antologia de Fernando Pessoa”, Seven Muses, 2012)

Os Mensageiros, Antologia de Fernando Pessoa

Os Mensageiros, Antologia de Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho

Fernando Pessoa, in “Novas Poesias Inéditas de Fernando Pessoa”, direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. X, Lisboa: Edições Ática, 1973, 4.ª edição, Lisboa: Edições Ática, 1993 – p. 48

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.

24-8-1930

No amor também as palavras

[ Também as Palavras ]

No amor também as palavras
são necessárias. Os gestos talvez não bastem.
Nem a chuva lá fora enquanto o amor se inflama.
Nem o sussurro nas árvores quando os corpos serenam.
Nem a melopeia das águas quando as bocas se esmagam.
Nem o fulgor dos olhos quando a paixão se amotina.

Penso no amor e logo invento palavras
e logo as palavras se põem ébrias.
Penso no amor e logo as palavras
se soltam como fogosas aves
a que não pergunto o rumo.

Penso no amor e logo preciso
que as palavras digam
que amor é este em que penso e em que grito.

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 79)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia* (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

O coração de poeta

[ Canção de Embalo para as Virgens dos Portos ]

O coração de poeta é oiro estilhaçado
que vai semeando no seu caminho.
Oiro caído é oiro perdido
que o poeta não volta para o regar.
Vão acenar-lhe da largada
como se ele partisse para o cabo do mundo,
que o horizonte é largo e o mar é fundo
e ele não tornará.
Ondas vencidas são ondas perdidas
que o poeta só tem saudades do que virá.

Em cada praia chegada
há luzes festivas na areia:
a voz de mel do poeta triste
é canto feiticeiro de sereia.
Canta, canta, que a tua voz magoada
tenha a tristeza do bem perdido
dos sonhos azuis que o embalaram.
Ai! que dos olhos da barca
se vêem estrelas a brilhar.
Canta, canta, para o tesoiro perdido
que a esperança lá irá naufragar.

Nem a noite nem o dia o trarão consigo:
o horizonte é largo e o mar é fundo,
há outras paragens, no cabo do mundo,
para ele descobrir e enfeitiçar.

Poema: Fernando Namora (in “Mar de Sargaços, Coimbra: Atlântida, 1939; “As Frias Madrugadas”, Lisboa: Arcádia, 1959, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997 – p. 132-133)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Quando chegaste enfim

[ Tarde Demais ]

Poema: Florbela Espanca
Música: Loic da Silva
Intérprete: Sandra Correia

Quem cantará

[ Regresso ]

Quem cantará vosso regresso morto?
Que lágrimas, que grito hão-de dizer
A desilusão e o peso em vosso corpo?

Portugal tão cansado de morrer
Ininterruptamente e devagar
Enquanto o vento vivo vem do mar.

Quem são os vencedores desta agonia?
Quem os senhores sombrios desta noite
Onde se perde, morre e se desvia
A antiga linha clara e criadora
Do nosso rosto voltado para o dia?

Quem cantará vosso regresso morto?
Que lágrimas, que grito hão-de dizer
A desilusão e o peso em vosso corpo?

Portugal tão cansado de morrer
Ininterruptamente e devagar
Enquanto o vento vivo vem do mar.

Poema: Sophia de Mello Breyner Andresen (adaptado)
Música: Manuel Lima Brummon
Intérprete: Tereza Tarouca* (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)

Tereza Tarouca, Álbum de Recordações

Tereza Tarouca, Álbum de Recordações

Regresso

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Mar Novo”, Lisboa: Guimarães Editores, 1958; “Obra Poética”, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015 – p. 394-395

Quem cantará vosso regresso morto
Que lágrimas, que grito hão-de dizer
A desilusão e o peso em vosso corpo?

Portugal tão cansado de morrer
Ininterruptamente e devagar
Enquanto o vento vivo vem do mar

Quem são os vencedores desta agonia?
Quem os senhores sombrios desta noite
Onde se perde morre e se desvia
A antiga linha clara e criadora
Do nosso rosto voltado para o dia?

Resina

[ Líricas ]

Resina
urze
vento:
a infância.
Nas narinas
o suor
dos gados
no tapete
de estrume
das quelhas:
a distância.
Nuvem inconstante
dependurada
do lamento
dos sinos:
a ausência.
Casco e pedras
na marcha
ensonada
dos bois longínquos
colinas brandas
na pura luz
saturada
de moitas
diluvianas
inconstante nuvem
no abandono
de um momento:
oh paisagem
dentro dos olhos
vagabundos
oh paisagem esbatida
na sépia
dos retratos
de antigamente.

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984 – p. 13-14, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 11-12)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Fernando Namora

Fernando Namora

Se me Levam Águas

MOTE ALHEIO

Se me levam águas,
nos olhos as levo.

VOLTAS

Se de saudade
morrerei ou não,
meus olhos dirão
de mim a verdade.
Por eles me atrevo
a lançar as águas
que mostrem as mágoas
que nesta alma levo.

As águas que em vão
me fazem chorar,
se elas são do mar
estas de amor são.
Por elas relevo
todas minhas mágoas;
que, se força de águas
me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
todas são salgadas;
porém as choradas
doces me parecem.
Correi, doces águas,
que, se em vós me enlevo,
não doem as mágoas
que no peito levo.

Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in “Rimas”, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; “Obras de Luís de Camões”, Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 772-773)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília (in LP “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1”, Moshé-Naïm, 1967; CD “La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours”, EMEN, 1996)

CANÇÃO X

Poema de Luís de Camões (in “Rimas”, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; “Rimas”, texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, Coimbra: Livraria Almedina, 2005)
Dito por Luís Miguel Cintra* (in CD “Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra”, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, reed. Livro/CD, Presente, 2011)

Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nacido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n’alma mora?
Mas quem pode algũa hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o melhor, e o pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda menino, os olhos, brandamente,
mandam que, diligente,
um Menino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com ũa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava,
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo me adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.

Foi minha ama ũa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de menino,
que na maior idade beberia,
e, por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de que eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
que se vangloriava todo o mal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.

Não sei como sabia estar roubando
cos raios das entranhas, que fugiam
por ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
bem como do véu húmido exalando
está o sutil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
para quem fica baixo e sem valia
deste nome de belo e de fermoso;
o doce e piadoso
mover de olhos, que as almas suspendia
foram as ervas mágicas, que o Céu
me fez beber; as quais, por longos anos,
noutro ser me tiveram transformado,
e tão contente de me ver trocado
que as mágoas enganava cos enganos;
e diante dos olhos punha o véu
que me encobrisse o mal, que assi creceu,
como quem com afagos se criava
daquele para quem crecido estava.

Que género tão novo de tormento
teve Amor, que não fosse, não somente
provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que o fervente
desejo, que dá força ao pensamento,
tinham de seu propósito abalado,
e de se ver, corrido e injuriado;
aqui, sombras fantásticas, trazidas
de algũas temerárias esperanças;
as bem-aventuranças
nelas também pintadas e fingidas;
mas a dor do desprezo recebido,
que a fantasia me desatinava,
estes enganos punha em desconcerto;
aqui, o adevinhar e o ter por certo
que era verdade quanto adevinhava,
e logo o desdizer-se, de corrido;
dar às cousas que via outro sentido,
e para tudo, enfim, buscar razões;
mas eram muitas mais as sem-razões.

Pois quem pode pintar a vida ausente,
com um descontentar-me quanto via,
e aquele estar tão longe donde estava;
o falar, sem saber o que dezia;
andar, sem ver por onde, e juntamente
suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal me atormentava
e aquela dor que das Tartáreas águas
saiu ao mundo, e mais que todas dói,
que tantas vezes soe
duras iras tornar em brandas mágoas;
agora, co furor da mágoa irado,
querer e não querer deixar de amar,
e mudar noutra parte por vingança
o desejo privado de esperança,
que tão mal se podia já mudar;
agora, a saudade do passado
tormento, puro, doce e magoado,
fazia converter estes furores
em magoadas lágrimas de amores.

Que desculpas comigo que buscava
quando o suave Amor me não sofria
culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
o medo do tormento que ensinava
a vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto ũa parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão semente
de longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
estes passos tão vãmente espalhados,
me foram apagando o ardente gosto
que tão de siso n’alma tinha posto,
daqueles pensamentos namorados
em que eu criei a tenra natureza,
que do longo costume da aspereza,
contra quem força humana não resiste,
se converteu no gosto de ser triste.

Dest’arte a vida noutra fui trocando;
eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
passando o longo mar, que ameaçando
tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu
(e neste escudo meu
a pintura verão do infesto fogo);
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti, Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
ũa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piadade humana me faltava,
a gente amiga já contrária via,
no primeiro perigo; e, no segundo,
terra em que pôr os pés me falecia,
ar para respirar se me negava,
e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nacer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tanto males como aquele
que, despois da tormenta procelosa,
os casos dela conta em porto ledo;
que inda agora a Fortuna flutuosa
a tamanhas misérias me compele,
que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
nem bem que me faleça já pretendo,
que para mim não vale astúcia humana;
de força soberana,
da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse
o tempo para trás, como a memória,
pelos vestígios da primeira idade,
e de novo tecendo a antiga história
de meus doces errores, me levasse
pelas flores que vi da mocidade;
e a lembrança da longa saudade
então fosse maior contentamento,
vendo a conversação leda e suave,
onde ũa e outra chave
esteve de meu novo pensamento,
os campos, as passadas, os sinais,
a fermosura, os olhos, a brandura,
a graça, a mansidão, a cortesia,
a sincera amizade, que desvia
toda a baixa tenção, terrena, impura,
como a qual outra algũa não vi mais…
Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que ainda não posso
domar este tão vão desejo vosso?

Nõ mais, Canção, nõ mais; que irei falando,
sem o sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada
a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!

Gravado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa, por Vasco Pimentel, em 1995
Pós-produzido no Estúdio Grande Som, Lisboa

Se olhas a distância

[ Se o Coração Não Cansa ]

Se olhas a distância
talvez julgues que é tarde
e que a rosa se deixou abrir
até ser calafrio
e que tudo é o vazio
sem números nas portas
onde pernoitar de tanta viagem.

Olharás a neve que apagou
as horas e os passos
e a palidez dos espelhos
devorando o silêncio
e o crescer da relva na memória
dos longes coados.
A sombra da cinza
é orvalho
e nele os remos não avançam
no vento fatigado.
Resignado te olhas
fundindo os portos e as lendas
onde a infância gela
na remota espera
de ser desatino.
Mas não
de todas as vezes diz não
para que o tempo se desprenda
nas velas magras.

Se o coração não cansa
nada é tarde
nada.

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 106-107)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Sorrindo interiormente

[ Porque o Melhor ]

Sorrindo interiormente,
co’as pálpebras cerradas,
às águas da torrente
já tão longe passadas.

Rixas, tumultos, lutas,
não me fazerem dano…
alheio às vãs labutas,
às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
a poda, a cava e a redra,
e eu dormindo um sono
debaixo duma pedra.

Porque o melhor, enfim,
é não ouvir.
Porque o melhor
é não ouvir nem ver,
passarem sobre mim
e nada me doer.

Melhor até se o acaso
o leito me reserva
no prado extenso e raso
apenas sob a erva.

Ou no serrano mato,
a brigas tão propício,
onde o viver ingrato
dispõe ao sacrifício.

Porque o melhor, enfim,
é não ouvir.
Porque o melhor
é não ouvir nem ver,
passarem sobre mim
e nada me doer.

Roubos, assassinatos!
horas jamais tranquilas,
em brutos pugilatos
fracturam-se as maxilas…

E eu sob a terra firme,
compacta, recalcada,
muito quietinho, a rir-me
de não me doer nada.

Porque o melhor, enfim,
é não ouvir.
Porque o melhor
é não ouvir nem ver,
passarem sobre mim
e nada me doer.

Porque o melhor, enfim,
é não ouvir.
Porque o melhor
é não ouvir nem ver,
passarem sobre mim
e nada me doer.

Poema: Camilo Pessanha (excerto adaptado)
Música: José Barros
Arranjo: José Barros e Miguel Tapadas
Intérprete: José Barros e Navegante
Versão original: José Barros e Navegante (in CD “À’Baladiça”, Tradisom, 2018)

Tinhas a serena grandeza desse mar

[ Sophia ]

Tinhas a serena grandeza desse mar
que em verso se tornava sinfonia,
rumor de búzio e brancura de coral
celebrando cada instante de alegria.

Tinhas da palavra a medida sempre exacta,
a mais certa, a mais justa, a mais perfeita
e eram de oiro e âmbar e de prata
os versos que nasciam dessa colheita.

Tinhas a serena grandeza desse mar
que em verso se tornava sinfonia,
rumor de búzio e brancura de coral
celebrando cada instante de alegria.

Tinhas da palavra a medida sempre exacta,
a mais certa, a mais justa, a mais perfeita
e eram de oiro e âmbar e de prata
os versos que nasciam dessa colheita.

Tinhas a leveza da onda e da ave
e a claridade matinal que anuncia
em cada verso o timbre e a chave
desse mistério chamado poesia.

Tinhas a altiva grandeza do que fica
na memória do que somos e valemos
e a ciência que do verbo faz a casa
da beleza a que todos nos rendemos.

Tinhas a leveza da onda e da ave
e a claridade matinal que anuncia
em cada verso o timbre e a chave
desse mistério chamado poesia.

Tinhas a altiva grandeza do que fica
na memória do que somos e valemos
e a ciência que do verbo faz a casa
da beleza a que todos nos rendemos.

Tinhas a leveza da onda e da ave
e a claridade matinal…

Poema: José Jorge Letria
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa)
Versão original: Janita Salomé (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)

Todo o amor que nos prendera

[ Primavera ]

Todo o amor que nos prendera,
como se fora de cera,
se quebrava e desfazia.
Ai funesta Primavera,
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia!

E condenaram-me a tanto:
viver comigo o meu pranto,
viver, viver… e sem ti!
Vivendo sem, no entanto,
eu me esquecer desse encanto
que nesse dia perdi…

Pão duro da solidão
é somente o que nos dão,
o que nos dão a comer…
Que importa que o coração
diga que sim ou que não,
se continua a viver?

Todo o amor que nos prendera
se quebrara e desfizera,
em pavor se convertia.
Ninguém fale em Primavera!
Quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia!

Poema: David Mourão-Ferreira
Música: Pedro Rodrigues
Intérprete: Amália Rodrigues (1965, in CD “Segredo”, EMI-VC, 1997; CD “Amália canta David”, Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011)

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira

Um dia quebrarei todas as pontes

[ As Fontes ]

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude e o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz, a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude e o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz, a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Irei beber a luz e o amanhecer…
Um voo me atravessa,
E nela cumprirei…
E nela cumprirei…
E nela cumprirei todo o meu ser.

Poema: Sophia de Mello Breyner Andresen (adaptado)
Música e arranjo: Filipe Raposo
Intérprete: Ana Laíns com Filipe Raposo (in CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017)

As fontes

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Poesia”, Coimbra: Edição da autora, 1944; “Obra Poética I”, Lisboa: Editorial Caminho, 1990 – p. 60

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Vens como uma aparição

[ Aparição ]

Vens como uma aparição
apenas vestida com a tua beleza
dos teus gestos tombam as pétalas
que acabaram de abrir
e em mim escorrem como orvalho
que o morno hálito fundiu

vens e entras em mim com a subtileza da nuvem que abraçou o sol
e o bebe inteiro para o ter só seu
ou como lança ardente
que rasga de lava a paisagem amortecida

vens e ficas e incorporas-te
até não haver mais do que uma súplica
nem mais do que um fogo
nem mais do que uns braços
nem mais do que uma boca
nem mais do que um olhar de pálpebras cerradas
todo recolhido no que nele é júbilo e dor
dor de ser breve sabendo-se embora infindável
a vertigem transporta-nos como no poema da Ada Negri
e deixa-nos num lugar que nem é presença
nem ausência
apenas o exacto lugar
onde apenas cabe um corpo que instantes antes eram dois.

Uma folha tomba do plátano diz a Ada.
És tu és tu que me levas pelos ares.

Poema: Fernando Namora (in “Nome para uma Casa”, Venda Nova – Amadora: Livraria Bertrand, 1984, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 – p. 104-105)
Música: Francisco Ceia
Intérprete: Francisco Ceia (in CD “Sandálias de Vento”, Francisco Ceia/Pirilampo, 2002)

Camilo Pessanha, poeta

Camilo Pessanha, poeta, na canção portuguesa

Porque o melhor, enfim

(Camilo Pessanha, in “Clepsydra”, Lisboa: Edições Lusitania, 1920; “Clepsidra e Outros Poemas”, Org. João de Castro Osório, 9.ª edição, Lisboa: Editorial Nova Ática, 2003 – p. 76-78)

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!

— Sorrindo interiormente,
Co’as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. —

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazem dano…
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope…
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas…

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua.

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos…

Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam-se as maxilas…

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

Part(Ida)

Vou
para um outro mundo
que não tenha fim
ou uma barca a mais

Vou para um outro dia
que não tenha sombra
sou sabor a sol

Vou para um outro sonho
que não tenha aves
ou palmas de mãos

(PART)IDA – Lectio X [satb (ssaatb)]
Música: Alfredo Teixeira
Poema: Daniel Faria*
Intérprete:
Coro Ricercare
Dir. Pedro Teixeira
Solistas: Raquel Pedra, Ana Baptista

Festival Antena 2, 15 -02-2020, no Salão Nobre do Teatro Nacional de São Carlos

*Daniel Faria, Das madrugadas, in Poesia, Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2009.

Daniel Faria, poeta
Daniel Faria, poeta
Partilhe
Share on facebook
Facebook
Galo de Barcelos

Poemário da Canção Portuguesa

A Senhora está sentada

A Senhora está sentada
Não tem pés, pois muito andou
Já nem na memória há rastos
Do tempo que caminhou

A Senhora está sentada
Numa redoma de luz
E é uma nave perdida
Nenhuma rota a conduz

E a Senhora está sentada
Numa montanha de fel
Rios correm dos seus olhos
E dos seus lábios o mel

E a Senhora está sentada
Tem parado o respirar
Do seu peito saem chamas
Das que não sabem queimar

E a Senhora está sentada
Sobre as dores de cada um
Do seu ventre sai remédio
Que cura como nenhum

E a Senhora está sentada
Numa matéria sem nome
Transformada numa estátua
Que não tem sono nem fome

E a Senhora está sentada
Sobre as suas próprias mãos
E baloiça no vazio
No céu de todos os chãos

Letra e música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge (in CD “Todos os Dias”, Columbia/Sony, 1994)

A solidão

[ Nem Mal Que Sempre Dure, Nem Bem Que Nunca se Acabe ]

A solidão espalhada p’los penedos
Embrulha a alma em folhas de saudade
A noite acorda o sabor dos segredos
E traz nos dedos a cor da vontade

E só a voz da Lua é que me amansa
E me adormece ao canto da gaivota
No fim do mundo o tempo quebra a dança
E o vento lança aromas de outra rota

O sol acalma como um grão de areia
E dorme enquanto espera a madrugada
Em cada noite escura há uma candeia
Em cada ceia há uma fome adiada

Em cada grito há uma voz calada
Encruzilhada p’lo meio do caminho
Em cada sono há uma alma acordada
Desnorteada como um burburinho

Ouvi dizer o povo e o povo bem o sabe:
“Nem mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.”

Mal amanhece o horizonte espreita
Enquanto espera pelo raiar do dia
Já se adivinha o calor que se ajeita
E o chão aceita o fim da noite fria

Rir da tristeza, chorar da alegria
Abrir caminhos como um peregrino
Deixar que a vida traga outro dia
Fazer folia a meias com o destino

Ouvi dizer o povo e o povo bem o sabe:
“Nem mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.

Ouvi dizer o povo e o povo bem o sabe:
“Nem mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.”

Letra e música: Sebastião Antunes
Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha*
Versão discográfica anterior: Sebastião Antunes & Quadrilha com Carlos Moisés (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019)
Versão original: Quadrilha (in CD “A Cor da Vontade”, Vachier & Associados, 2003)
Outra versão: Quadrilha (in CD “Deixa Que Aconteça: Ao Vivo”, Vachier & Associados/Ovação, 2006)

A verdade vem ao de cima

A verdade vem ao de cima e mostra
O que em baixo tem, que ao de cima não se gosta
A verdade tem algo difícil de atingir
Quando em cima há quem, por baixo vem e te faça distrair

A verdade vem ao de cima e mostra
A verdade vê e ao de cima há-de vir
A verdade vem ao de cima e mostra
A verdade vê e ao de cima há-de vir

Quando de baixo vem, tão hibernado e escondido,
O desejo de ter e conhecer o proibido
Quando a vontade for escorregando a mentir
A verdade vê e ao de cima há-de vir

A verdade vem ao de cima e mostra
A verdade vê e ao de cima há-de vir
A verdade vem ao de cima e mostra
A verdade vê e ao de cima há-de vir

E por mais que tentes dar a volta
A verdade veio sempre e sempre há-de vir
Há-de vir n’outro presente às cambalhotas
Noutro presente há-de vir, noutro presente há-de vir

A verdade vem ao de cima e mostra
A verdade vê e ao de cima há-de vir
A verdade vem ao de cima e mostra
A verdade vê e ao de cima há-de vir
(bis)

Letra e música: Luís Pucarinho
Intérprete: Luís Pucarinho com Duarte (in CD “Orgânica Mente Humana”, Caracol Secreto Associação/Alain Vachier Music Editions, 2015)

Acorda meu sangue preso

[ Cantar para Um Pastor ]

Acorda meu sangue preso
Acorda meu sangue mudo
Se te amo, não te amo
E meu cantar não diz tudo

Meu olhar de madrugada
Pastor da noite comprida
Luz no peito vigiada
Liberdade consentida

Acorda meu sangue preso
Rasga o ventre do meu dia
Se te amo, não te amo
Meu pastor de alegria

Meu pastor de alegria
Meu olhar de madrugada
Se eu piso campos verdes
É sempre noite na estrada

Se te amo, não te amo
Meu olhar de madrugada
Trago uma pomba de espanto
Nesta garganta velada

Poema: Matilde Rosa Araújo
Música: Adriano Correia de Oliveira
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira (in “Cantaremos”, Orfeu, 1970, reed. Movieplay, 1999; “Obra Completa”: CD “A Noite dos Poetas “, Movieplay, 1994)

Acredito em pouca coisa

Acredito em pouca coisa
que venha escrita em loiça,
dessa de pôr na parede.

Acredito mais no desempenho
da laranja que apanho,
que como e me mata a sede.

Acredito nas façanhas,
muito menos nas patranhas
de quem faz só porque sim.

Acredito nas crianças,
no meu ventre são esperanças
de um futuro sem fim.

Acredito na loucura
de quem pede mais ternura
e vira costas à guerra.

Acredito na fé dos outros
que às vezes abrem poços
só para encontrar mais terra.

Acredito no Caetano,
no Zambujo que é meu mano,
em todas as vozes calmas.

Acredito na poesia
e também na aletria,
em todos adoçantes de almas.

Acredito na minha mãe,
ela que sofreu bem
para que eu fosse como sou.

Crente nos frutos e flores,
nos mais impossíveis amores,
onde o Sol mais brilhar eu estou.

Letra: Celina da Piedade
Música: Alex Gaspar
Intérprete: Celina da Piedade
Versão original: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)

Agora e na Boa Hora

Agora e na boa hora
Saio de casa p’ra fora;
Quem mal me queira fazer
Deus as queira arrepender.

Tenha pernas e não ande!
Tenha braços e não mande!
Tenha boca e não fale!
Tenha olhos e não veja!

Agora e na boa hora
Saio de casa p’ra fora;
Quem mal me queira fazer
Deus as queira arrepender.

Tenha pernas e não ande!
Tenha braços e não mande!
Tenha boca e não fale!
Tenha olhos e não veja!

Agora e na boa hora
Saio de casa p’ra fora;
Quem mal me queira fazer
Deus as queira arrepender.

Tenha pernas e não ande!
Tenha braços e não mande!
Tenha boca e não fale!
Tenha olhos e não veja!

Agora e na boa hora
Saio de casa p’ra fora;
Quem mal me queira fazer
Deus as queira arrepender.

Tenha pernas e não ande!
Tenha braços e não mande!
Tenha boca e não fale!
Tenha olhos e não veja!

Agora e na boa hora
Saio de casa p’ra fora;
Quem mal me queira fazer
Deus as queira arrepender.

Letra: Oração tradicional
Música e arranjo: César Prata
Intérprete: César Prata e Vânia Couto
Versão original: César Prata e Vânia Couto (in CD “Rezas, Benzeduras e Outras Cantigas”, Sons Vadios, 2019)

Águas claras

[ Canção das Águas Claras ]

Águas claras, águas claras
Que dos rochedos caíam;
Morreram as águas claras
Onde os meus sonhos bebiam.

Era o sol, era a lua,
Era a flor que aparecia;
A solidão da rua
Também toda lá bebia.

Agora a mágoa me acena
Das minhas mãos agitadas.
Quem dera fossem penas
Os rochedos de águas claras!

Águas claras, águas claras
Que dos rochedos caíam;
Morreram as águas claras
Onde os meus sonhos bebiam.

Dessa paisagem não sei,
Nem a saudade precisa;
Coração, eu não parei,
Tira-me a hora indecisa!

Do tempo que era quimera,
Não quero que tenha fim…
Porque é que o tempo não espera,
Nem nunca esperou por mim?

Águas claras, águas claras
Que dos rochedos caíam;
Morreram as águas claras
Onde os meus sonhos bebiam.

Águas claras, águas claras
Que dos rochedos caíam;
Morreram as águas claras
Onde os meus sonhos bebiam.

Letra: Joaquim Pedro Gonçalves
Música: Ricardo Ribeiro
Intérprete: Ricardo Ribeiro
Versão original: Ricardo Ribeiro (in CD “Hoje É Assim, Amanhã Não Sei”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2016)

Ai amigos

[ A Lei dos Sentidos ]

Ai amigos…
Na ilusão ridícula de sermos imortais e querermos acertar
Se inventarmos fugas, ideias e diferenças vão chamar-nos loucos
Se fugirmos à norma e pensarmos longe – somos anormais
Se sonharmos mar, montanhas e vento – vamos ser tão poucos…

E afinal viver é este tempo breve dado para a memória
Uma novela curta que sempre ansiamos de grandes paixões
Mas cada um de nós vale muito pouco para as contas da História
Somos só formigas enchendo o planeta de tantos milhões

Pequenos demais, vagueando aí, sem esperança nem jeito
Buscando a nobreza de um outro sentir, feito de emoções
Buscando impossíveis de amor e beleza num tempo perfeito
Querendo a felicidade e o sucesso inteiro em vinte lições

Deixem-me sonhar que num tempo novo nascerão do caos
O homem completo, a gente bonita, a nação ternura
Sem raivas nem ódios, nem fés de rancores, nem dogmas estreitos
E que um mundo outro, mais belo e mais pleno, nos nasce e perdura

Um mundo onde os poetas não sejam estudados como anormais
E os homens justos e as gentes de estudo sejam distinguidos
E a sabedoria seja infinda e livre e nunca demais
E então se publique, por decreto urgente – a lei dos sentidos!

Letra e música: Pedro Barroso
Intérprete: Pedro Barroso
Versão original: Pedro Barroso (in CD “Artes do Futuro”, Ovação, 2017)

Ai levaram-me os temas

[ Caixinha de Mão ]

Ai levaram-me os temas,
Os meus longos poemas,
As canções de amor

Ai levaram-me os temas,
Os meus longos poemas,
As canções de amor

Foi o meu menino, chamado Paixão,
Que mos levou numa caixinha de mão
Para os guardar e depois cantar
Se o coração deixar

Foi o meu menino, chamado Paixão,
Que mos levou numa caixinha de mão
Para os guardar e depois cantar
Se o coração deixar

Ai, mas se ele voltasse
E ao meu lado se deitasse
Ao meu lado a brincar
Com a caixinha dos temas

Fazia-me os temas
Longas são as histórias de amor
Para as guardar e depois cantar
Se o coração deixar

Letra e música: Tiago Curado de Almeida
Intérprete: Pensão Flor
Versão original: Pensão Flor (in CD “O Caso da Pensão Flor”, Pensão Flor/Brandit Music, 2013)

Ali estavas tu

Ali estavas tu olhando à janela, quando voltei já quase dia
Da boémia, da boémia e do som.
E desceste até à porta, num sorriso maior e num abraço
Num abraço sentido

Colaram-se os corpos numa dança, varrendo tudo pelo chão
Um aceso rebolar sufocante e o suor em crescente pulsação
E a força, o sangue corre num único sentido
Algo em mim se vai e morre e me consome morto e vivo

Como quem sabe de cor, puseste-me um cigarro na boca
E com amor, um brilho nos olhos
Em corpo nu à luz de uma vela, perguntei-te baixinho
“Quando voltas? Quando voltas à janela?”

Colaram-se os corpos numa dança, varrendo tudo pelo chão
Um aceso rebolar sufocante e o suor em crescente pulsação
E a força, o sangue corre num único sentido
Algo em mim se vai e morre e me consome morto e vivo

Ali estavas tu olhando à janela, quando voltei já quase dia
Da boémia, da boémia e do som.
E desceste até à porta, num sorriso maior e num abraço
Num abraço sentido
Ficaste tu olhando à janela…

Letra e música: Luís Pucarinho
Intérprete: Luís Pucarinho (in CD “Orgânica Mente Humana”, Caracol Secreto Associação/Alain Vachier Music Editions, 2015)

Ao correr da queda de água

[ Fraga da Pena ]

Ao correr da queda de água
Fui lavar um sentimento:
Deixei acalmar a mágoa
Enquanto escutava o vento.

A saltar entre os penedos,
As águas vão ensinando
As lembranças e os segredos
Que a serra vai murmurando.

E as penas quem as apaga
Para a alma ficar serena?
Penas grandes como a fraga
São como a Fraga da Pena.

E as penas quem as apaga
Para a alma ficar serena?
Penas grandes como a fraga
São como a Fraga da Pena.

Enquanto a tarde se deita
Nas sombras da penedia,
A água aos poucos ajeita
O raiar do novo dia.

Trigueira de água nos dedos
Desce da serra apressada:
Vem a cantar pelos penedos
Para me saudar à chegada.

Enquanto a noite me afaga,
Enquanto a lua me acena,
Adormeço ao som da fraga:
Ao som da Fraga da Pena.

Enquanto a noite me afaga,
Enquanto a lua me acena,
Adormeço ao som da fraga:
Ao som da Fraga da Pena.

E as penas quem as apaga
Para a alma ficar serena?
Penas grandes como a fraga
São como a Fraga da Pena.

Enquanto a noite me afaga,
Enquanto a lua me acena,
Adormeço ao som da fraga:
Ao som da Fraga da Pena.

Letra: Sebastião Antunes
Música: Fernando Pereira
Intérprete: Real Companhia com Ana Laíns (in CD “Serranias”, Tê, 2013)

Ao som de uma caixa de música

[ Caixinha de Música ]

Ao som de uma caixa de música acordou João
Ao lado do berço um corpo caído, desilusão
A casa vazia e no ar um cheiro a solidão
Para lá da janela uma visão tão estranha
O que terá acontecido?

Como um pássaro que saiu do ninho e esvoaçou
João deu a medo alguns passos pelo quarto e sem querer
Debruçou o corpo sobre o chão morno e adormeceu
Talvez p’ra dormir o seu último sono
E o que fica a dizer de…?

João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de mal e de bem
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de realidade

Uma brisa estranha chegou de repente, com sabor a fim
E uma noite fria caiu sobre os restos do auge do poder
Entre o tudo e o nada ficou uma sombra, uma recordação
Talvez algum dia alguém venha a perguntar:
“O que terá acontecido?”

Um manto de fumo cobriu a cidade, em forma de adeus
Talvez p’ra apagar a última imagem guardada da Terra
A tocar no meio do deserto plantado a caixinha ficou
Testemunha ingénua das glórias já findas
E das marcas da vida

João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de mal e de bem
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de realidade

Letra e música: Sebastião Antunes
Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha com João Pedro Pais (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019)
Versão original: Peace Makers (in single “Caixinha de Música / Recordação de Hiroshima”,
Victória Records, 1988)
Outra versão: Quadrilha (in CD “Deixa Que Aconteça: Ao Vivo”, Vachier & Associados/Ovação, 2006)

Sebastião Antunes & Quadrilha, Perguntei ao Tempo
Sebastião Antunes & Quadrilha, Perguntei ao Tempo

Às vezes

Às vezes, dou por mim quase esquecido
Suspirando, meio-perdido
Sem ninguém p’ra conspirar

Por linhas tortas,
Troco as palavras e abro portas
Invento frases de lamento
Houvesse alguém p’ra duvidar…

Se eu fosse a ti vinha a correr
Não vês que em ti eu posso ser
A sede ardente de um desejo

Se eu fosse a ti vinha a voar
Os pés no ar a querer andar
Sentir o corpo a levitar
Na febre quente de mais um beijo

Às vezes, dou por mim quase rendido
No teu canto preferido
A sorte teima em não passar

Mas sou teimoso
E fico à espera no mesmo lugar
Onde passas sem parar
Houvesse alguém p’ra duvidar…

Se eu fosse a ti vinha a correr
Não vês que em ti eu posso ser
A sede ardente de um desejo

Se eu fosse a ti vinha a voar
Os pés no ar a querer andar
Sentir o corpo a levitar
Na febre quente de mais um beijo

Se eu fosse a ti vinha a correr
Não vês que em ti eu posso ser
A sede ardente de um desejo

Se eu fosse a ti vinha a voar
Os pés no ar a querer andar
Sentir o corpo a levitar
Na febre quente de mais um beijo

Na febre quente de mais um beijo

Letra e música: Jorge Roque
Intérprete: Jorge Roque
Versão original: Jorge Roque (in CD “Às Vezes”, Vidisco, 2013)

Baco quando nasceu

[ O Deus de Todo o Vinho ]

Baco quando nasceu
Pediu à mãe um copinho
E disse: – vou ser deus!
Vou ser deus de todo o vinho!

A mãe ficou intrigada
Com tanta sabedoria;
Baco de cara corada
Sabia bem o que queria.

Abençoado tu sejas,
Ó vinho mosto de surdos!
Diz que dás a vista aos cegos
E também a fala aos mudos.

Em vez de leite, bebia
Uns copos de vinho tinto;
Só chorava de alegria,
Que menino tão distinto!

As fraldas eram de parra,
Os caracóis cheios de curvas;
A chucha uma coisa rara
Toda enfeitada com uvas.

Abençoado tu sejas,
Ó vinho mosto de surdos!
Diz que dás a vista aos cegos
E também a fala aos mudos.

Baco lá foi crescendo
Por entre copos de vinho,
Com os amigos bebendo
Pelas tascas do caminho.

Recordando que ao nascer
Pediu à mãe um copinho
E disse: – vou ser deus!
Vou ser deus de todo o vinho!

Abençoado tu sejas,
Ó vinho mosto de surdos!
Diz que dás a vista aos cegos
E também a fala aos mudos.

Letra: José Luís Gordo
Música: Carlos Alberto Moniz
Intérprete: Carlos Alberto Moniz
Versão original: Carlos Alberto Moniz (in Livro/2CD “O Vinho dos Poetas”: CD 1, Carlos Alberto Moniz/Ovação, 2014)

Caem tordos e pardais

[ Perdidos pela Estrada ]

Caem tordos e pardais das varandas, dos telhados
Caem todos os normais sem asas levantados
Caídos morrem pela rua na tristeza e pela fome
Porque as vidas não são as suas e sem vida tudo morre

Quem por ti pensa e vê e te diz como tudo deve ser?
Quem a ti te encaminha e faz render?
Quem por ti decide, por ti irá viver?

De tão certos e arrumados nas gavetas inventadas
Nas varandas e telhados, sem da vida verem nada
Seguem do formato o trilho, da moral endiabrada
Que se perdem no caminho todos, todos pela mesma estrada

Quem por ti pensa e vê e te diz como tudo deve ser?
Quem a ti te encaminha e faz render?
Quem por ti decide, por ti irá viver?

Quem por ti… por ti irá viver?
E te diz…

Quem por ti decide, por ti irá viver?

Letra e música: Luís Pucarinho
Intérprete: Luís Pucarinho (in CD “Orgânica Mente Humana”, Caracol Secreto Associação/Alain Vachier Music Editions, 2015)

Cantiga de Vir ao Mundo

Já sentes em ti o que vais ser
Já dormiste um sono profundo
Chegou a hora d’amanhecer
Deixar p’ra trás a porta do mundo

Vais repousar na estrela-d’alva
E dançar a dança dormente
Ouro na pele, incenso e salva
Desabraçar o ninho mais quente

Tens o sol riscado nas asas
Um rei sem roque nem patrão
Um deus a quem dei coração
A sombra incerta do amor

Serás acaso, serás fronteira
Sussurrando temporais
Velhas perguntas, luas inteiras
Vencendo a sina dos mortais

Tens o sol riscado nas asas
Um rei sem roque nem patrão
Um deus a quem dei coração
A sombra incerta do amor

Letra: Miguel Cardina
Música: Pedro Damasceno e Sara Vidal
Arranjo: Diabo a Sete e Julieta Silva
Intérprete: Diabo a Sete* (in CD “Figura de Gente”, Sons Vadios, 2016)

Carolina, esta cantiga é para ti

[ Quando Nasceste ]

Carolina, esta cantiga é para ti.
Um dia desvendarás a poesia
que a música esconde.
Amo-te.
Sinto que o amanhã
é ontem e o hoje
é a revelação
do espírito livre
e inquieto.

Música: Ricardo Ribeiro
Intérprete: Ricardo Ribeiro (in CD “Largo da Memória”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2013)

Chega-se a este ponto

Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Já não sei em que mês…
Chega-se a este ponto em que se fica à espera

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe

Chega-se a este ponto…
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe

Chega-se a este ponto… em que se fica à espera
Chega-se a este ponto… em que a gente não sabe
Chega-se a este ponto… em que se fica à espera

Poema: David Mourão-Ferreira (adaptado)
Música: José Mário Branco
Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)

Chegámos, tu e eu

[ Cena Final ]

Chegámos, tu e eu, ao fim do jogo
O nosso amor morreu, não há mais fogo
Eu compreendo…
Lamento não poder chorar de raiva
Mas entendo

Já palmilhámos juntos muita estrada
E agora que estamos no fim da jornada
Fica um vazio…
Eu não quero mais ser marinheiro
No teu navio

No teu navio
E ter a vida
Por um fio

Não esperes tu de mim que de ti fuja
Não gosto de lavar a roupa suja,
Fica tão mal…
Confesso que nunca pensei ser actor
Da cena final

Se há coisa que comigo não resulta
É sentir que trago a rédea curta,
Eu não aguento…
Do que eu gosto mesmo é de ser livre
Como o vento

Eu não aguento
Quero ser livre
Como o vento

Não esperes tu de mim que de ti fuja
Não gosto de lavar a roupa suja,
Fica tão mal…
Confesso que nunca pensei ser actor
Da cena final

Se há coisa que comigo não resulta
É sentir que trago a rédea curta,
Eu não aguento…
Do que eu gosto mesmo é de ser livre
Como o vento

Eu não aguento
Quero ser livre
Como o vento

Letra e música: Aníbal Raposo
Intérprete: Aníbal Raposo com Vânia Dilac (ao vivo no Teatro da Luz, Lisboa)
Versão original: Aníbal Raposo (in CD “Maré Cheia”, Aníbal Raposo/MM Music, 1999)

Cheiro bom

[ Há Vida no Bairro ]

Cheiro bom
Risos e gente a conversar

No jardim
homens que sabem o que jogar

Há mais um
vizinho novo para cantar

A canção
marcha que o Bairro há-de ganhar

E tu quem és? De donde vens?
Porque não te chegas mais?
Vem cá ver, acreditar
que as pessoas são bens reais!

Ser feliz
é nunca mais voltar
a estar só

No jardim
falta uma peça
ao dominó

Sê mais um para mostrar
como se canta
em dó

Aprender
como se dança
sem levantar pó

O que é meu é p’ra dar
Deus não quer tralha no Céu
Não há nada p’ra guardar
Viver já é um troféu

O que é meu é p’ra dar
Deus não quer tralha no Céu
Não há nada p’ra guardar
Viver já é um troféu

Ser feliz
é nunca mais voltar
a estar só

No jardim
falta uma peça
ao dominó

Sê mais um para mostrar
como se canta
em dó

Aprender
como se dança
sem levantar pó

Letra: Eugénia Ávila Ramos
Música: Tiago Oliveira
Intérprete: Rua da Lua
Versão original: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)

Com um copo de vinho

[ A Tua Boca Tem Sabor a Mosto ]

Com um copo de vinho, afogo
Esta mágoa de ver-me perdido
Por um bago de esp’rança, que provo
No lagar do teu corpo despido.
És de uma casta que se apanha a gosto:
Claretes, verdelhos…
A tua boca tem sabor a mosto
E a frutos vermelhos.
E a fome que te sinto no meu peito
Vai morrer de qualquer jeito
No balseiro desta vida.
Depois, abre-se a porta da adega
E o teu corpo já se apega
Numa prova de carinho.

Com um copo de vinho, levanto
Este brinde ao corpo que canto.
Ao teu ombro murmuro baixinho:
Este corpo que bebo é vinho.

Com um copo de vinho, aqueço
A palavra ternura e teço
Estes versos de uva que esmago
Com vontade de seres um bago.
Beber-te toda neste copo imenso
Sentindo que é cedo
P’ra te deixar saber que tenho medo
Que fujas… E penso:
O amor é como o vinho encorpado,
Deixa o corpo orvalhado
Pelos beijos da manhã.
Teu corpo é preciso esconder,
Pois só eu posso saber
O sabor que o vinho tem.
Com um copo de vinho, levanto
Este brinde ao corpo que canto.
Ao teu ombro murmuro baixinho:
Este corpo que bebo é vinho.

Letra: Álamo Oliveira
Música: Carlos Alberto Moniz
Intérprete: Carlos Alberto Moniz
Versão original: Carlos Alberto Moniz (in Livro/2CD “O Vinho dos Poetas”: CD 1, Carlos Alberto Moniz/Ovação, 2014)

Coração Estoirado

[ Coração de Fita-Cola ]

Coração Estoirado,
Peito feito mola
Pelas ruas a teu lado
Colado com fita-cola

Sempre vacilado,
Sempre a 100 à hora
Sem saber o que fazer
Só tu perdes p’la demora

E num beijo longo, só te quero sentir
Corro, sinto perigo, paro p’ra fingir

Sente a Solidão, meu corpo no tempo
Dá-me a tua mão, meu tormento

Os teus passos mais distantes,
Sempre sem saber
Se o futuro agora é antes
O que mais não posso ter

Saio porta fora
Sem saber o que escrever
Rasgo a vida e vou-me embora
Nas palavras por dizer

E num beijo longo, só te quero sentir
Corro, sinto perigo, paro p’ra fingir

Sente a Solidão, meu corpo no tempo
Dá-me a tua mão, meu tormento

Sobre a tua mão
Escrever o meu nome
A palavra mais sincera
Antes de a dizer, já era
O verbo mais que perfeito
Na perfeição desse jeito
Com que a tua boca
Diz e pede mais
Amor

Letra e música: Jorge Roque
Intérprete: Jorge Roque
Versão original: Jorge Roque (in CD “Às Vezes”, Vidisco, 2013)

Coram de vermelho

[ Damas da Côrte ]

Coram de vermelho
As damas de toda a côrte:
Seu costume é velho,
Não há moda que o troque!

E se por magia
Sua pele mudou de cor,
Foi amor de um dia,
Não dura mas tem sabor…

Casam cinco damas
E outras tantas são solteiras;
Num amor em chamas
As damas são as primeiras!

Damas de cristal,
Coração tão valioso,
Riso ou castiçal
E um olhar mui carinhoso…

Letra e música: José Flávio Martins
Intérprete: Senhor Vadio (in CD “Cartas de um Marinheiro”, José Flávio Martins/iPlay, 2013) [>> YouTube] [ao vivo nos estúdios do Porto Canal, 12 Nov. 2013 – a partir de 8′:06” >> Sapo Vídeos]
Versão original: Frei Fado d’El Rei (in CD “Danças no Tempo”, Columbia/Sony Música, 1995) [>> YouTube]

Corre a gente decidida

[ A Correr ]

Corre a gente decidida
P’ra ter a vida que quer,
Sem repararmos que a vida
Passa por nós a correr;

Às vezes até esquecemos,
Nessa louca correria,
Por que motivo corremos
E p’ra onde se corria.

Buscando novos sabores
Corre-se atrás de petiscos;
Quem corre atrás de valores
Corre sempre grandes riscos;

E dá p’ra ser escorraçado
Correr de forma diferente;
Há quem seja acorrentado
Por correr contra a corrente.

Num constante corrupio
Já nem sequer nos ocorre
Que a correr até o rio,
Chegando ao mar, também morre;

Ou atrás do prejuízo
Ou à frente da ameaça
Corremos sem ser preciso:
E a correr, a vida passa.

Percorrendo o seu caminho,
Correndo atrás dum sentido
Há quem dance o corridinho;
Eu canto o fado corrido

E o que me ocorre agora
P’ra não correr qualquer perigo
É correr daqui p’ra fora
Antes que corram comigo.

Vou correr daqui p’ra fora
Antes que corram comigo!

Letra: Manuela de Freitas
Música: Alain Oulman (“O Pião”)
Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)

Creio nos anjos

[ Credo ]

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Poema: Natália Correia (in “Sonetos Românticos”, 1990; “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”, 1993)
Música: Janita Salomé (in CD “Raiano”, Farol Música, 1994)

Cruzaste horizontes

[ Nas Estradas a Guiar ]

Cruzaste horizontes
Entre curvas e montes…
Ó emigrante, eu quero apenas te lembrar!
Passaste montanhas,
Estradas estranhas…
Ó emigrante, eu quero apenas te ajudar!
Vens de tão longe, guiar bem é teu querer…
Há tantas vidas perdidas p’ra recordar…
Olha que a ti também te pode acontecer:
Na estrada a morte espreita,
Não a queiras encontrar!
Tens a vida p’ra viver
E tantos sonhos p’ra sonhar…

Trazes saudades contigo, vem devagar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo p’ra festejar
Tanto tempo ausente,
Há sempre tempo p’ra chegar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!

Trazes saudades contigo, vem devagar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo p’ra festejar
Tanto tempo ausente,
Há sempre tempo p’ra chegar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!

Cruzaste fronteiras
Com tantas canseiras…
Ó emigrante, eu quero apenas te ajudar!
Vens sorridente,
Feliz e tão contente…
Ó emigrante, eu quero apenas te lembrar!
Há tantas festas, romarias p’ra bailar…
A vida são dois dias, não te deixes descuidar!
Que tenhas sorte por aqui no teu país!
Que sejas bem feliz
Nas estradas a guiar!
Tens a vida p’ra viver
E tantos sonhos p’ra sonhar…

Trazes saudades contigo, vem devagar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo p’ra festejar
Tanto tempo ausente,
Há sempre tempo p’ra chegar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!

Trazes saudades contigo, vem devagar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo p’ra festejar
Tanto tempo ausente,
Há sempre tempo p’ra chegar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!

Trazes saudades contigo, vem devagar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo p’ra festejar
Tanto tempo ausente,
Há sempre tempo p’ra chegar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!

Trazes saudades contigo, vem devagar!
Tem cuidado, emigrante,
Nas estradas a guiar!
Trazes saudades contigo p’ra festejar
Tanto tempo ausente,
Há sempre tempo p’ra chegar!…

Letra e música: Dino Meira
Arranjo: Ramon Galarza
Intérprete: Dino Meira (in single “Adeus Paris, Até Lisboa / Nas Estradas a Guiar”, Philips/Polygram, 1983; CD “O Melhor de Dino Meira”, col. Coração Português, Mercury/Universal, 1999; CD “O Melhor de Dino Meira”, Universal, 2007)

Dá-me o amanhã

Dá-me o amanhã
Dá-mo, que depois de amanhã já cá não estou
Vou na senda dos demais que se perdem

Quero o teu calor
Quero o teu ser, o teu eu, o teu haver
Quero provar-te e beber a tua dor

Quero-te nos braços
Toma-me nos braços, quero as lágrimas que choras
Não por mim, mas já que as choras
Quero a pele que elas molham
E os meus lábios as sorvam
Quero o corpo onde moras

Dá-me o amanhã
Dá-mo, que depois de amanhã já cá não estou
Vou na senda dos demais que se perdem

Quero-te as entranhas
Quero-te por dentro e por fora e já agora
Quero roubar-te os sentidos
Quero-te a ti por inteiro
Quero que unamos destinos
Quero-te a ti por inteiro
Por inteiro

Letra e música: Manuel Maio
Intérprete: A Presença das Formigas (in CD “Pé de Vento”, A Presença das Formigas/Careto/XMusic, 2014)

Dança comigo

Dança comigo, morena
Leveza de pena
Esta dança breve
Dança e rodopia
Solta-me a alegria
De quem nada deve

Acende-me a cara, o rosto
Os lábios de mosto
Riso de marfim
Requebra a cintura
Que és a criatura
Nascida para mim

Vamos, a dança é louca
Dá-me a tua boca
Que este beijo é meu
Dança comigo amada
Eu já estou na escada
Que me leva ao céu

Ao som da concertina
(Cinturinha fina
Pele de cetim)
Dança, meu amor
Não sei doutra flor
Que bem dance assim

Dança com fantasia
No fim deste dia
Que se vai embora
No passo da vida
Dancemos querida
Que é a nossa hora

Vamos, a dança é louca
Dá-me a tua boca
Que este beijo é meu
Dança comigo amada
Eu já estou na escada
Que me leva ao céu

Vamos, a dança é louca
Dá-me a tua boca
Que este beijo é meu
Dança comigo amada
Eu já estou na escada
Que me leva ao céu

Vamos, a dança é louca
Dá-me a tua boca
Que este beijo é meu
Dança comigo amada
Eu já estou na escada
Que me leva ao céu

Letra e música: Aníbal Raposo (2006-09-26)
Intérprete: Aníbal Raposo
Versão original: Aníbal Raposo (in CD “Rocha da Relva”, Aníbal Raposo/Global Point Music, 2013)

Das casas que ninguém construiu

Das casas que ninguém construiu
me deram esta para morar:
ficou-me o céu como tecto
e o vento como lençóis…
Dos trapos que atiram fora
me permitiram um para eu vestir.
Das chuvas que caem do tecto do meu lar
me consentiram abafos para as quatro estações.
(Ah, se não fosse às vezes fazer sol…)
Das mulheres que ninguém quer
me negaram a última de todas,
a última de todas as mulheres!
E quando notaram que eu parecia um homem,
pois tinha
ouvidos para ouvir
e olhos para ver,
em todas as estradas do mundo
me gritaram:
— Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!

Poema: Manuel da Fonseca (in “Rosa-dos-Ventos”, Lisboa: Imprensa Baroeth, 1940; “Poemas Completos”, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 3.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1969 – p. 35-36; “Poemas Completos”, pref. Mário Dionísio, 5.ª edição, Lisboa: Forja, 1975 – p. 58)
Música: Paulo Ribeiro
Arranjo: Jorge Moniz
Intérprete: Paulo Ribeiro
Versão original: Paulo Ribeiro (in CD “O Céu Como Tecto e o Vento Como Lençóis”, Açor/Emiliano Toste, 2017)

[ O Vagabundo ]

Dás mais um passo no escuro

[ Dalla ]

Dás mais um passo no escuro
Sem olhar para trás a pensar
Nem anos nem meses, sem contar as vezes
Que a vida te olhou a cantar

Passas o circo a correr,
A banda sempre a tocar
Sem rede e sem chão, agarras a minha mão
E pedes p’ra eu te salvar

Se eu fosse um anjo, tu serias
Um ser Maior, maior que encanto
Cantas a noite em vez do dia
Guardas a paz num doce manto
Às vezes cantas num leve beijo brando

Lamentas que riam de ti,
Pensas diferente e depois
Libertas Amor sem qualquer pudor,
Singela partilha entre dois
A vida passou, e tu já sentes
Um pouco mais de solidão
Acabas cansado, p’ra sempre roubado
Do ouro do teu coração

Se eu fosse um anjo, tu serias
Um ser Maior, maior que encanto
Cantas a noite em vez do dia
Guardas a paz num doce manto
Às vezes cantas num leve beijo brando

Letra e música: Jorge Roque
Intérprete: Jorge Roque
Versão original: Jorge Roque (in CD “Às Vezes”, Vidisco, 2013)

De São Mateus ao Pesqueiro

[ Vinho de Cheiro ]

De São Mateus ao Pesqueiro
A recta só tem três curvas;
Em São Mateus vinho de cheiro
Mas no Pesqueiro é que há uvas.

Porto Martins: uva preta;
Biscoitos: chão de verdelho;
Da Praia inté à Serreta:
Vinho novo, vinho velho.

Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
Ai, ai, meu vinho festeiro!
Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
O povo chama ao terreiro.

‘Tá um sol qu’inté consola,
O adro ficou à cunha;
Bota aqui mais meia-bola
P’rás favas de molho de unha!

Empina o canjirão!
Leva à boca a teladeira!
O toiro é um malão,
Não saias da minha beira!

Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
Ai, ai, meu vinho festeiro!
Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
O povo chama ao terreiro.

Sempre desde pechinchinho
Que sonhava ser moleiro:
E a mó do meu moinho
Só rodava a vinho de cheiro.

P’ra que fosse um matulão
Mamãe teve este cuidado:
Comi das sopas que dão
Ao cavalo quando cansado.

Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
Ai, ai, meu vinho festeiro!
Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
O povo chama ao terreiro.

Nasci no mês de Janeiro,
Era um bezerro mamão:
Só mamava vinho de cheiro
Na teta dum garrafão.

No “Biéxe” comprei uns blue jeans
Todos brancos – um brinquinho;
Mas ao chupar uns “candins”
Borrei as calças de vinho.

Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
Ai, ai, meu vinho festeiro!
Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
O povo chama ao terreiro.

Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
Ai, ai, meu vinho festeiro!
Vinho de cheiro,
Vinho de cheiro,
O povo chama ao terreiro.

Letra: Vasco Pereira da Costa
Música: Carlos Alberto Moniz
Intérprete: Carlos Alberto Moniz
Versão original: Carlos Alberto Moniz (in Livro/2CD “O Vinho dos Poetas”: CD 2, Carlos Alberto Moniz/Ovação, 2014)

De um trapo velho

[ Cinco Vidas ]

De um trapo velho
fiz cinco saias que querem rodar
Num pano branco
cosi cinco bolsos para te levar

De saco às costas parti
sem saber se ia voltar
Cabeça erguida
e olhos de quem quer olhar

Pus-te na minha mão
cinco dedos para me escapar
O mundo deu-me então
cinco vidas para me curar

E lá do bolso de trás
perguntaste se ainda podias falar
Cabeça erguida, respondi:
tanto me faz

Pela estrada andei
quantas voltas eu dei
sem encontrar
um motivo para voltar

De um trapo velho fiz
cinco saias que querem rodar
Num pano branco cosi
cinco bolsos para te levar

E lá do bolso de trás
perguntaste quando ia parar
Cabeça erguida, respondi:
até ter paz

Pela estrada andei
quantas voltas eu dei
sem encontrar
um motivo para voltar

tanto me faz
até ter paz

Letra: Eugénia Ávila Ramos
Música: Tiago Oliveira
Intérprete: Rua da Lua
Versão original: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)

Deixei de olhar p’ra quem fui

[ Cantiga do Tempo Novo ]

Deixei de olhar p’ra quem fui,
Do passado estou ausente;
Às vezes mais vale a pena
Rir de tudo o que faz pena
Da alma triste da gente.

Vou lançar mãos à aventura,
Correr noutra direcção;
Quanto mais nos lamentamos
Ainda mais presos ficamos
E nos dói o coração.

Quando me ponho a pensar
Em alguém que tanto quis,
Já não me sento a chorar
E até me dá p’ra cantar
Modas que um dia lhe fiz.

Agora sinto-me livre,
Sem nada p’ra me prender:
E vou pela estrada fora
Rumo ao sul vou sem demora,
Basta o sol p’ra me aquecer.

A nossa vida é um mar
Com muitas marés e vagas:
Não temos nada a perder,
O melhor mesmo é viver
Combatendo as nossas mágoas.

Tenho o mundo à minha espera,
Há ilhas por descobrir:
E há uma vontade nova,
Um tempo que se renova,
Novo amor que vai surgir.

Letra e música: Paulo Ribeiro
Arranjo: Há Lobos Sem Ser na Serra
Intérprete: Há Lobos Sem Ser na Serra (in CD “Cantares do Sul e da Utopia”, Há Lobos Sem Ser na Serra/Alain Vachier Music Editions, 2016)
Versão original: Paulo Ribeiro com o Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias” (in CD “Aqui Tão Perto do Sol”, EMI-VC, 2002)
Outra versão de Paulo Ribeiro (in CD “Canções 1998-2002”, Paulo Ribeiro, 2014)

Deixo-te ao postigo

[ Amores de Jericó ]

Deixo-te ao postigo
Um lenço e uma rosa;
Vou partir p’ra longe,
Partir sem demora.

Não chores por mim!
Eu não o mereço:
Sou sombra fugaz
Mas não te esqueço.

Não queiras saber
O que eu não te digo:
Sou fora-da-lei,
Sou mais que um bandido.

Não venhas por mim
Que eu não sei amar!
Com a faca nos dentes
Meu verbo é zarpar.

O Sol já desponta,
Vai-se a madrugada:
O perigo espreita;
Adeus, minha amada!

Não quero teus ais,
Ouve o que eu te digo:
Ande eu onde andar,
Estarás sempre comigo.

Não queiras saber
O que eu não te digo:
Sou fora-da-lei,
Sou mais que um bandido.

Não venhas por mim
Que eu não sei amar!
Com a faca nos dentes
Meu verbo é zarpar.

Não queiras saber
O que eu não te digo:
Sou fora-da-lei,
Sou mais que um bandido.

Não venhas por mim
Que eu não sei amar!
Com a faca nos dentes
Meu verbo é zarpar.

Letra e música: Celina da Piedade e Alex Gaspar
Intérprete: Celina da Piedade
Versão original: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)

Dizem

Dizem que nunca te amei,
Que fui sempre um ‘bon vivant’
E que vou ser sempre assim.
Também dizem que sou ‘gay’,
Que durmo em qualquer divã
Quando a noite chega ao fim.

Dizem que não te mereço,
Que p’ra mim tudo tem preço:
Sou oferta e oferecido.
Dizem que eu ando à mercê,
Que não sou o que se vê:
Bandido e caso perdido.

Dizem que fui e não vou,
Dizem que estive e não estou,
Mas que devia ter ido.
Também dizem, quando estou,
Que o dia bom já passou:
Não sou tido nem ouvido.

Dizem uns que outros não dizem,
Porque não querem saber
Do tanto que há por dizer.
Dos tantos que tanto dizem,
Nada sabem do que dizem
E mais nada vão saber.

Dos tantos que tanto dizem,
Nada sabem do que dizem
E mais nada vão saber.

Letra: Duarte
Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição)
Intérprete: Duarte* (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)

Do Cerro venho descendo

[ Piedra y Camino ]

Do Cerro venho descendo,
Caminho e pedra;
Trago enredada na alma, vida,
Uma tristeza.

Acusas de não querer-te,
Isso não faço:
Talvez não compreendas nunca, vida,
Porque me afasto.

É o meu destino,
Pedra e caminho;
De um sonho longínquo e belo, vida,
Sou peregrino.

Por mais que a dita busque,
Vivo penando;
E quando devo ficar, vida,
Eu vou andando.

Às vezes sou como um rio,
Chego cantando;
E sem que ninguém o saiba, vida,
Sigo chorando.

É o meu destino,
Pedra e caminho;
De um sonho longínquo e belo, vida,
Sou peregrino.

Letra e música: Atahualpa Yupanqui
Adaptação ao português: Celina da Piedade
Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)
Versão original: Atahualpa Yupanqui (in LP “Camino del Indio”, RCA Victor (Argentina), 1964; CD “Atahualpa Yupanqui”, Calle Mayor (Espanha), 2017)
Outra versão: Mercedes Sosa (in LP “Mercedes Sosa interpreta Atahualpa Yupanqui”, Philips (Argentina), 1977, reed. Universal Music Argentina, 2010)

E o canto de quem dera

[ Quem Dera ]

E o canto de quem dera
Não era bem seu canto;
Seria profecia… Não era,
E fez-se santo…

Quem dera que chovesse
E o mar fosse p’ra o céu,
P’ra que eu me convencesse
A bailar com um só véu!

Misturo a minha espera,
Sacudo o meu capote,
E na história quem me dera
Que o “burro” fosse mote…

Três cantos desta história
Ficaram por contar;
Só mesmo na memória
Quem dera recordar…

Saída de um só dia
Com traje a rigor:
Quem dera a sinfonia
Cantasse a sua cor…

A cor do teu lamento
Sem tempo de pensar,
A deusa do teu vento
Nasceu no teu olhar…

Ah! Se eu soubesse…
Ou adormecesse,
Voava em tons de azul;
Quem dera que eu soubesse…

E se uma quimera
Logo me quisesse…
Quem dera ela fosse,
Na espera que eu soubesse…

E o canto de quem dera
Não era bem seu canto;
Seria profecia… Não era,
E fez-se santo…

Quem dera que chovesse
E o mar fosse p’ra o céu,
P’ra que eu me convencesse
A bailar com um só véu!

Misturo a minha espera,
Sacudo o meu capote,
E na história quem me dera
Que o “burro” fosse mote…

Ah! Se eu soubesse…
Ou adormecesse,
Voava em tons de azul;
Quem dera que eu soubesse…

E se uma quimera
Logo me quisesse…
Quem dera ela fosse,
Na espera que eu…

Ah! Se eu soubesse…
Voava em tons de azul,
E se uma quimera
Na espera que eu…

Ah! Se eu soubesse…
Ou adormecesse,
Voava em tons de azul;
Quem dera que eu soubesse…

E se uma quimera
Logo me quisesse…
Quem dera ela fosse,
Na espera que eu soubesse…

Ah! Se eu soubesse…
Ou adormecesse,
Voava em tons de azul,
Quem dera que eu soubesse…

E se uma quimera
Logo me quisesse…
Quem dera ela fosse,
Na espera que eu…

Ah! Se eu soubesse…
Ou adormecesse,
Voava em tons de azul;
Quem dera que eu soubesse…

E se uma quimera
Logo me quisesse…
Quem dera ela fosse,
Na espera que eu soubesse…

Letra: José Flávio Martins
Música: José Flávio Martins e Paulo Coelho de Castro
Intérprete: Senhor Vadio (in CD “Cartas de um Marinheiro”, José Flávio Martins/iPlay, 2013)

É ou Não É?

Cos’è, cos’è
che fa andare la filanda?
È chiara la faccenda
son quelle come me.

E c’è, e c’è
che ci lascio sul telaio
le lacrime del guaio
di aver amato te.

É ou não é
que o trabalho dignifica?
É assim que nos explica
o rifão que nunca falha.
É ou não é
que disto toda a verdade
é que só por dignidade,
no mundo, ninguém trabalha?

É ou não é
que o povo nos diz que não,
que o nariz não é feição,
seja grande ou delicado?
No meio da cara
tem por força que se ver
mesmo a quem não o meter
aonde não é chamado.

E digam lá se é assim ou não é?
Ahi l’amore, ai l’amore!…
Digam lá se é assim ou não é?
Ahi l’amore che cos’è?

Cos’è, cos’è
questa grande differenza
se non facevi senza
di questi occhi miei?

Perchè, perchè
nella mente del padrone
ha il cuore di cotone
la gente come me?

É ou não é
que um velho que à rua saia
pensa, ao ver a mini-saia:
“Este mundo está perdido!”?
Mas se voltasse
agora a ser rapazote
acharia que o saiote
é muitíssimo comprido.

É ou não é
bondosa a humanidade?
Todos sabem que a bondade
é que faz ganhar a Céu;
Mas a verdade,
nua sem salamaleque,
tive de a aprender, é que…
ai de mim se não for eu!

E digam lá se é assim ou não é?
Ahi l’amore, ai l’amore!…
Digam lá se é assim ou não é?
Ahi l’amore che cos’è?

Letra e música: Alberto Fialho Janes (com versos da versão italiana, intitulada “La Filanda”, escrita por Vito Pallavicini para a cantora Milva, in single “La Filanda / Un Uomo in Meno”, Dischi Ricordi, 1971, LP “La Filanda e Altre Storie”, Dischi Ricordi, 1972)
Intérpretes: José Barros & Mimmo Epifani* (ao vivo no Teatro da Luz, Lisboa)
Versão discográfica de José Barros & Mimmo Epifani (in CD “Mar da Lua”, José Barros/Tradisom, 2015)
Versão original: Amália Rodrigues (in EP “É ou Não É?”, Columbia/VC, 1970; LP “Oiça Lá ó Senhor Vinho”, Columbia/VC, 1971, reed. EMI-VC, 1992; 2LP “O Melhor de Amália: Vol. II – Tudo Isto é Fado”: LP 2, EMI-VC, 1985, reed. EMI-VC, 2000)

Entre Sodoma e Gomorra

Entre Sodoma e Gomorra
entrou na cama a barata
a virginal favorita
que às escondidas me mata

São horas de perder horas
ou de minutos apenas
Entre Sodoma e Gomorra
fui ver o mar a Atenas

Entre Sodoma e Gomorra
entrou na cama a barata
a virginal favorita
que às escondidas me mata

Entre Sodoma e Gomorra
somaras a minha vida
Barata, minha barata
não me deixes à deriva

Entre Sodoma e Gomorra
entrou na cama a barata
a virginal favorita
que às escondidas me mata

São horas de perder horas
ou de minutos apenas
Entre Sodoma e Gomorra
fui ver o mar a Atenas

Poema: José Afonso (in “José Afonso: Textos e Canções”, org. J.H. Santos Barros, Lisboa: Assírio e Alvim, 1983 – p. 321; 3.ª edição revista, org. Elfriede Engelmayer, Lisboa: Relógio d’Água, 2000 – p. 75)
Música: João Afonso Lima e Zé Lima
Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)
Versão original: José Mário Branco, Amélia Muge e João Afonso (in 2CD “Maio Maduro Maio”: CD 1, Columbia/Sony Música, 1995)

Era redondo o vocábulo

[ Era um Redondo Vocábulo ]

Era redondo o vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

Era redondo o vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

Poema e música: José Afonso
Intérprete: Janita Salomé (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa)
Versão anterior de Janita Salomé (in CD “Valsa dos Poetas”, Cantar ao Sol/Ponto Zurca, 2018)
Outra versão de Janita Salomé, grav. ao vivo no CCB em 1998 (in CD “Utopia: Vitorino e Janita Salomé cantam José Afonso (ao vivo)”, EMI-VC, 2004)
Versão original: José Afonso (in LP “Venham Mais Cinco”, Orfeu, 1973, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art’Orfeu Media, 2012)

Há dias que nascem

[ Às Voltas nas Incertezas ]

Há dias que nascem
P’ra não ter um fim
Sentidos inversos
Cá dentro de mim
E vou enganando a dor
Fingindo que é mesmo assim

Desejos secretos
De cor carmesim
Agora vazios
Outrora jardins
E meus silêncios que escondem
O sonho de um querubim

Às voltas nas incertezas
Dançando sobre as brasas
Que as penas magoadas
São ar nas minhas asas
E parto rumo a um novo dia
Virgem como da primeira vez

Amores que se trazem
De pó das estrelas
Das cinzas renascem
Montados sem selas
Que em lume ardendo bem lento
Se forjam as almas belas

Às voltas…
Às voltas…

Às voltas nas incertezas
Dançando sobre as brasas
Que as penas magoadas
São ar nas minhas asas
E parto rumo ao infinito
Como se fosse a primeira vez

Letra e música: Rui Filipe Reis
Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)

Há um espaço entre tu e eu

[ Orla dos Malditos ]

Há um espaço entre tu e eu
Sem esforço sinto-o aqui
Em todo o lado
Está de vazio ocupado

Espaço de nada, de ricos segredos
De histórias, de homens, de medos
Inexplorados
De curandeiros, de magos

Diria mesmo que é baldio,
Nasceu da luxúria,
Do fogo, do prazer, do cio,
E nada tem de aconchegado

De todos os monstros que vivem,
Os mais estranhos habitam ao lado

E há povos malditos,
Avós (a vós): filhos proscritos
No mar
Onde estou

Morrem de esperança, de sede, de fome
De enganos, sonhos perdidos
Vida encantada
Quem mais tem é quem dá nada

Caminho longo com olhares
Num horizonte de desejos
Promessas de azares
Imaginário e real (irreal)

Fronteiras e muralhas guardam
Impérios longe da marginal

E há corpos errantes,
Desertores, naufragantes
No mar
Onde vou

Deixa-me ser o teu abrigo,
Que te abraça com doçura,
Com calma, sem perigo…
Como sol quente no fim do Verão

Letra e música: André Cardoso
Intérprete: A Presença das Formigas (in CD “Pé de Vento”, A Presença das Formigas/Careto/XMusic, 2014)

Medo

[ Sai da Concha ]

Medo: a forma mais poderosa da crença
Crença que é crença dá na TV
e toda a gente consome e vê
a ameaça, viver em terror

E quando sentes que tu não andas
Bem a favor
Sê a negra do rebanho do pastor
Faz a diferença, sai da concha
Sai da concha
Sai da concha do medo

Cumpres o dever e vives apático
Carregas a crença em piloto automático
Todos te abordam em estilo dogmático
Porque o medo é um motor

E quando sentes que tu não andas
Bem a favor
Sê a negra do rebanho do pastor
Faz a diferença, sai da concha
Sai da concha
Sai da concha do medo

Quando tu queres pensar em paz e amor
Enfiam-te a lógica do ser sonhador
“És um tipo estranho, até me dás graça”
Cravam-te o medo na carapaça

E quando sentes que tu não andas
Bem a favor
Sê a negra do rebanho do pastor
Faz a diferença, sai da concha
Sai da concha
Sai da concha do medo

Jogos, net, drogas, prazer e viv’ó mercado!
Vacinam-te na fé que só tu és culpado
Tens a doença, tu vives em pecado
De novo o medo põe-te ajoelhado

E quando sentes que tu não andas
Bem a favor
Sê a negra do rebanho do pastor
Faz a diferença, sai da concha
Sai da concha
Sai da concha do medo

‘High society’, gira e boa, famosa, escultural
E o lambe-botas que subiu afinal
Dizem: “Mas eu não vejo qual é o mal,
Subir na vida é natural”

E quando sentes que tu não andas
Bem a favor
Sê a negra do rebanho do pastor
Faz a diferença, sai da concha
Sai da concha
Sai da concha…

Sai da concha
Sai da concha
Sai da concha…
Sai da concha
Sai da concha
Sai da concha do medo

Letra e música: Luís Galrito
Intérprete: Luís Galrito* (in CD “Menino do Sonho Pintado”, Kimahera, 2018)

Meu menino assustado

[ Menino do Sonho Pintado ]

Meu menino assustado
Que tens o céu como tecto
Tens estrelas a afagar
O sonho por ti pintado

Tens a Lua como mãe
Que te aconchega o jornal
Conta a história de embalar
Desliga a luz infernal

O pai sol de manhã vem
Pelo vitral da bonança
Que um dia o homem
Que é dono da guerra
Não roube o teu sonho de criança

O homem da guerra é tramado
E difícil de entender
Vive também assustado
Com o medo de perder

Não vendo que já perdeu
O que tu trazes contigo
Menino, vês no outro lado
Não medo mas um amigo

No Mundo que é de guerra
Menino vem ver
Todos temos contigo a aprender
Que a verdade de ser grande
É igual ao grande do teu ser

Ser amor, querer a Paz
Apagar o céu riscado
Assim tão mal desenhado
Com tintas de medo e afins

Meu menino assustado
Nesse teu céu desenhado
Verás o teu amor sonhado
Por ti e outros iguais a ti

O sonho é um menino eternamente menino
O sonho é um tesouro antigo repartido por quem precisa
O sonho é uma canção feliz para um menino triste

Letra e música: Luís Galrito
Intérprete: Luís Galrito (in CD “Menino do Sonho Pintado”, Kimahera, 2018)

Na Machamba

Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dói-dói meu coração
Por ti, meu amor, dói-dói meu coração

Desde que você foste embora
sono não tem, não, não, não
acorda na madrugada
o galo cantando co-ri-cô-cô
Nos olhos sono que pesa
maningue saudade no coração
Nos olhos sono que pesa
maningue saudade no coração

Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dói-dói meu coração
Por ti, meu amor, dói-dói meu coração

Pé no cacimba, vou na machamba
sem matubixo
Panela de mangungu não tem
chicafo, não, não, não
ô-ô-i-ô, Maria, meu amor
Quando qu’eu zangou
eu tinha era só babalaza
Quando qu’eu zangou
eu tinha era só babalaza

Mariana…

Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dói-dói meu coração
Por ti, meu amor, dói-dói meu coração

Mariana Maria Madalena
Mariana Maria Madalena
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração
Por ti, meu amor, dou dois xi-coração…

Letra e música: Tomás Vieira Mário
Intérprete: João Afonso com Las Hijas del Sol (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)

O coração

[ Mano Pedro ]

O coração tem a vista
bem virada para o mar
Tua mão cheia de areia
faz de conta que é luar

Quando o vento se põe lesto
faz-te à chuva e ao relento
O meu irmão tem um sonho
eu tenho-o no pensamento

O silêncio diz às vezes
tudo aquilo que guardamos:
os receios e os medos
e outras coisas que não damos

Quando o céu se torna estrela
a brilhar por um momento
o meu irmão tem um sonho
eu tenho-o no pensamento

Quando procuro guarida
nas canções, no desabafo
a dançar ao fim do dia
no guardar do teu abraço

Pensar na cor da janela
p’ra cantar, fazer em verso
O meu irmão tem um sonho
eu tenho-o no pensamento

Eu tenho-o no pensamento
Eu tenho-o no pensamento
Eu tenho-o no pensamento

Letra e música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)

João Afonso

João Afonso

Os Homens Mais Velhos do Bar

Os homens mais velhos do bar fazem lembrar os sinais do entardecer
Como um dia que já passou mas que deixou tanta coisa por fazer
Os homens mais velhos do bar entre cigarros e copos sem graça
Vêem as gaiatas passar – a noite é que já nunca passa.

Os homens mais velhos do bar contam histórias quando o Outono vem
Andaram por longe, eu sei lá, e há coisas que não vão contar a ninguém
Os homens mais velhos do bar sabem que a vida já não lhes diz que sim
P’ra os outros o bar está a fechar mas p’ra eles o bar não tem fim.

Senta-te aqui à minha frente
Tenho uma história p’ra te contar
Ficava triste se tu não tivesses
Vontade de aqui ficar
Vou-te falar de um lobo sozinho
Que se apaixonou p’la lua-cheia
E ainda tem um lugar vago
Na cama que a lua não quis.

Os homens mais velhos do bar sabem que as nuvens são como a solidão
Que às vezes parecem partir mas voltam sempre lá p’ra o fim do Verão
Aos homens mais velhos do bar é a noite quem lhes afaga a mão
Companheira que não tem destino mas que acaba sempre por ter razão.

O tempo é um doido a correr, a manhã está longe e não quer voltar
Há muito que assim passou a ser p’ra quem pensa que assim vai passar
E há tantos que não querem saber dos homens mais velhos do bar
É que são mais os que se afogam num copo do que aqueles que se afogam no mar.

Senta-te aqui à minha frente
Tenho uma história p’ra te contar
Ficava triste se tu não tivesses
Vontade de aqui ficar
Vou-te falar de um lobo sozinho
Que se apaixonou p’la lua-cheia
Que ainda tem um lugar vago
Na cama que a lua não quis.

Letra e música: Sebastião Antunes
Arranjo: Gonçalo Pratas
Intérprete: Sebastião Antunes (in CD “Singular”, Sebastião Antunes & Quadrilha/Alain Vachier Music Editions, 2017)
Versão original: Quadrilha (in CD “Até o Diabo se Ria”, Polydor/Polygram, 1995)

Quando ela passa

[ Rosinha dos Limões ]

Quando ela passa,
Franzina e cheia de graça,
Há sempre um ar de chalaça
No seu olhar feiticeiro;
Lá vai catita,
Cada dia mais bonita…
E o seu vestido de chita
Tem sempre um ar domingueiro.

Passa ligeira,
Alegre e namoradeira,
A sorrir p’rá rua inteira
Vai semeando ilusões;
Quando ela passa,
Vai vender limões à praça…
E até lhe chamam, por graça,
A Rosinha dos limões.

Quando ela passa,
Junto da minha janela,
Meus olhos vão atrás dela
Até ver da rua o fim;
De ar gaiato,
Ela caminha apressada
Rindo por tudo e por nada…
E às vezes sorri para mim.

Quando ela passa,
Apregoando os limões,
A sós com os meus botões
No vão da minha janela,
Fico pensando
Que qualquer dia, por graça,
Vou comprar limões à praça
E depois caso com ela.

Quando ela passa,
Apregoando os limões,
A sós com os meus botões
No vão da minha janela,
Fico pensando
Que qualquer dia, por graça,
Vou comprar limões à praça
E depois caso com ela.

Letra e música: Artur Ribeiro
Intérprete: Real Companhia (in CD “Orgulhosamente Nós!”, Lusogram, 2000)
Versão original: Artur Ribeiro (in single 78 r.p.m. “A Rosinha dos Limões / Canção da Beira”, Estoril, 1951; CD “Rosinha dos Limões (Original)”, Discoteca Amália, 1993)
Primeira versão de Max (in single 78 r.p.m. “Ilha da Madeira / A Rosinha dos Limões”, Columbia/VC, 1954)
Segunda versão de Max (in EP “Vielas de Alfama”, Decca/VC, 1967; CD “O Melhor de Max”, EMI-VC, 1989; CD “Max: Biografias do Fado”, EMI-VC, 2004; CD “Max: Essencial”, Edições Valentim de Carvalho/CNM, 2014)

Quando for grande

[ Carteiro em Bicicleta ]

Quando for grande vou ser
quero ser um realejo
ter um pedaço de terra
fogo que salta ao braseiro
dormir no fundo da serra
quero ser um realejo

Carteiro em bicicleta
leva recados de amor
Vem o sono com a música
ao som do… do realejo

Quando for grande vou ser
quero ser um realejo
ter um burro, viola e cão
chamar a dança dos sapos
correr com a bola na mão
quero ser um realejo

Quando for grande vou ser
quero ser um realejo
colher amêndoa em telhados
dar banana às andorinhas
dobrar o cabo do mundo
quero ser um realejo

Carteiro em bicicleta
leva recados de amor
Vem o sono com a música
ao som do… do realejo

Quando for grande vou ser
quero ser um realejo
ter um burro, viola e cão
chamar a dança dos sapos
correr com a bola na mão
quero ser um realejo

Carteiro em bicicleta
leva recados de amor
Vem o sono com a música
ao som do… do realejo

Letra e música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)

João Afonso
João Afonso

Que faz o sol?

[ Eu Não Sei Que Faz o Sol ]

Que faz o sol?
Que faz o sol?
Que faz o sol?
Que faz o sol?

Eu não sei que faz o sol
que não dá na minha rua
Hei-de me vestir de branco
que de branco anda a lua

Não vi ribeira sem água
nem praça sem pelourinho
nem donzelas sem amores
nem padres sem beber vinho

Que faz o sol?
Que faz o sol?
Que faz o sol?
Que faz o sol?

Lindos olhos de pau-preto
nariz de pena aparada
dentes de letra miúda
boca de carta cerrada

Lindos olhos tem a cobra
quando olha de repente
Mais vale um bom desengano
que andar enganado sempre

Eu não sei que faz o sol
que não dá na minha rua
Hei-de me vestir de branco
que de branco anda a lua

Não vi ribeira sem água
nem praça sem pelourinho
nem donzelas sem amores
nem padres sem beber vinho

Que faz o sol?
Que faz o sol?
Que faz o sol?
Que faz o sol?

Lindos olhos de pau-preto
nariz de pena aparada
dentes de letra miúda
boca de carta cerrada

Lindos olhos tem a cobra
quando olha de repente
Mais vale um bom desengano
que andar enganado sempre

Que faz o sol?
Que faz o sol?

Mais vale um bom desengano
que andar enganado sempre
que andar enganado sempre
que andar enganado sempre

Poema: José Afonso (in “José Afonso: Textos e Canções”, 2.ª edição revista e aumentada, org. Elfriede Engelmayer, Lisboa: Assírio e Alvim, 1988 – p. 289; 3.ª edição revista, org. Elfriede Engelmayer, Lisboa: Relógio d’Água, 2000 – p. 48)
Música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)

José Afonso

José Afonso

Quem Não Tem Amor Sou Eu!

Quem não tem amor sou eu,
Da rapaziada solteira;
Vivo muito satisfeito
Se nunca encontrar quem me queira.

I

Ainda nunca encontrei
Raparigas a meu jeito;
Todas me encontram defeito,
Por isso é que não casei.
Já algumas namorei,
De que lado venho eu?
Essa que a honra perdeu,
Para mim não tem valia;
Dos rapazes da freguesia,
Quem não tem amor sou eu.

II

Há muito rapaz casado
Que foi comigo ao sorteio;
Eu digo e não me arreceio:
Não quero mudar de estado
Para não ser censurado,
Por usar barba ou pêra;
E se calho com uma zopeira
Que não me sabe respeitar,
Sou dos que fico a pensar,
Da rapaziada solteira.

III

Muitos que vivem isentos,
Até à hora de casar,
Sua honra vão estragar
Ao risco dos casamentos:
Andam porcos e sebentos,
Elas não lhes têm respeito;
Tratam-nos com certo jeito,
Sempre de tira-virão;
Gabo-lhe opinião,
Vivo muito satisfeito.

IV

Se eu soubesse que encontrava
Uma séria rapariguinha,
Mesmo pobre e honradinha,
Com isso me contentava.
Se vou calhar com uma diaba
Que tenha a poltrona inteira,
Seja porca ou caloteira,
Que ninguém lhe dê capotes;
É uma das melhores sortes
Se nunca encontrar quem me queira.

Quem não tem amor sou eu,
Da rapaziada solteira;
Vivo muito satisfeito
Se nunca encontrar quem me queira.

Letra: Popular
Música: José Manuel David
Intérprete: Pedro Mestre (in CD “Campaniça do Despique”, Viola Campaniça Produções Culturais/Pedro Mestre, 2015)
Outra versão de Pedro Mestre (in DVD “No CCB: Pedro Mestre & Convidados”, Pedro Mestre, 2017)

Se abana a casa

[ O Dito por Não Dito ]

Se abana a casa,
o pardal acorda,
sacode a asa
e não volta.

Se o mar devolve
gente, em vez de peixe,
há quem feche a porta
e não deixe.

Que o tempo engana
e a chuva molha,
mas é gente humana
que para ti olha.

Que eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Se abana a casa,
o pardal acorda,
sacode a asa
e não volta.

Se o mar devolve
gente, em vez de peixe,
há quem feche a porta
e não deixe.

Que o tempo engana
e a chuva molha,
mas é gente humana
que para ti olha.

Que eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Custa muito ver o mundo
estar tão perto da vista,
essa turva luz ao fundo
nem parece água lisa.

E esta Europa unida,
tresmalhadita,
lembra cabra
tosquiadita.

E se o mundo
não é perfeito,
à portuguesa
dá-se-lhe um jeito.

Se abana a casa,
o pardal acorda,
sacode a asa
e não volta.

Se o mar devolve
gente, em vez de peixe,
há quem feche a porta
e não deixe.

Que o tempo engana
e a chuva molha,
mas é gente humana
que para ti olha.

Que eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Se abana a casa,
o pardal acorda,
sacode a asa
e não volta.

Se o mar devolve
gente, em vez de peixe,
há quem feche a porta
e não deixe.

Que o tempo engana
e a chuva molha,
mas é gente humana
que para ti olha.

Que eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Que o tempo engana
e a chuva molha,
mas é gente humana
que para ti olha.

Que eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Que eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Eu não era assim,
foi o stress,
vida ruim
que tudo esquece.

Letra e música: José Barros
Arranjo: José Barros
Intérprete: José Barros e Navegante
Versão original: José Barros e Navegante (in CD “À’Baladiça”, Tradisom, 2018)

Se o som vier

[ N’um Dôci Abraçu (eterno vacilar) ]

Se o som vier
De dentro da alma
Então será
Tão vivo que acalma

O céu e o mar
O Sol e a Lua
Insinuação
Paixão nua e crua

Um balanceio capaz de me levar
À ida
Uma lembrança que me faz regressar
A esta vida
N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz
O tempo vem e volta a partir

Entre o ir e vir eu estou, eu venho e vou
Com vontade de voltar
Ai esta ventura assim, de ir e vir
Neste eterno vacilar
Entre o ir e vir eu estou, eu venho e vou
Com vontade de voltar
Ai esta ventura assim, de ir e vir
E num verso me inventar

Já m’ bá, já m’ bem, já m’ bá e torná bem
Lai a, lai a, lai a

Nasci na praia
E aí me criei, ‘nha terra
E foi nas ondas
Que eu me embalei

Foi o meu pai
Um fogo que ardia
E a ‘nha mãe
Fazia o que queria

A morna é mistura de calor
E frio
Um velho fado que ainda tem sabor
A desvario
N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz
O tempo vem e volta a partir

N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz
La la, lai a, lai a
N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz
La la, lai a, lai a
N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz
La la, lai a, lai a
N’um dôci abraçu di’ amor i di’ paz
La la, lai a, lai a

Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão)
Música: Rui Filipe Reis
Intérprete: Rosa Negra com Rita Lobo (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)

Sentir a dolência das águas

[ Calçada Esquecida ]

Sentir a dolência das águas,
Saber o caminho da foz
E o sol que se deita nas mágoas
De um cais que se lembra de nós.

Subir a calçada esquecida,
Guardar um olhar indiferente,
Ouvir a conversa da vida,
Falar desta vida da gente.

Sorrir,
Pois sabe sempre bem lembrar;
Não vale a pena esquecer,
Mesmo que doa recordar;
São lembranças
Que aconchegam as ternuras:
Ternuras da calçada esquecida
Que dão um sorriso ao passar.

Mas sorrir,
Pois sabe sempre bem lembrar;
Eu que nem vou tentar esquecer,
Mesmo que doa recordar;
São lembranças
Que aconchegam as ternuras:
Ternuras que a calçada esquecida
Me ajuda a lembrar.

Mas sorrir,
Pois sabe sempre bem lembrar;
Eu que nem vou tentar esquecer,
Mesmo que doa recordar;
São lembranças
Que aconchegam as ternuras:
Ternuras que a calçada esquecida
Me ajuda a lembrar.

Letra: Sebastião Antunes
Música: Carlos Lopes (Fado Bisnaga)
Intérprete: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)

Sou formiga

[ Assim Sou Eu ]

Sou formiga, sou cigarra
Sou cantiga, pinto a manta, faço a farra
Sou a lebre e a tartaruga
Sou de raça, estou em brasa, vou à luta
Sou bichinho bem manhoso
Poderoso e preguiçoso
Com franqueza e arredia
Sou tristeza e alegria
Sou chorona, está na palma
Rezingona, perco a calma
Sou destino ensarilhado
Diz a linha do meu fado

Sei que assim sou eu
Sei lá eu porque sou assim
Está-se mesmo a ver
Sempre assim vou ser
Está dentro de mim
Eu ser assim

Sou areia, sou granito
Fico cheia, sou “o bom e o bonito”
Sou canseira, sou de gancho
Parideira, só de filhos faço um rancho
D’ir à luta tenho ganas
Contra gregas e troianas
Lusitana, luzidia
Sou beleza e ousadia
Sou mandona, está na alma
Rezingona, perco a calma
Tudo muito complicado
Diz a letra do meu fado

Sei que assim sou eu
Sei lá eu porque sou assim
Está-se mesmo a ver
Sempre assim vou ser
Está dentro de mim
Eu ser assim

Sei que assim sou eu
Sei lá eu porque sou assim
Está-se mesmo a ver
Sempre assim vou ser
Está dentro de mim
Eu ser assim

Ser assim
Ser assim
Ser assim
Ser assim

Letra: António Avelar de Pinho
Música: João Gil
Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)

Tinha uma história que nunca contava

[ Quando a Noite Já Ia Serena ]

Tinha uma história que nunca contava
Trazia um quarto fechado no olhar
E uma viagem que planeava mas não começava
Para nunca acabar
Tinha um sorriso guardado em segredo
Mas não sorria p’ra não o contar
Tinha uma chave que fechava o medo
Nalgum arvoredo onde não queria entrar
E quando a noite já ia serena
Disse-me a frase mais terna que ouvi:
“Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”

Tinha uma nuvem da cor do mistério
Tinha palavras da cor do saber
Tinha vontades de brincar a sério
Mudar de hemisfério para não se perder
Tinha a lembrança da cor do poente
Tinha um poente inteiro no falar
Guardava o sol num esconderijo ardente
Tão quente, tão quente, já quase a queimar

E quando a noite já ia serena
Disse-me a frase mais terna que ouvi:
“Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”

Trazia a paz de uma dor que se apaga
E um calor que se quer apagar
Como quem grita do alto da fraga
Que a vida nos traga distância p’ra andar
Deixou correr o licor dos sentidos
Até que o dia nos veio acordar
De mãos trocadas, de braços caídos
Achados perdidos

Veio a manhã, levezinha e serena
Cantar-me a frase mais terna que ouvi:
“Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”
Veio a manhã, levezinha e serena
Cantar-me a frase mais terna que ouvi:
“Valeu a pena, mesmo que o fim da história seja aqui.”

Letra e música: Sebastião Antunes
Arranjo: Sebastião Antunes
Intérprete: Sebastião Antunes com Tito Paris (in CD “Com Um Abraço”, Vachier & Associados, 2012; CD “Singular”, Sebastião Antunes & Quadrilha/Alain Vachier Music Editions, 2017)

Toma lá colchetes d’oiro

[ Prima da Chula ]

Toma lá colchetes d’oiro
Aperta o teu coletinho
Coração que é de nós dois
Tem de andar conchegadinho

Por um olhar dos teus olhos
Dera da vida a metade
Por um riso dera a vida
Por um beijo a eternidade

Aqui estou à tua porta
Como um feixinho de lenha
À espera da resposta
Que dos teus olhos me venha

O dia tem duas horas
Duas horas não tem mais
Uma é quando vos vejo
Outra quando me lembrais

Se tudo me foi vedado
Se vivi de tudo à míngua
Deixai que vos mostre a língua
Com o freio bem cortado

A rica tem nome fino
A pobre tem nome grosso
A rica teve um menino
A pobre pariu um moço

Letra: Popular e António Aleixo
Música: Trovante
Intérprete: Trovante (in “Baile no Bosque”, 1981; reed. EMI-VC, 1988)

Vai de Roda

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda que é tão breve;
Tenho uns amigos na roda,
Tenho uns amigos na roda,
Deixam a roda mais leve.

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda alguns amores;
Quantos mais amores na roda,
Quantos mais amores na roda
Mais te perseguem as dores.

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda até ao fim;
Já tentei fugir da roda,
Já tentei fugir da roda
Mas ela rodou por mim.

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda sem parar;
Quem nunca esteve na roda,
Quem nunca esteve na roda
Não pode a roda enganar.

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda até ao fim;
Já tentei fugir da roda,
Já tentei fugir da roda
Mas ela rodou por mim.

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda sem parar;
Quem nunca esteve na roda,
Quem nunca esteve na roda
Não pode a roda enganar.

Vai de roda, vai de roda,
Vai de roda sem parar;
Quem nunca esteve na roda,
Quem nunca esteve na roda
Não pode a roda enganar.

Letra e música: Duarte (Outubro de 2010)
Intérprete: Duarte com Mara (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Versão original: Duarte (in CD “Sem Dor Nem Piedade”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2015)

Vai Tão Sozinho

Vai, menino, vai!
Cuida do teu fulgor!
Cuida de ti, amor!

Vai, segue o rumo das estrelas
Que, caindo, se centelham
Em faúlhas de mil cores!

Vai, menino, vai,
Brilho que o mundo tem!
Cuida de ti, meu bem!

És como sol a dar na eira!
Branca flor, és cerejeira
que eu rego ao cantar!

(Ao meu benzinho faz chegar
Formoso melro este cantar)

Vai tão sozinho…
Vai devagarinho sem saber…

Vai, menino, vai,
Brilho que o mundo tem!
Cuida de ti, meu bem!

És como sol a dar na eira!
Branca flor, és cerejeira
que eu rego ao cantar!

(Ao meu benzinho faz chegar
Formoso melro este cantar)

(Ao meu benzinho faz chegar
Formoso melro este cantar)

Vai tão sozinho…
Vai devagarinho sem saber…

Letra e música: Manuel Maio
Intérprete: A Presença das Formigas (in CD “Pé de Vento”, A Presença das Formigas/Careto/XMusic, 2014)

A Presença das Formigas, Pé de Vento

A Presença das Formigas, Pé de Vento

Vejam Bem

Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar

Quem lá vem
dorme à noite ao relento n’areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar

E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder

Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer

Vejam bem
daquele homem a fraca figura
desbravando os caminhos do pão
desbravando os caminhos do pão

E se houver
uma praça de gente madura
ninguém vem levantá-lo do chão
ninguém vem levantá-lo do chão

Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem
quando um homem se põe a pensar

Quem lá vem
dorme à noite ao relento n’areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar

Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar

Quem lá vem
dorme à noite ao relento n’areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar

E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder

Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer

Letra e música: José Afonso
Intérprete: José Afonso (in LP “Cantares do Andarilho”, Orfeu, 1968, 1970, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art’Orfeu Media, 2012)

Vinha com a minha toada

[ Com a Minha Toada ]

Vinha com a minha toada
entretida na viola
Mas quando penso o que penso
com a vertigem duma história
fico apenas com a minha toada
fico apenas com a minha toada

Janela aberta e o pastor dormia
O tempo inerte sob o sol sumia
e beijo a moça num lençol de rio
e beijo a moça num lençol de rio

Andam cavalos pintados
no campo, numa lagoa
O sonho pertence à tel
e alguém desenha que voa
Fico apenas com a minha toada
Fico apenas com a minha toada

Janela aberta e o pastor dormia
O tempo inerte sob o sol sumia
e beijo a moça num lençol de rio
e beijo a moça num lençol de rio

A moldura sem retrato recua pr’além
Protesto, mundo errado
que este mundo tem

A moldura sem retrato recua pr’além
Protesto, mundo errado
que este mundo tem

Letra e música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso (in CD “Missangas”, Mercury/Polygram, 1997, reed. Universal Music, 2017)

João Afonso

João Afonso

Partilhe
Share on facebook
Facebook
fadista Lucília do Carmo

Ai de mim que me perdi

Ai de mim que me perdi
Pelos caminhos do tédio
Perdi-me, cheguei aqui
Agora não tem remédio

Ai de mim que me perdi
Perdi-me no fim da estrada
Ai de mim porque vivi
A vida desencontrada

Tantos caminhos andados
Não fui eu que os descobri
Foram meus passos mal dados
Que me trouxeram aqui

Perdida me acho da vida
E a vida já me perdeu
Ando na vida perdida
Sem saber quem a viveu

Por mais que queira encontrar
A razão do meu viver
A razão de cá andar
Não posso compreender

Que culpa tem o destino
Dos caminhos que eu andei?
Fui eu no meu desatino
Que andei e não reparei

Perdida estou sem remédio
Meu pecado e meu castigo
Pecado é morrer de tédio
Castigo é viver contigo

Por mais que queira encontrar
A razão do meu viver
A razão de cá andar
Não posso compreender

Não posso compreender
A razão de cá andar
A razão do meu viver
Não posso compreender

Poema: Amália Rodrigues (ligeiramente adaptado)
Música: Amélia Muge
Arranjo: José Mário Branco
Intérprete: Amélia Muge (in CD “Amélia com Versos de Amália”, Amélia Muge/Leve Music, 2014)

Alguém que Deus já lá tem

[ Fado Malhoa ]

Alguém que Deus já lá tem
Pintor consagrado
Que foi bem grande e nos dói
Já ser do passado
Pintou numa tela
Com arte e com vida
A trova mais bela
Da terra mais querida

Subiu a um quarto que viu à luz do petróleo
E fez o mais português dos quadros a óleo
Um Zé de samarra co’amante a seu lado
Com os dedos agarra
Percorre a guitarra e ali vê-se o fado

Faz rir a ideia de ouvir com os olhos, senhores
Fará, mas não p’ra quem já o viu, mas em cores
Há vozes de Alfama naquela pintura
E a banza derrama canções de amargura

Dali vos digo que ouvi a voz que se esmera
O som dum faia banal, cantando a Severa
Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa
Boémia e fadista
Aquilo é da artista, aquilo é Malhoa

Letra: José Galhardo
Música: Frederico Valério

Ando na vida à procura

[ Triste Sorte ]

Ando na vida à procura
Duma noite menos escura
Que traga luar do céu,
Duma noite menos fria
Em que não sinta agonia
Dum dia a mais que morreu.

Vou cantando amargurado,
Vou dum fado a outro fado
Que fale dum fado meu:
Meu destino assim cantado
Jamais pode ser mudado
Porque do fado sou eu.

Ser fadista é triste sorte
Que nos faz pensar na morte
E em tudo que em nós morreu,
E andar na vida à procura
Duma noite menos escura
Que traga luar do céu.

Letra: João Ferreira-Rosa
Música: Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado Cravo)
Intérprete: Camané
Versão discográfica anterior de Camané (in CD/DVD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)

Outras versões: Camané (in 2CD “Como Sempre… Como Dantes”: CD 1 – “Como Sempre: Ao Vivo em Palco”, EMI-VC, 2003); Camané (in 2CD “Como Sempre… Como Dantes”: CD 2 – “Como Dantes: Ao Vivo no Embuçado”, EMI-VC, 2003); Camané (in DVD “Ao Vivo no S. Luiz”, EMI, 2006); Camané (in CD/DVD “Ao Vivo no Coliseu: Sempre de Mim”, EMI, 2009; 2CD “Camané: O Melhor 1995-2013 (Edição Especial)”: CD 1, EMI, 2013)

Versão original: João Ferreira-Rosa (in EP “Embuçado”, Columbia/VC, 1965; CD “Embuçado” (compilação), EMI-VC, 1988, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007; 2CD “Ontem e Hoje”: CD 1, EMI-VC, 1996; CD “O Melhor de João Ferreira-Rosa”, Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008; CD “João Ferreira-Rosa: Essencial”, Edições Valentim de Carvalho/CNM, 2014)

Outras versões: João Ferreira-Rosa (in LP “Fado”, Imavox, 1978); João Ferreira-Rosa (in CD “No Wonder Bar do Casino Estoril”, Ovação, 2004)

Bendita esta forma de vida

[ Bendito Fado, Bendita Gente ]

Intérprete: Mafalda Arnauth

Chegaste a horas

[ Leva-me aos fados ]

Intérprete: Ana Moura

Convém que seja moderno

[ Que Fado É Esse, Afinal? ]

Convém que seja moderno,
Ritmado sem critério
E fácil de consumir;
Que não deixe de imitar
As modas que estão a dar,
Que não ouse resistir.

Convém que não seja triste,
Que se venda, que se lixe
O valor do seu passado;
Que se sirva ao desbarato
Como um hambúrguer no prato,
Produto pré-fabricado.

Convém que seja feliz,
Não importa o que se diz
Se agradar a toda a gente;
Que a nada diga respeito,
Seja a música um efeito
E a palavra indiferente.

Convém que seja educado,
Que se cante em qualquer lado,
Popular, comercial.
Mas quando o oiço cantar,
Só me resta perguntar:
Que Fado é esse, afinal?

Mas quando o oiço cantar,
Só me resta perguntar:
Que Fado é esse, afinal?

Letra: Duarte
Música: José Mário Branco (Fado Gripe)
Intérprete: Duarte (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)

Deixa Que te Cante um Fado

Deixa que te cante um fado,
Ao menos de vez em quando!
Deixa que te cante um fado
Como quem reza chorando!

Deixa que te cante um fado
Que me fale sempre em ti!
Cantarei de olhos cerrados,
Os olhos com que te vi.

Deixa que te cante um fado,
Mesmo sem fé ou sem arte!
Se nunca pude esquecer-te
É que não posso deixar-te.

Deixa que te cante um fado!
Todo o meu sonho está nisto:
Que depois de o ter cantado
Te lembres que ainda existo.

Poema: Pedro Homem de Mello
Música: José Marques do Amaral (Fado José Marques do Amaral)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Fados (Fado das Faias)”, RCA Victor, 1963; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978)

Descalço, venho dos confins da infância

[ Entrega ]

Descalço, venho dos confins da infância
Que a minha infância ainda não morreu.
Atrás de mim em face ainda há distância,
Menino Deus, Jesus da minha infância,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!

Venho da estranha noite dos poetas,
Noite em que o mundo nunca me entendeu.
Vê, trago as mãos vazias dos poetas,
Menino Deus, amigo dos poetas,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!

Feriu-me um dardo, ensanguentei as ruas
Onde o demónio em vão me apareceu.
Porque as estrelas todas eram suas,
Menino irmão dos que erram pelas ruas,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!

Quem te ignorar ignora bem os que são tristes
Ó meu irmão Jesus, triste como eu.
Ó meu irmão, menino de olhos tristes,
Nada mais tenho além dos olhos tristes
Mas o que tenho, e nada tenho, é teu!

Poema: Pedro Homem de Mello
Música: Carlos Gonçalves
Intérprete: Ricardo Ribeiro
Primeira versão discográfica de Ricardo Ribeiro (in CD “Largo da Memória”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2013)
Versão original: Amália Rodrigues (in LP/CD “Obsessão”, EMI-VC, 1990, reed. Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008)

Desdenharam-me, bem sei

[ Fado Lenitivo ]

Desdenharam-me, bem sei,
Quando um dia comecei
A cantar sofrida o fado;
Não sabiam o motivo:
É que o fado é lenitivo
D’um coração torturado.

Ao ver de todo perdidas,
As minhas esperanças mais queridas,
Senti, fui talvez pisada;
E era doce companhia
Para a minha melancolia
O chorar d’uma guitarra.

Amarguras e cansaços,
A minha dor em pedaços
Eu vou esquecendo a cantar;
E nos queixumes do fado,
Já nem sei se é um trinado
Se a minh’alma a soluçar.

Sei que me ouves lamentando,
As mágoas que vou cantando
Só tu podes entender;
Vou meu fado dedicar-te:
Uma dor que se reparte
Não custa tanto a sofrer.

Letra: Fernanda Santos
Música: Helena Moreira Vieira
Intérprete: Tânia Oleiro (in CD “Terços de Fado”, Museu do Fado Discos, 2016)
Versão original: Maria do Rosário Bettencourt (in EP “Lenitivo”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1966; CD “Maria do Rosário Bettencourt”, col. Fados do Fado, vol. 41, Movieplay, 1998)

Desta luta constante

[ O fado que me traga ]

Desta luta constante
O futuro é meu alento
Numa roda gigante
Tão gigante que pára o tempo

Uma volta sem regresso
Até uma terra esquecida
E na minha sorte tropeço
Sozinha na madrugada perdida

O fado que me traga
O que o tempo me levou
A saudade que me abra
O caminho do que sou
O fado que me traga
O que a saudade não deixou
O sentido das palavras
Que o tempo apagou

Uma lágrima no mar
Perdida na voz do silêncio
Aprisiona a ternura
E adormece o meu encanto

Quando me sinto nua
Não me quero ver mais ao espelho
O destino não me quer tua
Porque o amor morreu no desejo

O fado que me traga
O que o tempo me levou
A saudade que me abra
O caminho do que sou
O fado que me traga
O que a saudade não deixou
O sentido das palavras
Que o tempo apagou

Letra: Samuel Lopes
Música: Miguel Rebelo
Intérprete: Ana Laíns (in CD “Sentidos”, Difference, 2006)

Deus pede

Conta e Tempo

Deus pede [hoje] estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta;
Mas como dar, sem tempo, tanta conta,
Eu que gastei, sem conta, tanto tempo?

Para dar a minha conta feita a tempo
O tempo me foi dado, e não fiz conta;
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje quero acertar conta e não há tempo.

Oh! vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis o vosso tempo em passa-tempo!
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta
Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, o não ter tempo!

Poema: Frei António das Chagas (António da Fonseca Soares, 1631-1682)
Música: José Júlio Paiva (Fado Complementar)
Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)

Dizem que o fado é saudade

[ O Sentir do Cantador ]

Dizem que o fado é saudade,
Miséria, sofrer e dor…
Mas o fado é, na verdade,
O sentir do cantador.

Em cada palavra sua,
Em cada verso cantado,
O cantador insinua
A tristeza do seu fado.

Não canta por simpatia,
Não canta para viver:
É que cantando alivia
Um pouco do seu sofrer.

Tornando tão magoado
O timbre da sua voz,
Que o fado fica gravado
Na alma de todos nós.

Letra: Maria Manuel Cid
Música: Francisco José Marques (Fado Évora)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “Passeio à Mouraria”, RCA Victor, 1964; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978)

Então, até amanhã, meu dia triste

[ Último Poema ]

Então, até amanhã, meu dia triste,
Na taverna da noite do meu fado,
Onde canto o amor que não existe,
Neste meu amanhã abandonado.

Grito dentro de mim a noite e o dia,
Nesta hora do sonho mais profundo,
Que regressa na voz da despedida
Com que te vejo por estar no mundo.

Nas palavras amadas que perdi,
O ontem que tu foste já me foge.
“Então, até amanhã!”, disseste, e eu vi
Que o amanhã não chega ao ontem de hoje.

“Então, até amanhã!”, disseste, e eu vi
Que o amanhã não chega ao ontem de hoje.

Letra: Vasco de Lima Couto
Música: Manuel Mendes
Intérprete: Ricardo Ribeiro
Primeira versão discográfica de Ricardo Ribeiro (in CD “Hoje É Assim, Amanhã Não Sei”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2016)
Versão original: Beatriz da Conceição [ao vivo no Restaurante Típico Nónó, Lisboa

Era o amor

[ Verdes Anos ]

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…

Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos…

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…

Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos…

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

Poema: Pedro Tamen (excerto)
Música: Carlos Paredes (introdução de “Despertar”, in EP “Guitarradas Sob o Tema do Filme Verdes Anos”, Alvorada, 1964; CD “Carlos Paredes e Artur Paredes”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 36, Movieplay, 1994; CD “Os Verdes Anos de Carlos Paredes: As Primeiras Gravações a Solo 1962-1963”, Movieplay, 2003; Livro/4CD “O Mundo Segundo Carlos Paredes: Integral 1958-1993”: CD1 – “Despertar”, EMI-VC, 2003)
Intérprete: Mariana Abrunheiro (in Livro/CD “Cantar Paredes”, Mariana Abrunheiro/BOCA – Palavras Que Alimentam, 2015)
Versão original (canção): Teresa Paula Brito (in filme “Os Verdes Anos”, de Paulo Rocha, 1963)
Outra versão de Teresa Paula Brito (in EP “Canções Para Fim de Noite”, Riso e Ritmo, 1968; CD “Teresa Paula Brito”, col. Clássicos da Renascença, vol. 61, Movieplay, 2000)

És Povo feito Mulher

[ Ai, Amália! ]

És Povo feito Mulher;
A cantar és toda a gente
que sabe aquilo que quer
e diz aquilo que sente.

As tuas caras são tantas:
mais de mil que Deus te deu…
Com mil corações tu cantas
e há mais mil dentro do teu.

Ai, Amália das mil caras
e mais de mil corações!
Ai, rio que nunca páras
até à foz das canções!…

Nos ecos da tuz voz,
nos silêncios que a torturam
sofrem pedaços do nós,
pedaços que se procuram.

Levantas a tua voz,
o Fado nasce ao teu jeito!
E sentimos todos nós
que te cabemos no peito…

Ai, Amália das mil caras
e mais de mil corações!
Ai, rio que nunca paras
até à foz das canções!…

Ai, Amália das mil caras
e mais de mil corações!
Ai, rio que nunca paras
até à foz das canções!…

Letra: Luísa Bivar
Música: João Braga
Intérprete: João Braga (in LP “Do João Braga para a Amália”, Diapasão/Lamiré, 1984; CD “João Braga”, col. Fado Alma Lusitana, vol. 19, Levoir/Correio da Manhã, 2012)

Esta ilha que há em mim

[ A Ilha do Meu Fado ]

Esta ilha que há em mim
E que em ilha me transforma
Perdida num mar sem fim
Perdida dentro de mim
Tem da minha ilha a forma

Esta lava incandescente
Derramada no meu peito
Faz de mim um ser diferente
Tenho do mar a semente
Da saudade tenho o jeito

Trago no corpo a mornaça
Das brumas e nevoeiros
Há uma nuvem que ameaça
Desfazer-se em aguaceiros
Nestes meus olhos de garça

Neste beco sem saída
Onde o meu coração mora
Oiço sons da despedida
Vejo sinais de partida
Mas teimo em não ir embora

Letra: João Mendonça
Letra: José Medeiros
Intérprete: Dulce Pontes (in CDs “Caminhos”, Movieplay, 1996; “O Coração Tem Três Portas”, Ondeia Música, 2006)

Eu quero cantar palavras

[ Fado Não-Valentim ]

Eu quero cantar palavras
De letras por inventar,

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

Implacáveis como espadas,
Tão profundas como o mar.

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

As palavras por dizer
Por dentro das que são ditas,

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

Impossíveis a crescer
Por fora das mais bonitas.

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

Ditas todas devagar
No silêncio mais sonante,

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

Como um conto de encantar,
Como a vaga mais distante.

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

E quando para as cantar
Elas se façam escrever,

Quero outro fado, ó-laró-laró!

Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

As letras serão meus lábios,
A tinta o meu sangue a arder.

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

Dizer palavras de mel
Até a voz ficar rouca.

Quero outro fado, ó-laró-laró!
Quero outro fado, ó-laró, meu bem!

Gastar toda a minha pele
Nos beijos da tua boca.

Quero outro fado, ó-laró-laró…,
Nos beijos da tua boca.

Letra: João Gigante-Ferreira
Música: Popular
Intérprete: Helena Sarmento
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)

Eu sei que esperas por mim

[ Mais um Fado no Fado ]

Eu sei que esperas por mim,
Como sempre, como dantes,
Nos braços da madrugada;
Eu sei que em nós não há fim,
Somos eternos amantes
Que não amaram mais nada.

Eu sei que me querem bem,
Eu sei que há outros amores
Para bordar no meu peito;
Mas eu não vejo ninguém
Porque não quero mais dores
Nem mais bâton no meu leito.

Nem beijos que não são teus
Nem perfumes duvidosos,
Nem carícias perturbantes;
E nem infernos, nem céus,
Nem sol nos dias chuvosos,
Porque ‘inda somos amantes.

Mas Deus quer mais sofrimento,
Quer mais rugas no meu rosto
E o meu corpo mais quebrado; [bis]
Mais requintado tormento,
Mais velhice, mais desgosto
E mais um fado no fado.

Letra: Júlio de Sousa
Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição)
Intérprete: Camané
Outras versões: Camané (in CD “Pelo Dia Dentro”, EMI-VC, 2001; 2CD “Camané: O Melhor 1995-2013 (Edição Especial)”: CD 2, EMI, 2013); Camané (in 2CD “Como Sempre… Como Dantes”: CD 1 – “Como Sempre: Ao Vivo em Palco”, EMI-VC, 2003); Camané (in DVD “Ao Vivo no S. Luiz”, EMI, 2006) [ao vivo com Fábia Rebordão, 2008 / Gala 12 do programa “Operação Triunfo”; Camané (in CD/DVD “Ao Vivo no Coliseu: Sempre de Mim”, EMI, 2009). Versão original [?]: Rui David (com música de Alfredo Marceneiro – Fado Cravo) (in EP “Meu Amor, Minha Saudade”, FF/RR Discos, ?)

Eu sei que sou demais

Eu sei que sou demais na tua vida,
Eu sei que nem me vês tão apagado,
Apenas uma sombra indefinida,
O resto de voz triste condenada.
Eu sei que sou demais na tua vida,
De tudo quanto fui não sou mais nada.

Ai quem me dera prender o teu futuro
E uni-lo ao meu, assim tal maneira,
Como hera verde se prende ao velho muro
E ali fica p’la vida inteira!

Eu sei que estou a mais no teu caminho,
Eu sei que nada tens p’ra me dar,
E sei que nesta luta estou vencido
Por outro amor que tens no meu lugar.
Mas sei, amor, que eu, da tua vida,
Ninguém jamais, ninguém pode apagar.

Ai quem me dera prender o teu futuro
E uni-lo ao meu, assim tal maneira,
Como hera verde se prende ao velho muro
E ali fica p’la vida inteira!

Ai quem me dera prender o teu futuro
E uni-lo ao meu, assim tal maneira,
Como hera verde se prende ao velho muro
E ali fica p’la vida inteira!

Letra e música: Joaquim Tavares Pimentel
Intérprete: Ricardo Ribeiro
Primeira versão discográfica de Ricardo Ribeiro (in CD “Hoje É Assim, Amanhã Não Sei”, Ricardo Ribeiro/Parlophone/Warner Music, 2016)
Versão original: Alice Maria (in EP “Primeiro Amor”, Estúdio/Mundusom, 1972?)

Eu uso um xaile bordado

[ Num Gesto Que se Adivinha ]

Eu uso um xaile bordado
Porque os p’rigos que há no fado
São bem maiores que os da vida;
O xaile é como uma pele
E quando me embrulho nele
Sinto-me mais protegida.

Parece umas mãos de mãe:
Sabem guiar-nos tão bem
E sossegam tantos medos
Que sempre que elas me tocam
As franjas do xaile evocam
A ternura dos seus dedos.

Num gesto que se adivinha
O xaile é uma andorinha
Num céu que eu mesma criei;
Mas assim que o braço pára
O xaile que antes voara
Parece o manto de um rei.

E quando o corpo desiste
Numa palavra mais triste,
Num grito mais demorado,
O xaile velho e sem franjas
São asas de anjos ou anjas
Que me aconchegam ao Fado.

O xaile velho e sem franjas
São asas de anjos ou anjas
Que me aconchegam ao Fado.

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Armando Machado (Fado Maria Rita)
Intérprete: Katia Guerreiro* (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)

Existe um fado

[ Não Existe Fado Antigo ]

Existe um fado, um só fado
Que assenta na tradição;
E p’ra ser bem cantado
Só faz falta um coração.

Não é por pôr uma tuba,
Acrescentar a bateria
Que uma geração derruba
O que antes se fazia.

Não quero a eternidade
Nem os momentos de glória:
Quero deixar na saudade
Um pouco da minha história.

Não existe fado novo
Como não há fado antigo:
Ele é o grito que um povo
Carrega sempre consigo.

Não existe fado novo
Como não há fado antigo:
Ele é o grito que um povo
Carrega sempre consigo.

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: João do Carmo Noronha (Fado Pechincha)
Intérprete: Celeste Rodrigues (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)

Foi assim

[ Lume ]

Foi assim: era costume…
Tu vinhas pedir-me lume
Ao balcão daquele bar
E eu disse que não, primeiro;
Depois, comprei um isqueiro
E até voltei a fumar.

As noites que nós passámos!
Quantos cigarros fumámos!
Tanto lume que eu te dei!
Um dia acordei com frio:
Estava o cinzeiro vazio
E nunca mais te encontrei.

Mas ontem, naquele bar
De repente vi-te entrar,
Foste direita ao balcão:
Como era teu costume
Vieste pedir-me lume
Mas eu disse-te que não.

Se quando te foste embora
Deitei o isqueiro fora,
Que lume te posso eu dar?
Pede a outro que te ajude!
P’ra bem da minha saúde
Eu já deixei de fumar.

Sem dormir, de madrugada
Ouvi teus passos na escada,
Vi da janela o teu carro;
Debaixo do travesseiro
Encontraste o meu isqueiro
E acendeste-me o cigarro.

Letra: Manuela de Freitas
Música: Armando Machado (Fado Santa Luzia)
Intérprete: Camané (in CD “Infinito Presente”, Warner Music, 2015)

Já toda a gente sabe

[ Aos Sete Ventos ]

Já toda a gente sabe a novidade:
o Fado, que nasceu na Mouraria,
é Património da Humanidade
e quebra mais fronteiras dia a dia.

Há quem tenha aprendido português
p’ra entender de um modo mais profundo
os fados que a ‘Amália Rodriguez’
cantava aos sete ventos pelo mundo.

‘Thank you’, ‘gracias’, ‘merci’ ou ‘arigato’
são formas de o fadista agradecer:
quando ao chegar o fim de cada acto
vê lágrimas nos rostos a escorrer.

Em Espanha, no Brasil ou no Japão
o Fado é cada vez mais bem cantado;
e porque ali se escuta um coração
é Portugal que diz: “muito obrigado!”

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Armando Machado (Fado Aracélia ou Fado Cunha e Silva)
Intérprete: Cristina Branco (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)

Lavava no rio lavava

Lavava no rio lavava
Gelava-me o frio gelava
Quando ia ao rio lavar
Passava fome passava
Chorava também chorava
Ao ver minha mãe chorar

Cantava também cantava
Sonhava também sonhava
E na minha fantasia
Tais coisas fantasiava
Que esquecia que chorava
Que esquecia que sofria

Já não vou ao rio lavar
Mas continuo a chorar
Já não sonho o que sonhava
Se já não lavo no rio
Por que me gela este frio
Mais do que então me gelava

Ai minha mãe, minha mãe
Que saudades desse bem
Do mal que então conhecia
Dessa fome que eu passava
Do frio que me gelava
E da minha fantasia

Já não temos fome, mãe
Mas já não temos também
O desejo de a não ter
Já não sabemos sonhar
Já andamos a enganar
O desejo de morrer

Letra: Amália Rodrigues
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: Amália Rodrigues (in “Gostava de Ser Quem Era”, Columbia/VC, 1980, reed. EMI-VC, 1995; CD “O Melhor de Amália”, vol. III, EMI-VC, 2003)

Luas de prata gentia

[ Se ao menos houvesse um dia ]

Luas de prata gentia
Nas asas de uma gazela
E depois, do seu cansaço,
Procurasse o teu regaço

No vão da tua janela
Se ao menos houvesse um dia
Versos de flor tão macia
Nos ramos com as cerejas
E depois, do seu Outono,
Se dessem ao abandono
Nos lábios, quando me beijas
Se ao menos o mar trouxesse
O que dizer e me esquece
Nas crinas da tempestade
As palavras litorais
As razões iniciais
Tudo o que não tem idade
Se ao menos o teu olhar
Desse por mim ao passar

Como um barco sem amarra
Deste fado onde me deito
Subia até ao teu peito
Nas veias de uma guitarra

Letra: João Monge
Música: Casimiro Ramos (Fado Três Bairros)

Intérprete: Camané (in CD “Esta Coisa da Alma”, EMI-VC, 2000)

Na ribeira deste rio

Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio
Nada me impede, me impele
Me dá calor ou dá frio

Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa sequência arrastada
Do que ficou para trás

Vou vendo e vou meditando
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali
E do seu curso me fio
Porque se o vi ou não vi
Ele passa e eu confio

Letra: Dori Caymmi, sobre poema de Fernando Pessoa
Música: Dori Caymmi ?
Intérprete: Paulo Bragança (in CD “Os Mistérios do Fado”, Polydor, 1996)

Na tua voz

[ Amália ]

Na tua voz há tudo o que não há,
há tudo o que se diz e não se diz;
Há os sítios da saudade em tua voz,
o passado, o futuro, o nunca, o já;
Há as sílabas da alma e há um país.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

Na tua voz embarca-se e não mais,
não mais senão o mar e a despedida.
Há um rasto de naufrágio em tua voz,
onde há navios a sair do cais,
nessa voz por mil vozes repartida.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

Há mar e mágoa, e a sombra de uma nau,
a gaivota de O’Neill e o rio Tejo,
saudade de saudade em tua voz,
um eco de Camões e o escravo Jau,
amor, ciúme, cinza e vão desejo.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

Amor, ciúme, cinza e vão desejo.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

Poema: Manuel Alegre
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: João Braga (in CD “Fado Fado”, Ariola/BMG Portugal, 1997; CD “Fados Capitais”, Impreopa/A Capital, 2002)

Não Sou Fadista de Raça

Não sou fadista de raça,
Não nasci no Capelão;
Eu canto o fado que passa
Nas asas da tradição!

Nunca usei negra chinela
Nem vesti saia de lista;
Nunca entrei numa viela
Mas tenho raça fadista!

Tirei suspiros ao vento,
Olhei um pouco o passado;
Busquei do mar um lamento
E fiz assim o meu fado.

É este fado famoso
Que, em noites enluaradas,
O Conde de Vimioso
Tangia nas guitarradas.

Era fidalgo de raça
E ficou na tradição
Cantando o fado que passa
Na Rua do Capelão.

Letra: Maria Teresa Cavazinni
Música: Alfredo Duarte “Marceneiro” (Fado Bailarico)
Intérprete: Tereza Tarouca (in EP “O Riso Que me Deste”, RCA Victor, 1967; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

Nesta terra soberana e fadista

[ No Sítio do Coração ]

Nesta terra soberana e fadista
Concebido fruto da contradição
Eu nasci independente e meio artista
Navegante e poeta de ocasião
Eu nasci independente, mar à vista
Marinheiro e idealista de ocasião

Há quem diga que o futuro já está escrito
E por isso não adianta o que eu fizer
Outros dizem que isso não é mais que um mito
Inventado por um príncipe qualquer

Canta!
Ouve a guitarra que trina
Acompanhando o lamento
De tantas penas em vão!
Sente
O sentimento da gente
Que já só tem desalento
No sítio do coração!

Da janela do meu quarto vê-se o rio
Branqueando as suas águas na maré
Desaguando as suas mágoas num vazio
Para quem foi tudo pouco nada é
E ao olhar o seu reflexo tão vazio
Alguém viu que ele finge que não vê

Canta!
Ouve a guitarra que trina
Acompanhando o lamento
De tantas penas em vão!
Sente
O sentimento da gente
Que já só tem desalento
No sítio do coração!

Eu nasci independente e meio artista
Navegante e poeta de ocasião

Canta!
Ouve a guitarra que trina
Acompanhando o lamento
De tantas penas em vão!
Sente
O sentimento da gente
Que já chegou o momento
De ouvirmos outra canção!

Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão)
Música: Rui Filipe Reis
Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)

Nunca tive moeda de troca

[ Moeda de Troca ]

Nunca tive moeda de troca
Para o que recebi da saudade
Mas é só pelo que ela me toca
Que tudo o que canto, é verdade
É essa a moeda de troca
Cantar o meu fado, para o dar à saudade.

Mas às vezes o fado acontece
Sem que a gente entenda,
O que fez
E o fadista cansado agradece
E chora baixinho, outra vez

Quero unir a minha às vossas almas
Sem perder a saudade de vista
Não me importa que me batam palmas
Ou gritem à grande “Ahhh fadista!!”
Quero ouvir o silêncio das almas
Assim que o mistério do fado as conquista.

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Manuel Graça Pereira
Intérprete: Catarina Rocha

O Fado é triste

[ Fado do Contra ]

Perguntaste-me outro dia

[ Tudo Isto É Fado ]

Perguntaste-me outro dia
Se eu sabia o que era o fado;
Eu disse que não sabia,
Tu ficaste admirado.

Sem saber o que dizia,
Eu menti naquela hora
E disse que não sabia,
Mas vou-te dizer agora.

Se queres ser o meu senhor
E teres-me sempre a teu lado,
Não me fales só de amor:
Fala-me também de fado.

A canção que é meu castigo
Só nasceu p’ra me prender:
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer.

Almas vencidas,
Noites perdidas,
Sombras bizarras;
Na Mouraria
Canta um rufia,
Choram guitarras.

Amor, ciúme,
Cinzas e lume,
Dor e pecado:
Tudo isto existe,
Tudo isto é triste,
Tudo isto é fado.

Se queres ser o meu senhor
E teres-me sempre a teu lado,
Não me fales só de amor:
Fala-me também de fado.

A canção que é meu castigo
Só nasceu p’ra me prender:
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer.

Almas vencidas,
Noites perdidas,
Sombras bizarras;
Na Mouraria
Canta um rufia,
Choram guitarras.

Amor, ciúme,
Cinzas e lume,
Dor e pecado:
Tudo isto existe,
Tudo isto é triste,
Tudo isto é fado.

Letra: Aníbal Nazaré
Música: Fernando Carvalho
Intérprete: Rua da Lua
Primeira versão de Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Versão original: Amália Rodrigues (grav. 1952) (in CD “Abbey Road 1952”, EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)

Quando o fado era menino

[ Quando o Fado For Grande ]

Quando o Fado era menino
Dizia: “quando eu for grande
Hei-de inventar um destino
Que meu coração comande.”

E percebeu que os poetas
Eram quem, como as crianças,
Abriam portas secretas
Sem chaves nem alianças.

Ao entrar no universo
Do poeta popular,
Ele vai escrevendo um verso
Que já nasce milenar.

E por saber que os adultos
Podem voltar à infância,
Não quer que os poetas cultos
Se mantenham à distância.

Rouba um poema a Pessoa,
Ao Ary pede uma glosa
E uns versos sobre Lisboa
Ao mestre Linhares Barbosa.

Se voltasse a ser menino
Diria: “quando eu crescer
Hei-de inventar um destino
Num poema por escrever.”

Letra: Tiago Torres da Silva
Música: Alberto Simões da Costa (Fado Torres do Mondego)
Intérprete: Ricardo Ribeiro (in CD “Brincar aos Fados”, Farol Música, 2014)

Se o fado é esta sina

[ É o Mar Que nos Ensina ]

Se o fado é esta sina
que nos lava a alma,
é o mar quem nos ensina
quando nos devolve a calma.

Não aceitar pantomina,
o que a sorte nos destina.
Sem saber o que queremos,
temos o que merecemos.

A vida assim
não é um canto à dor.
O fado é sina
mas também amor.

Diziam que era um povo
que não se governava,
mas forte o coração
não se deixava governar.

Somos terra de lavrar
e sabemos o mar de cor,
mas esta gente a cantar
é bem capaz do melhor.

A vida assim
não é um canto à dor.
O fado é sina
mas também amor.

E lá bem no fim do mundo,
não se entendendo as palavras,
sente-se a saudade eterna
no trinado das guitarras.

Porque a razão não se entende
nem se vê o fim ao mar,
mas na voz ainda há quem pense
ver o fado a marear.

A vida assim
não é um canto à dor.
O fado é sina
mas também amor.

A vida assim
não é um canto à dor.
O fado é sina
mas também amor.

Letra e música: José Barros
Arranjo: José Barros e Mimmo Epifani
Intérprete: José Barros e Navegante
Versão original: José Barros e Navegante (in CD “À’Baladiça”, Tradisom, 2018)

Sou do Fado

[ Loucura ]

Intérprete: Ana Moura

Sou cavaleiro errante

[ Fado Mutante ]

Sou cavaleiro errante
Deserto, imensidão
E vou errando sempre buscando o Oriente
Secreto no meu coração

Sou cavaleiro ausente
Tão-só recordação
E vou atrás do vento que vem de Levante
E cheira a jasmim e açafrão

Um dia vou contar a minha história
Talvez assim me prestes atenção
Porque o que eu sou é parte da memória
Que a gente tem guardada num caixão

Ai este fado mutante
De lua emigrante
De tempo liberto
Ai esta sina minguante
Às vezes tão longe
As vezes tão perto

Tão longe, tão longe, tão perto…

Sou cavaleiro andante
Herói de uma ficção
E levo sempre a luz de uma estrela cadente
Na palma da minha mão…

Um dia vou contar a minha história
Talvez assim me prestes atenção
Porque o que eu sou é parte da memória
Que a gente tem guardada num caixão

Ai este fado mutante
De lua emigrante
De tempo liberto
Ai esta sina minguante
Às vezes tão longe
Às vezes tão perto

Tão longe, tão longe, tão perto…
Tão longe, tão longe, tão perto…
Tão longe, às vezes tão perto…
Tão longe, tão longe, tão perto…
Tão longe, tão longe, tão perto…
Tão longe, tão longe, tão perto…

Às vezes longe
Às vezes perto
Às vezes longe
Às vezes perto
Às vezes longe
Às vezes perto
Às vezes longe
Às vezes perto

Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão)
Música: Rui Filipe Reis
Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)

Sou do fado

[ É Loucura ]

Sou do fado como sei,
Vivo um poema cantado
Dum fado que eu inventei.
A falar não posso dar-me,
Mas ponho a alma a cantar,
E as almas sabem escutar-me.

Chorai, chorai, poetas do meu país
Troncos da mesma raiz
Da vida que nos juntou!
E se vocês não estivessem a meu lado,
Então… não havia fado
Nem fadistas como eu sou.

Esta voz, tão dolorida,
É culpa de todos vós,
Poetas da minha vida.
“É loucura!”, oiço dizer,
Mas bendita esta loucura
De cantar e de sofrer.

Chorai, chorai, poetas do meu país,
Troncos da mesma raiz
Da vida que nos juntou!
E se vocês não estivessem a meu lado,
Então… não havia fado
Nem fadistas como eu sou.

E se vocês não estivessem a meu lado,
Então… não havia fado
Nem fadistas como eu sou.

Letra: Júlio de Sousa
Música: Júlio de Sousa (Fado Loucura)
Intérprete: Marta Pereira da Costa
Versão original: Lucília do Carmo (in LP “Recordações”, Decca/VC, 1971, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008; 2LP/CD “O Melhor de Lucília do Carmo”, EMI-VC, 1990; CD “O Melhor de Lucília do Carmo”, Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008)

fadista Lucília do Carmo
fadista Lucília do Carmo

Sou filho de um deus menor

[ Adeus, Até um Outro Dia ]

Sou filho de um deus menor
E de um corrido maior
Mas seja lá o que for
Já nasci com esta dor

Cresci no fio da navalha
Sei a cartilha de cor
Num coração de canalha
Mora um pobre pinga-amor

Ai mas que triste a triste vida em que vive um desgraçado
Sempre a cavalo entre a desgraça e o fado malogrado

Muito boa noite, minhas senhoras, meus senhores!
Desculpem lá o meu atraso, cheguei tarde mas cheguei
E já que vim o melhor é eu cantar
E só não canto melhor porque eu não sei

A minha sorte na vida
Já adivinho qual é:
Ser uma rosa enjeitada
De que ninguém quer saber

Em tudo eu sou infeliz
Mesmo até no meu cantar
Põe-se a tremer a guitarra
Antes de me acompanhar

Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela companhia
No peito levo uma saudade, adeus, até um outro dia

Muito obrigado madames e cavalheiros
Mostrem lá os mealheiros para eu me motivar
E já que pedem vou-vos fazer a vontade
Que eu só canto pelo gosto de cantar

Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela companhia
No peito levo uma saudade, adeus, até um outro dia
Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela… em tão bela companhia
No peito levo… levo uma saudade, adeus, adeus, até um outro dia

Vou-vos deixar depois de estar, ai, em tão bela companhia
No peito levo uma saudade, adeus, até um outro dia

Muito obrigado madames e cavalheiros
Mostrem lá os mealheiros para eu me motivar
E já que pedem vou-vos fazer a vontade
Que eu só canto pelo gosto de cantar

Muito obrigado madames e cavalheiros
Os aplausos servem sempre para eu me consolar
E já que pedem vou-vos fazer a vontade
Que eu só canto pelo gosto de cantar

Letra: J.J. Galvão (José João Oliveira Galvão)
Música: Rui Filipe Reis
Intérprete: Rosa Negra (in CD “Fado Mutante”, iPlay, 2011)

Temos pena, hoje não dá

[ Fado Abananado ]

Temos pena, hoje não dá
estou fechada para balanço
Temos pena, hoje não dá
estou fechada para balanço
querem fado, pois não há
se não gostam como eu danço
querem fado, pois não há
se não gostam como eu danço”

Desculpe lá, turista
Bater o nariz na porta
A nossa fadista
Está numa de ir embora
Diz ela que não canta
Se não for para dançar
Falar, pouco adianta
Pois responde a cantar:

Refrão

Desculpe lá, turista
Também sinto aquilo que sente
A ingrata fadista
Acha que hoje isto é diferente
“fruta cristalizada”
Diz que é “só no bolo rei!”
Já nos mandou à fava
E canta por aí, que eu sei:

Refrão

Desculpe lá, turista
Já tomámos providência
É a sétima fadista
Com esta exigência
Querem abanar o fado
E nós dizemos que não
Mas o fado, abananado,
Já só pega de abanão

Refrão

Pedro da Silva Martins
Música: Manuel Graça Pereira
Intérprete: Catarina Rocha

Toda a saudade é fingida

[ Covers ]

Toda a saudade é fingida,
A tristeza disfarçada:
Parecem já não ter vida,
De fado não têm nada.

Já não são fados, são ‘covers’:
Imitações desalmadas,
Reproduções do destino
Tantas vezes tão cantadas.

Esses que tentam viver
Aquilo que outros viveram
Acabam por se perder
No tanto que não fizeram.

Vampiragem pós-moderna
Da Lisboa dos turistas:
Falam da velha taberna
Mas querem ser futuristas.

Letra: Duarte
Música: João do Carmo Noronha (Fado Pechincha)
Intérprete: Duarte (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)

Verdes ondas branca flor

[ Fado Azul (Se Azul se Atreve) ]

Verdes ondas branca flor
Cor-do-vento espuma breve
Verdes ondas branco-em-flor
Cor-do-vento espuma breve
Qualquer cor a do Amor
Beijo-azul p’ra quem se atreve
Qualquer cor a do Amor
Beijo-azul p’ra quem se entregue

Como barco rumo ao sul
No meu corpo a maresia
Como barco rumo ao sul
No meu corpo a maresia
À procura desse azul
Que o teu corpo prometia
Na procura desse azul
Naveguei-te até ser dia

Tão constante foste vaga
Tão ardente a maré-viva
Tão constante foste vaga
Tão ardente a maré-viva
Tua proa que naufraga
Nosso rasto de saliva
Tua proa que em mim naufraga
Nossas bocas à deriva

Este jeito de ser livre
Na prisão da tua boca
Este jeito de ser livre
Na prisão da tua boca
Sabe a tudo onde não estive
Lucidez que me põe louca
Sabe a tudo onde não estive
Lucidez é coisa pouca

Somos chuva tão precisa
Somos ventos do Magrebe
Somos ecos da Galiza
Somos tudo o que se perde
Somos língua que desliza
Como tudo o que se escreve
Somos beijo desta brisa
Beijo-azul se azul se atreve.

Letra: João Gigante-Ferreira
Música: Francisco Viana (Fado Vianinha)
Intérprete: Helena Sarmento
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)

Voar

[ Fado em Branco ]

Voar
Sem culpa do mar
Que nunca se deita
Sentir
A chuva a cair
De vida insuspeita

Sofrer
A dor de morrer
Na dor imperfeita
Sorrir
Por dentro mentir
Verdade perfeita

Assim é a vida
De dor dividida
Cerrada no peito
Um barco à deriva
Verdade fingida
Doença sem leito

Eu bem que não queria
Saber algum dia
Que sempre serei
O vento do norte
Sem vida nem morte
Sem crime nem lei

Amar
De amor sufocar
A boca na boca

Florir
Ficar e partir
De tanto ser pouca

Vender
De graça o prazer
Sentir como louca

Chorar
Sem culpa do mar
Do beijo e da boca

Assim é a vida
De amor dividida
Cerrada no peito
Um barco à deriva
Mentira fingida
Doença sem leito

Eu bem que não queria
Saber algum dia
Que sempre serei
O vento do norte
Sem vida nem morte
Sem crime nem lei

Eu bem que não queria
Saber algum dia
Que sempre serei
O vento do norte
Sem vida nem morte
Sem crime nem lei

O verso da sorte
Sem que isso me importe
Saber que cheguei

Letra: João Gigante-Ferreira
Música: Samuel Cabral e João Gigante-Ferreira
Intérprete: Helena Sarmento
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)

Partilhe
Share on facebook
Facebook
Florbela Espanca

Dá-se aos que têm sede

[ Louvor da Poesia ]

Poema de Sebastião da Gama (in “Campo Aberto”, Lisboa: Portugália, 1951; Lisboa: Edições Ática, Colecção Poesia, 4.ª edição, 1983 – p. 45)
Recitado por José Nobre (in CD “Sebastião da Gama: Meu Caminho É por Mim Fora”, JGC, 2010)
Música: Rui Serôdio

Dá-se aos que têm sede,
não exige pureza.
Ah!, se fôssemos puros,
p’ra melhor merecê-la…

Sabe a terra, a montanhas,
caules tenros, raízes,
e no entanto desce
da floresta dos mitos.

Água tão generosa
como a que a gente bebe,
fuja dela Narciso
e quem não tenha sede.

Na viagem

[ Viagem do Verso ]

Letra: José Flávio Martins
Música: Cristina Bacelar
Intérprete: Frei Fado d’El Rei (in CD “Em Concerto”, Açor/Emiliano Toste, 2003)

Na viagem
De cada palavra,
Cada verso
Muda o tempo do saber!

No destino
Da estrofe nascente,
Cada frase,
É um rio solitário!

No regresso
Do verbo “chegar”,
Porque chego e me despeço,
À noite, ao luar!…

Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!
Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!

Em ti… mora, o meu beijo!
Porque… chora, meu poema!…

No destino
Da estrofe nascente,
Cada frase,
É um rio solitário!

No regresso
Do verbo “chegar”,
Porque chego e me despeço,
À noite, ao luar!…

Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!
Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!

Se ao menos houvesse um dia

Letra: João Monge
Música: Casimiro Ramos (Fado Três Bairros)
Intérprete: Camané (in CD “Esta Coisa da Alma”, EMI-VC, 2000)

Se ao menos houvesse um dia
Luas de prata gentia
Nas asas de uma gazela
E depois, do seu cansaço,
Procurasse o teu regaço
No vão da tua janela

Se ao menos houvesse um dia
Versos de flor tão macia
Nos ramos com as cerejas
E depois, do seu Outono,
Se dessem ao abandono
Nos lábios, quando me beijas

Se ao menos o mar trouxesse
O que dizer e me esquece
Nas crinas da tempestade
As palavras litorais
As razões iniciais
Tudo o que não tem idade

Se ao menos o teu olhar
Desse por mim ao passar
Como um barco sem amarra
Deste fado onde me deito
Subia até ao teu peito
Nas veias de uma guitarra

Senhores jurados sou um poeta

[ A Defesa do Poeta ]

Poema de Natália Correia (in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1993)
Recitado por Afonso Dias
Também recitado pela autora (in EP “Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria”, VC, 1969; CD “A Defesa do Poeta”, EMI-VC, 2003)

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Ser poeta

[ Existir (O Homem e o Universo) ]

Poema: Fernando Pessoa/Alberto Caeiro (compilação de versos extraídos d’ “O Guardador de Rebanhos” e de “Poemas Inconjuntos”, in “Poemas de Alberto Caeiro”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Lisboa: Edições Ática, 1946, 10.ª edição, 1993 – p. 22, 25, 50, 48, 83, 99, 57, 62, 68-69)

Adaptação: Samuel Lopes
Música: Samuel Lopes
Intérprete: Citânia com Luís Filipe Sarmento

Versão original: Citânia com Luís Filipe Sarmento (in Livro/CD “Segredos do Mar”, Seven Muses, 2011)

Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
Assim é e assim seja.
Basta existir para se ser completo.
Basta existir para se ser completo.
Quero as coisas que existem,
Não o tempo que as mede.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.
Bendito seja o mesmo Sol de outras terras,
Que faz meus irmãos todos os homens.
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu.
Basta existir para se ser completo.
Basta existir para se ser completo.
Procuro dizer o que sinto,
Sem pensar em que o sinto.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Ser poeta é ser mais alto

[ Perdidamente ]

Poema: Florbela Espanca
Música: João Gil
Intérprete: Trovante (in CD “Terra Firme”, EMI-VC, 1987)

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Partilhe
Share on facebook
Facebook
José Eduardo Agualusa poeta

Acredito em pouca coisa

[ instrumental ]

Acredito em pouca coisa
que venha escrita em loiça,
dessa de pôr na parede.

Acredito mais no desempenho
da laranja que apanho,
que como e me mata a sede.

Acredito nas façanhas,
muito menos nas patranhas
de quem faz só porque sim.

Acredito nas crianças,
no meu ventre são esperanças
de um futuro sem fim.

Acredito na loucura
de quem pede mais ternura
e vira costas à guerra.

Acredito na fé dos outros
que às vezes abrem poços
só para encontrar mais terra.

Acredito no Caetano,
no Zambujo que é meu mano,
em todas as vozes calmas.

Acredito na poesia
e também na aletria,
em todos adoçantes de almas.

Acredito na minha mãe,
ela que sofreu bem
para que eu fosse como sou.

Crente nos frutos e flores,
nos mais impossíveis amores,
onde o Sol mais brilhar eu estou.

Eu estou
Eu estou
Eu estou
Eu estou
Eu estou

Letra: Celina da Piedade
Música: Alex Gaspar
Intérprete: Celina da Piedade (in CD “Sol”, Sons Vadios, 2016)

Eu ia não sei p’ra onde

[ Que Bonito Que Seria ]

Cantiga primeira:

Eu ia não sei p’ra onde,
Encontrei não sei quem era:
Encontrei o mês de Abril
Procurando a Primavera.

Moda:

Que bonito que seria
Se houvesse compreensão:
Os homens não se matavam
E davam-se como irmãos.

É tão linda a Liberdade,
Até que chegou um dia;
Se houvesse compreensão,
Então que bonito que seria.

Cantiga segunda:

Não há bem que sempre dure
Nem mal que não acabe;
Mas há quem lute
Pelo fim desta nossa Liberdade.

Moda:

Que bonito que seria
Se houvesse compreensão:
Os homens não se matavam
E davam-se como irmãos.

É tão linda a Liberdade,
Até que chegou um dia;
Se houvesse compreensão,
Então que bonito que seria.

Letra e música: Popular (Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral “Os Ganhões de Castro Verde” (in CD “O Círculo Que Leva a Lua”, Associação de Cante Alentejano “Os Ganhões”, 2003; Livro/2CD “Terra: Antologia 1972-2006”: CD 2, Associação de Cante Alentejano “Os Ganhões”, 2006)
Primeira versão do Grupo Coral “Os Ganhões de Castro Verde” (in LP “Os Ganhões de Castro Verde”, Metro-Som, 1980, reed. Metro-Som, 1997)

É o amor

[ Juntos somos mais fortes ]

Intérprete: Amor Electro

Nunca sofri de raça

[ Sangue Bom ]

Nunca sofri de raça
Minha pele é muito boa
Tenho sangue mouro de Goa
E sangue louro de Mombaça

Saiba o senhor
Minha raça é meio-errante
Num dia sou quase zulu
No outro dia, xavante
Mulato, preto-fulo

Saiba o senhor
Saiba o senhor

Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça é superstição de gente mal arraçada

Saiba o senhor: eu não creio em raça, não, raça danada
Raça é superstição de gente mal arraçada
Eu não creio em raça, não

Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não

Eu sou o avesso da raça
Minha alma é muito à toa
Gosto d’amêijoas com jimboa
A toda a mistura acho graça

Saiba o senhor
Saiba o senhor

Minha raça é um jardim
Num dia sou quase azul
No outro, cor de marfim
Sou Bissau e sou Cochim

Saiba o senhor
Saiba o senhor

Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça é superstição de gente mal arraçada

Saiba o senhor: eu não creio em raça, não, raça danada
Raça é superstição de gente mal arraçada
Eu não creio em raça, não

Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Raça danada, eu não creio em raça, não
Eu não creio em raça, não

(Raça dum cabrão!)
Poema: José Eduardo Agualusa (Para o Caetano Veloso que quis um dia saber a minha raça)
Música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso com António Afonso

São dois braços

[ Canção dos abraços ]

São dois braços, são dois braços
Servem p’ra dar um abraço
Assim como quatro braços
Servem p’ra dar dois abraços

E assim por ai fora
Até que quando for a hora
Vão ser tantos os abraços
Que não vão chegar os braços

Vão ser tantos os abraços
Que não vão chegar os braços
P’ra os abraços

Intérpete: Sérgio Godinho

Sérgio Godinho

Sérgio Godinho

Da peça de Sérgio Godinho Eu, tu, ele, nós, vós, eles

Partilhe
Share on facebook
Facebook
Cantigas de pão e vinho

BEBE A TERRA NEGRA

[ Fragmentos ]

1. Bebe a terra negra
e à terra as árvores
as águas aos ventos
o sol às águas
e ao sol a lua
E as estrelas claras
Porque é que só eu
não hei-de beber?

2. Traz a água e o vinho e coroas
de flores que agora com Eros
me debato…

3. De novo amo e já amo
Deliro e não deliro
Estou louco e não estou louco

Poema: Anacreonte (Grécia, séc. VI a.C.) (in O Vinho e as Rosas: Antologia de Poemas Sobre a Embriaguez , org. Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 1995)
Recitado por Carlos Mota de Oliveira
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)

DEVE-SE ESTAR SEMPRE EMBRIAGADO

[Embriagai-vos ]

Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais
importa. Para que o horrível fardo do tempo
não vos pese sobre os ombros e vos faça pender
para a terra, deveis embriagar-vos sem cessar.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude,
à vossa escolha. Mas embriagai-vos!
E se um dia, nos degraus de um palácio, na erva
verde de uma valeta, na solidão baça do vosso
quarto, acordades, já sóbrios, perguntai ao vento,
à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que
foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo
o que canta, a tudo o que fala, perguntai: “Que
horas são?”. E o vento, a onda, a estrela, a ave,
o relógio, responder-vos-ão: “São horas de vos
embriagardes!”. Para que não sejais os escravos
martirizados do tempo, embriagai-vos sem cessar.
De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha.

Poema em prosa: Charles Baudelaire (in O Vinho e as Rosas: Antologia de Poemas Sobre a Embriaguez, org. Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 1995)
Recitado por Carlos Mota de Oliveira
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)

DONDE VEM RODRIGO

[ Cantigas às Serranas ]

Donde vem Rodrigo,
Donde vem Gonçalo,
De sachar o milho,
De mondar o prado.

Seja diligente
Quem amor semeia,
Que quem não granjeia
Não colhe a semente.
Semeou Rodrigo,
Semeou Gonçalo,
Haverão do milho
Se mondam o prado.
Quem de amor se esquece
No tempo de verde,
Não colhe o que perde
Entre erva que cresce,
Por isso Rodrigo,
Por isso Gonçalo,
Vão sachar o milho,
Vão mondar o prado.
Amor que aproveita,
Se antes de gradar
Cresce em seu lugar
Ciúme e suspeita,
Triste de Rodrigo,
Triste de Gonçalo,
Mal por seu cuidado,
Se não sacha o milho,
Se não monda o prado.
Amor que ficou
Em terra deserta
Colhe quem acerta,
Não quem semeou.
Semeou Rodrigo,
Semeou Gonçalo,
Para haverem o milho
Cumpre haver cuidado.
Em terra mimosa
Ninguém faça escolha,
Vai-se o grão na folha,
De muito viçosa.
Gonçalo e Rodrigo,
Cumpre ser lembrado,
De sachar o milho,
De mondar o prado.

Letra: Baltazar Estaço
Música: Custódio Castelo
Intérprete: Cristina Branco (in CD “Sensus”, Universal, 2003)

HOJE O ESPAÇO É ESPLÊNDIDO

[ O Vinho dos Amantes ]

Hoje o espaço é esplêndido
Sem freio, sem esporas, sem rédea,
Partamos evolados do vinho
Para um céu mágico e divino!

Como dois anjos que calentura
implacável tortura
No azul cristal da manhã
Sigamos a miragem distante!

Mansamente balouçados sobre a asa
Do turbilhão inteligente,
Num delírio paralelo,

Minha irmã, voando olhos nos olhos,
Fugiremos sem descanso nem tréguas
Para o paraíso dos meus sonhos

Poema: Charles Baudelaire (versão livre de Janita Salomé)
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)

QUEM QUISER QUE CANTE

[ Quadras ]

Quem quiser que cante bem
Dê-me uma pinga de vinho
O vinho é coisa boa
Faz o cantar mais fininho

Venha vinho, beberemos
Molharemos a garganta
Eu sou como o rouxinol
Quanto mais bebe mais canta

O vinho é coisa santa
Que nasce da cepa torta
A uns faz perder o tino
A outros errar a porta

O meu amor já vem torto
Já se perdeu no caminho
Já não se lembra de mim

Quadras populares (recolhidas por Manuel Rocha, da Brigada Victor Jara), excepto a penúltima, da autoria de António Aleixo, e a última, de Francisco Hélder Pimenta (Ti Chico Chinês), do Redondo.
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)

VÁ DE BOCA EM BOCA

[ No Banquete ]

Vá de boca em boca
Uma taça dourada
Somos pó e nada,
Estamos a passar
Como o vinho passa
Na taça
Da vida
P’ra logo em seguida
No chão se entornar.

Vá de boca em boca
Uma taça bem cheia.
A luz da candeia
Fez de nós iguais.
Só gente e tristeza
Na mesa
Da vida
Até que a bebida
Nos torne imortais.

Vá de boca em boca
Uma taça de prata.
Se o prazer nos mata,
Deixá-lo matar.
É a melhor morte
Que em sorte
Nos calha
Cair na batalha
No chão do lagar.

Vá de boca em boca
Uma taça de cobre.
E se houver que sobre
Siga outra rodada
Bebamos, que foge
Já hoje
Outro dia
E no fim da orgia
Somos pó e nada.

Poema (inédito): Hélia Correia
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé (in CD “Vinho dos Amantes”, Som Livre, 2007)

Partilhe
Share on facebook
Facebook
Mulher
Ando na rua da noite

[ Mulher-Mágoa ]

Ando na rua da noite,
Bebo vinho de saudade;
Cada esquina é um açoite
Fustigando a claridade.

Vou de noite pela noite,
De uma vida sem idade:
Não há corpo onde me acoite,
Não há casas na cidade.

Vou de noite pelo ventre
De ruas mal-assombradas,
Levo uma alma doente
Nas minhas mãos desfasadas.

Vou de noite pela noite,
De uma vida sem idade:
Não há corpo onde me acoite,
Não há casas na cidade.

No rio vejo um navio
Rumando rumo à infância…
Tenho frio, tenho frio,
Morro do mal da distância.

Corro as ruas da cidade
Sempre à procura de mim,
Mas ela não tem piedade
E nunca mais chego ao fim.

Ando na rua da vida,
Bebo sumo de tristeza;
Deitando contas à vida
Somo apenas a pobreza.

Ando na rua da vida,
Bebo sumo de tristeza;
Quem andar assim perdida
Não se encontra, com certeza.

Na cama só vejo lama,
Na rua só piso água;
Quem me fala? Quem me chama
O nome de Mulher-Mágoa?

Corro as ruas da cidade
Sempre à procura de mim,
Mas ela não tem piedade
E nunca mais chego ao fim.

Letra: José Carlos Ary dos Santos
Música: Nuno Nazareth Fernandes
Intérprete: Elisa Lisboa (in EP “Mulher-Mágoa”, Columbia/EMI, 1969, reed. digital Edições Valentim de Carvalho, 2021)
Elisa Lisboa – voz
Arranjo e direcção de orquestra – Jorge Machado

Elisa Lisboa, EP Mulher-Mágoa, Columbia/EMI, 1969

Elisa Lisboa, EP Mulher-Mágoa, Columbia/EMI, 1969

As canseiras desta vida

[ Canseiras ]

As canseiras desta vida
Tanta mãe envelhecida
A escovar
A escovar
A jaqueta carcomida
Fica um farrapo a brilhar

Cozinheira que se esmera
Faz a sopa de miséria
A contar
A contar
Os tostões da minha féria
E a panela a protestar

Dás as voltas ao suor
Fim do mês é dia 30
E a sexta é depois da quinta
Sempre de mal a pior

E cada um se lamenta
Que isto assim não pode ser
Que esta vida não se aguenta
– o que é que se há-de fazer?

Corta a carne, corta o peixe
Não há pão que o preço deixe
A poupar
A poupar
A notinha que se queixa
Tão difícil de ganhar

Anda a mãe do passarinho
A acartar o pão pró ninho
A cansar
A cansar
Com a lama do caminho
Só se sabe lamentar

É mentira, é verdade
Vai o tempo, vem a idade
A esticar
A esticar
A ilusão de liberdade
Pra morrer sem acordar

É na morte ou é na vida
Que está a chave escondida
Do portão
Do portão
Deste beco sem saída
-qual será a solução?

Autor: Bertolt Brecht/José Mário Branco
Intérprete: José Mário Branco

Já estou louca de estar só

[ Fala da Mulher Sozinha ]

Já estou louca de estar só,
Acompanhada de nada;
Já estou cheia de ser rua
Tão corrida, tão pisada;
Já estou prenhe de amizades,
Tão barriga de saudades…

Ai eu ainda um dia irei rasgar a solidão
E nela entrelaçar o olhar duma canção:
Chegar ao cume, ao cimo, ao alto,
Mais longe e mais além,
Mas a saber que sou alguém!

Na cidade sou loucura,
Sou begónia, sou ciúme…
E eu que sonhava ser lume,
Caminho, atalho e lonjura,
Não tenho assento na festa,
Sou a migalha que resta…

Ai eu ainda um dia irei rasgar a solidão
E nela entrelaçar o olhar duma canção:
Chegar ao cume, ao cimo, ao alto,
Mais longe e mais além,
Mas a saber que sou alguém!

Chegar ao cume, ao cimo, ao alto,
Mais longe e mais além,
Mas a saber que sou alguém!

Letra: Eduardo Olímpio
Música: Paco Bandeira
Intérprete: Margarida Bessa (in CD “Fado”, Movieplay, 1995)

Lá vem a Marianita

[ História da Marianita ]

Lá vem a Marianita, foi posta com as malas à porta
O amo mandou-a embora mas ela não chora, cá pouco se importa
Andava fisgado nela, foi ter-lhe ao quarto à tardinha
“Mariana, por mais que tu faças, tu de hoje não passas, és minha!”
“Não me dás cabo da vida que essa não ta dou por nada!
Mil vezes me dei perdida, mas outras mil eu dei-me achada.”

Desdenha, vem prenha
Pragueja, deseja e ralha mas quando trabalha não estranha

Que tens tu, ó Mariana, que não sossegas um dia?
Não foi proveito nem fama: já chora já mama, cá tudo se cria
Vai por serras e veredas a ver onde é que há jornada
Que importa que o povo diga se a vida castiga por tudo e por nada
O amo quere-a de volta mas ela não verga a haste
Hei-de criá-lo sozinha, a cria é só minha, tu tarde piaste

Desdenha, vem prenha
Pragueja, deseja e ralha mas quando trabalha não estranha

Desdenha, vem prenha
Pragueja, deseja e ralha mas quando trabalha não estranha

A noite é que guarda a Lia
O poente é que a embala
P’ra a vida não ser bravia
Tem de a gente amansá-la
A mão que nos guarda a vida
É a mão que nos dá a manha
Só leva a vida vencida
Quem aprova e não estranha

Letra e música: Sebastião Antunes
Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019)
Versão original: Quadrilha com Segue-me à Capela (in CD “A Cor da Vontade”, Vachier & Associados, 2003)

Sebastião Antunes & Quadrilha
Sebastião Antunes & Quadrilha
Luísa sobe

[ Calçada de Carriche ]

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa…

Poema: António Gedeão (excerto)
Música: José Niza
Arranjo: José Calvário
Intérprete: Carlos Mendes (in LP “Fala do Homem Nascido”, Orfeu, 1972, reed. Movieplay, 1998)

CALÇADA DE CARRICHE

António Gedeão, in “Teatro do Mundo”, Coimbra: Edição do autor, 1958; “Poesias Completas”, Portugália Editora, 1964, 5.ª edição, 1975 – p. 115-120; “Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor”, Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997 – p. 34-37).

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão/Rómulo de Carvalho
António Gedeão/Rómulo de Carvalho
Maria Joana, do que és tu feita?

[ Mulher Feiticeira ]

Maria Joana, do que és tu feita?
És entre os poetas mulher perfeita
São quantos os homens contigo enrolada
Na mente, no peito, na cama deitada?

São quantas as cores entre os teus amores que ficam mais vivas?
São quantos alentos que mudas ao centro por dentro da vida
Como uma miragem, contigo em viagem, teus apaixonados
Que ficam para sempre contigo na mente e em parte alterados?

O que tu tens, o que tu tens, Maria?
O que tu tens e do que é feito o teu ser?
O que tu tens, porque tens tu magia?
O que tu tens, o que tu tens que eu quero ter?

Maria Joana, descomplicada
Fragrância em delírio bem perfumada
Faz seus prisioneiros relaxando a vida
Dá o seu corpo inteiro com peso e medida

Acende-se a chama, ficas inspirado levando o teu ser
À serotonina que sobe tão fina subindo o prazer
De corpo suado, mostrando outro lado num lado qualquer
Fez sua magia, fez feitiçaria, Maria mulher

O que tu tens, o que tu tens, Maria?
O que tu tens e do que é feito o teu ser?
O que tu tens, porque tens tu magia?
O que tu tens, o que tu tens que eu quero ter?

No ser delicada, na vida focada e tão original
Que já não vê fronteiras, contorna barreiras, faz o desigual
Assume na vida nova perspectiva e sabe o que não quer
Faz feitiçaria com sua magia, Maria mulher

O que tu tens, o que tu tens, Maria?
O que tu tens e do que é feito o teu ser?
O que tu tens, porque tens tu magia?
O que tu tens, o que tu tens que eu quero ter?

Letra e música: Luís Pucarinho
Intérprete: Luís Pucarinho (in CD “SaiArodada”, Luís Pucarinho/Alain Vachier Music Editions, 2018)

Menina de olhar sereno

[ Menina do Alto da Serra ]

Menina de olhar sereno
raiando pela manhã
de seio duro e pequeno
num coletinho de lã.

Menina cheirando a feno
casado com hortelã.

Menina que no caminho
vais pisando formosura
levas nos olhos um ninho
todo em penas de ternura.
Menina de andar de linho
com um ribeiro à cintura.

Menina de andar de linho
com um ribeiro à cintura.

Menina da saia aos folhos
quem te vê fica lavado
água da sede dos olhos
pão que não foi amassado.

Menina de riso aos molhos
minha seiva de pinheiro
menina da saia aos folhos
alfazema sem canteiro.

Menina de corpo inteiro
com tranças de madrugada
que se levanta primeiro
do que a terra alvoraçada.

Menina de corpo inteiro
com tranças de madrugada
que se levanta primeiro
do que a terra alvoraçada.

Menina da saia aos folhos
quem te vê fica lavado
água da sede dos olhos
pão que não foi amassado.

Menina de fato novo
Ave-Maria da terra
rosa brava rosa povo
brisa do alto da serra.

Rosa brava rosa povo
brisa do alto da serra.

Letra: José Carlos Ary dos Santos
Música: Nuno Nazareth Fernandes
Intérprete: Kátia Guerreiro e Ney Matogrosso (in CD “Tudo ou Nada”, Som Livre, 2005)
Versão original: Tonicha – “Menina” (1971)

Minha mulher

[ Minha Metade ]

Minha mulher
Singelo encanto
Minha alma-irmã
És meu farol
Raio de sol
Luz da manhã

Minha empatia
Sabedoria
Sem ter idade
Minha poesia
Minha alegria
Minha metade

Meu lindo bem-querer
Rosa do meu jardim
Não canso de dizer
O que és p’ra mim:

Minha água clara
Pedra tão rara
Meu talismã
Rima e compasso
Meu terno amasso
Minha maçã

Minha pepita
Coisa bonita
Cheirosa flor
Minha certeza
Minha riqueza
Meu doce amor

Meu lindo bem-querer
Rosa do meu jardim
Não canso de dizer
O que és p’ra mim:

Minha água clara
Pedra tão rara
Meu talismã
Rima e compasso
Meu terno amasso
Minha maçã

Minha pepita
Coisa bonita
Cheirosa flor
Minha certeza
Minha riqueza
Meu doce amor

Letra e música: Aníbal Raposo (2011-01-31)
Intérprete: Aníbal Raposo (in CD “Rocha da Relva”, Aníbal Raposo/Global Point Music, 2013)

Mulher chegada ao sonho adolescente

[ Mulher-Amor ]

Mulher chegada ao sonho adolescente
botão de esperança num sorriso alegre
mulher inteira, coração contente
que guarda com ternura
a última boneca
para quem o amor é a coisa mais pura

Mulher capaz de ter nas mãos serenas
toda a força do amor que habita em si
e sabe pôr nas coisas mais pequenas
um gesto de ternura
mulher igual a mim
mulher que és mãe és a mulher mais pura

Mulher que chega à esquina da idade
carregada dos seus anos doirados
cada ruga lhe traz uma saudade
e afaga com ternura
seus cabelos grisalhos
bebendo o amor da sua fonte pura

cada ruga lhe traz uma saudade
e afaga com ternura
seus cabelos grisalhos
bebendo o amor da sua fonte pura

Letra: Manuel Lima Brummon
Música: António Chainho
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Portugal Triste”, Alvorada/Rádio Triunfo, 1980; CD “Tereza Tarouca”, col. O Melhor dos Melhores, vol. 32, Movieplay, 1994; CD “Teresa Tarouca”, col. Clássicos da Renascença, vol. 15, Movieplay, 2000; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006)

António Chaínho
António Chaínho
Olha, não chores, maninha

[ Cicatriz de Ser Mulher ]

Olha, não chores, maninha,
que eu não sei se vai passar…
essa tristeza tão funda
não sei se passa a chorar!

Olha, que pena, maninha,
essa flor de malmequer,
essa tristeza tão funda,
cicatriz de ser mulher!

Lembras? Que lindo o teu homem
e que meigo o seu olhar
e como ardia o teu corpo
ao seu mais leve tocar?

Foi de repente, maninha,
como tudo se mudou:
o amante foi senhor,
o senhor tudo esmagou!

Sei que é tão frágil a flor
que brotou do coração
e dói ver um corpo bandido
desfolhá-la pelo chão!

Olha, que os homens, maninha,
andam tontos pelo mundo:
pisam com fúria tamanha
o seu berço mais profundo!

E já não falo da guerra
com soldados frente a frente:
deixam a saia sangrando,
deixam pegadas no ventre!

Dizem “quem cala consente!”,
mas custa tanto falar:
o medo dentro da gente
ficou mudo de gritar!

Olha, não chores, maninha,
que eu apago, se puder,
essa tristeza tão funda,
cicatriz de ser mulher!

Letra e música: João Lóio
Intérprete: João Lóio* (in CD “Canções de Amor e Guerra”, João Lóio, 2002)

[Créditos gerais do disco]:
Carlos Rocha – guitarras acústica e eléctrica
João Lóio – voz e guitarra acústica
Firmino Neiva – baixo eléctrico
Arnaldo Fonseca – acordeão
Mário Teixeira – caixa de rufo
Regina Castro e Guilhermino Monteiro – coros
Arranjos e direcção musical – Carlos Rocha, Firmino Neiva e João Lóio
Gravado por Fernando Rangel, nos Estúdios Fortes & Rangel, Porto, em Abril de 2002
Mistura – Fernando Rangel, Carlos Rocha, Firmino Neiva e João Lóio
Masterização – Fernando Rangel

Veio de longe

Maria Lua (Mulher)

Veio de longe
para encontrar
outra lua, outro lugar
Veio sozinha
Maria Lua
acende o mar

Sem pressa…
Sem medo…
nem nada…

Veio de longe
veio a cantar
outra terra, outro ar
Veio sozinha
Maria Lua
cor de luar

Maria Lua
lua do mar…

Ela sabe quem é
cheira a café
Ela sabe o que quer
é mulher

Maria Lua
nunca se há-de casar
Ela é amante do mar

Veio de longe
para encontrar
outra lua, outro lugar
Veio de longe
Maria Lua
acende o mar

Maria Lua
lua do mar…

Ela sabe quem é
cheira a café
Ela sabe o que quer
é mulher

Maria Lua
nunca se há-de casar
Ela é amante do mar

Maria Lua
nunca se há-de casar
Ela é amante do mar

Maria Lua
lua do mar…

Ela é amante do mar
Maria Lua
lua do mar…

Letra: Eugénia Ávila Ramos
Música: Tiago Oliveira
Intérprete: Rua da Lua (ao vivo no Teatro da Luz, Lisboa)
Versão original: Rua da Lua (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)

Velha da terra morena

Mulher da Erva

Velha da terra morena
Pensa que é já lua cheia;
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia.

Saia rota subindo a estrada,
Inda a noite rompendo vem,
A mulher pega na braçada
De erva fresca, supremo bem.

Canta a rola numa ramada,
Pela estrada vai a mulher:
“Meu senhor, nesta caminhada
Nem m’alembra do amanhecer!”

Há quem viva sem dar por nada,
Há quem morra sem tal saber…
Velha ardida, velha queimada,
Vende a fruta se queres comer.

À noitinha, a mulher alcança
Quem lhe compra do seu manjar,
Para dar à cabrinha mansa,
Erva fresca da cor do mar.

Na calçada uma mancha negra
Cobriu tudo e ali ficou:
Anda, velha da saia preta,
Flor que ao vento no chão tombou!

No Inverno terás fartura
Da erva fora supremo bem…
Canta, rola, tua amargura!
Manhã moça nunca mais vem…

Letra e música: José Afonso
Intérprete: Teresa Silva Carvalho / introdução por Vitorino (in LP “Ó Rama, Ó Que Linda Rama”, Orfeu, 1977, reed. Movieplay, 1994)

Créditos gerais do disco:
Teresa Silva Carvalho – voz
Júlio Pereira – violas acústica e clássica, bandolim e percussões
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa e rabeca
Catarina Latino – flauta barroca e cornamusa
Zé Luiz Iglésias – viola clássica
Pintinhas – percussões
Hélder Reis – acordeão
Vitorino – voz masculina
Grupo Coral de cantadores do Redondo
Produção e direcção musical – Vitorino
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnicos de som – Manuel Cunha e Moreno Pinto
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/teresa-silva-carvalho

Capa do LP “Ó Rama, Ó Que Linda Rama” (Orfeu, 1977)
Desenho e execução – Jean Laffront

Elfiede Engelmayer dá a explicação deste texto: trata-se de uma velha mulher do Alentejo que ganhava a vida com a venda de erva.

José Afonso conheceu-a quando ela já tinha mais de setenta anos. Todos os dias, andava pelas ruas e estradas com uma cesta de erva cuja venda era o seu sustento e com que se alimentava o gado. Esta “profissão” desapareceu com a modernização da agricultura. A canção relata o encontro entre o cantor e a mulher.

Na segunda estrofe, ele vê-a a subir a estrada, vindo na sua direcção. Na terceira, eles trocam algumas palavras e depois ela prossegue o seu caminho sem ouvir o comentário do cantor. Na primeira estrofe, a “vela condenada pela onda” simboliza que ela não tem, e nunca teve, futuro.

Oona Soenario (in “A canção de intervenção Portuguesa: Contribuição para um estudo e tradução de textos”, Universidade de Antuérpia, 1994-1995)

Partilhe
Share on facebook
Facebook