Canções sobre poesia

Florbela Espanca

Dá-se aos que têm sede

[ Louvor da Poesia ]

Poema de Sebastião da Gama (in “Campo Aberto”, Lisboa: Portugália, 1951; Lisboa: Edições Ática, Colecção Poesia, 4.ª edição, 1983 – p. 45)
Recitado por José Nobre (in CD “Sebastião da Gama: Meu Caminho É por Mim Fora”, JGC, 2010)
Música: Rui Serôdio

Dá-se aos que têm sede,
não exige pureza.
Ah!, se fôssemos puros,
p’ra melhor merecê-la…

Sabe a terra, a montanhas,
caules tenros, raízes,
e no entanto desce
da floresta dos mitos.

Água tão generosa
como a que a gente bebe,
fuja dela Narciso
e quem não tenha sede.

Na viagem

[ Viagem do Verso ]

Letra: José Flávio Martins
Música: Cristina Bacelar
Intérprete: Frei Fado d’El Rei (in CD “Em Concerto”, Açor/Emiliano Toste, 2003)

Na viagem
De cada palavra,
Cada verso
Muda o tempo do saber!

No destino
Da estrofe nascente,
Cada frase,
É um rio solitário!

No regresso
Do verbo “chegar”,
Porque chego e me despeço,
À noite, ao luar!…

Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!
Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!

Em ti… mora, o meu beijo!
Porque… chora, meu poema!…

No destino
Da estrofe nascente,
Cada frase,
É um rio solitário!

No regresso
Do verbo “chegar”,
Porque chego e me despeço,
À noite, ao luar!…

Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!
Sou um verso de marés…
Sobre a rima de um poema!

Se ao menos houvesse um dia

Letra: João Monge
Música: Casimiro Ramos (Fado Três Bairros)
Intérprete: Camané (in CD “Esta Coisa da Alma”, EMI-VC, 2000)

Se ao menos houvesse um dia
Luas de prata gentia
Nas asas de uma gazela
E depois, do seu cansaço,
Procurasse o teu regaço
No vão da tua janela

Se ao menos houvesse um dia
Versos de flor tão macia
Nos ramos com as cerejas
E depois, do seu Outono,
Se dessem ao abandono
Nos lábios, quando me beijas

Se ao menos o mar trouxesse
O que dizer e me esquece
Nas crinas da tempestade
As palavras litorais
As razões iniciais
Tudo o que não tem idade

Se ao menos o teu olhar
Desse por mim ao passar
Como um barco sem amarra
Deste fado onde me deito
Subia até ao teu peito
Nas veias de uma guitarra

Senhores jurados sou um poeta

[ A Defesa do Poeta ]

Poema de Natália Correia (in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1993)
Recitado por Afonso Dias
Também recitado pela autora (in EP “Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria”, VC, 1969; CD “A Defesa do Poeta”, EMI-VC, 2003)

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Ser poeta

[ Existir (O Homem e o Universo) ]

Poema: Fernando Pessoa/Alberto Caeiro (compilação de versos extraídos d’ “O Guardador de Rebanhos” e de “Poemas Inconjuntos”, in “Poemas de Alberto Caeiro”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Lisboa: Edições Ática, 1946, 10.ª edição, 1993 – p. 22, 25, 50, 48, 83, 99, 57, 62, 68-69)

Adaptação: Samuel Lopes
Música: Samuel Lopes
Intérprete: Citânia com Luís Filipe Sarmento

Versão original: Citânia com Luís Filipe Sarmento (in Livro/CD “Segredos do Mar”, Seven Muses, 2011)

Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
Assim é e assim seja.
Basta existir para se ser completo.
Basta existir para se ser completo.
Quero as coisas que existem,
Não o tempo que as mede.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.
Bendito seja o mesmo Sol de outras terras,
Que faz meus irmãos todos os homens.
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu.
Basta existir para se ser completo.
Basta existir para se ser completo.
Procuro dizer o que sinto,
Sem pensar em que o sinto.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Ser poeta é ser mais alto

[ Perdidamente ]

Poema: Florbela Espanca
Música: João Gil
Intérprete: Trovante (in CD “Terra Firme”, EMI-VC, 1987)

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

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