Ao som de uma caixa de música
[ Caixinha de Música ]
Ao som de uma caixa de música, acordou João
Ao lado do berço um corpo caído, desilusão
A casa vazia e no ar um cheiro a solidão
Para lá da janela uma visão tão estranha
O que terá acontecido?
Como um pássaro que saiu do ninho e esvoaçou
João deu a medo alguns passos pelo quarto e sem querer
Debruçou o corpo sobre o chão morno e adormeceu
Talvez p’ra dormir o seu último sono
E o que fica a dizer de…?
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de mal e de bem
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de realidade
Uma brisa estranha chegou de repente, com sabor a fim
E uma noite fria caiu sobre os restos do auge do poder
Entre o tudo e o nada ficou uma sombra, uma recordação
Talvez algum dia alguém venha a perguntar:
“O que terá acontecido?”
Um manto de fumo cobriu a cidade, em forma de adeus
Talvez p’ra apagar a última imagem guardada da Terra
A tocar no meio do deserto plantado a caixinha ficou
Testemunha ingénua das glórias já findas
E das marcas da vida
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de mal e de bem
João, mais uma vítima nuclear numa casa no meio da cidade
Onde só se contavam histórias de realidade
Letra e música: Sebastião Antunes
Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha* (ao vivo no Estúdio 3 da Rádio e Televisão de Portugal, Lisboa)
Versão discográfica anterior: Sebastião Antunes & Quadrilha com João Pedro Pais (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019)
Versão original: Peace Makers (in single “Caixinha de Música / Recordação de Hiroshima”,
Victória Records, 1988)
Outra versão: Quadrilha (in CD “Deixa Que Aconteça: Ao Vivo”, Vachier & Associados/Ovação, 2006)
Ai que bom
[ Tango Poluído ]
Ai que bom, que bom que é!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!
Aos domingos, no Verão,
Lá vou eu, de madrugada,
Recompor-me da saúde
Nas praias da Cruz Quebrada.
Banhando-me ao pé do esgoto,
Respirando os seus odores,
Ao chegar o fim do dia
Vou p’ra casa com mais cores.
Fui um dia p’rà montanha
E passei um mau bocado
Respirando o tal ar puro,
Quase morri sufocado.
Fiquei logo com os pulmões
A pedir por caridade
O cheiro a óleo queimado
Que respiro na cidade.
Ai que bom, que bom que é!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!
Não me venhas com a conversa
Das comidas naturais,
Dás-me cabo dos tomates
Com esses sermões papais.
O frango só com hormonas,
Salsichas só enlatadas,
Peixinho só do Barreiro
E frutas bem sulfatadas.
Há p’ra aí quem diga mal
Da nossa Televisão,
Mas dela já não me passo
P’rà minha cultivação:
Vinte e cinco horas por dia
De cultura e informação
Poluindo a consciência,
Tudo a Bem da Nação.
Ai que bueno, que bueno!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!
Vi um tal da ecologia
Gritando como um possesso
Contra a bomba nuclear,
Contra a bomba do progresso.
Fiz-lhe ver que estava errado,
Pois não há nada mais belo
Nem há morte mais limpinha
Que o quente do cogumelo.
Disse-me um da intervenção:
“Lá estás tu com essa mania,
A cantar o tango assim
Estás a imitar o Letria”.
Mas eu estou certo e seguro
Que o Jôjô não leva a mal,
Embora ele tenha a patente
Do tango em Portugal.
Ai que bom, que bom que é!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!
Ai que bueno, que bueno!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que morrer em poluição!
Letra e música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília (in LP “Marginal”, Diapasão/Sassetti, 1981)
Poluição