LES PAS-DE-STRAVINSKY

Ou a Balalaika Stravagante

por Sérgio Azevedo

Fragmento de um ensaio (ainda) incompleto

Mote: “Orfeu, que atirara a lira para longe para iniciar um estonteante pas-de-quatre com as Bachantes, cai morto de cansaço e é salvo in-extremis por um russo feio como o Demónio”.

“That Tuesday I awoke at the still and empty hour when the night is nearly over but there is still no sign of dawn. I lay in the dim light, while mortal fear lay heavy on my body and invaded my mind, and my mind in its turn lay heavy on my body; and the smallest particles of myself writhed in the appalling certainty that nothing would ever happen, nothing ever change, and that, whatever one did, nothing would ever come of it.”

(Witold Gombrowicz, Ferdydurke)

A criação artística é, por exclusão simétrica, por pares opostos, indefinível por outros meios que não os da própria criação. Ninguém melhor que Stravinsky compreendeu isso quando disse que o melhor comentário sobre uma peça de música era outra peça de música. E Luciano Berio encarregou-se de lho provar ao escrever a Sinfonia (1968), cujo 3º andamento – In Ruhig Fliessender Bewegung – comenta o scherzo da 2ª Sinfonia de Mahler de um modo tal que o objecto primeiro se confunde com o comentário, a ponto de já não sabermos qual é qual. Paradoxo quântico, pelo qual o estado do objecto observado se transfigura, indefinindo para sempre a totalidade das suas múltiplas dimensões. O que é então do objecto e o que é do comentário? Sinto-me tentado a pensar na sinfonia de Mahler como um produto da sinfonia de Berio e não o contrário, cambalhota perversa da lei da causalidade. Salvador Dali dizia que detestava a música entre todas as artes, pois ela não era capaz de

“comunicar o pensamento do Homem”.

Em música não se pode dizer
“Está um chapéu azul sobre o penteador ao meio da mesa da esquerda”.

O mesmo Dali, que, numa reviravolta surrealista, dizia também
“Só gosto de ler o que não compreendo. Ao não compreender, posso imaginar múltiplas interpretações”.

Substitua-se a leitura pelo escutar uma obra musical e obter-se-á o mistério da arte dos sons, a inefabilidade sentimental que substitui, de infinitas maneiras, a compreensão concreta, unidireccional em muitos casos, das restantes artes. É verdade que Richard Strauss se vangloriava de poder descrever por música um
“indivíduo a tomar uma chávena de café”,

e que a sua Sinfonia Doméstica obtivera um grande “succès d’escandale” ao escarrapachar nos ouvidos dos melómanos vienenses uma imitação de tal modo realista (a ponto de se tornar assaz embaraçosa) do leito conjugal a abanar e das molas a chiarem – durante os devaneios carnais do compositor com a sua robusta, operática, “prima-donna” consorte – que dir-se-ia, a vida imitava a arte, e não o contrário. Picasso também teria, ainda segundo Dali, conseguido com sucesso obter de um farmacêutico italiano – sem nada falar da língua de Dante e meramente com o auxílio de uns rabiscos feitos na ocasião – um frasco de éter. Teria Picasso, se dela necessitasse, conseguido desenhar a Sinfonia Doméstica, também ela um produto do éter? Pois não era esse mesmo éter – que Einstein, na mesma altura descobriu que, afinal, não existia – o responsável pela transmissão dos sons sem significado da mesmíssima Doméstica?

…pobres músicos, dependentes de uma coisa desenhável mas fisicamente inexistente (segundo Herr Einstein) para os seus devaneios, estes menos carnais que os do bourgeois gentillhome Strauss;

…e sortudos pintores, que pintam com a luz, detentora única dessa estranha propriedade duplamente corpuscular e ondulatória que transmite significado. Precisam, é certo, de uma estrela, muito embora estrelas não faltem. Hollywood está cheio delas e é lá que muitos, como Dali, acabam por ir parar: I am a pop-star.

Mas se a pintura transmite significado pela imitação daquilo que a luz nos permite ver – é, hélas!, um universo de luz sem som, logo incompleto – não poderá também a música transmitir significado através da imitação daquilo que o éter nos permite ouvir? – e é este um universo de som mas sem luz, logo igualmente incompleto. A escultura acrescenta somente volume, mas não possui a dávida da cor nem o intangível do som.

E a literatura, terá ela realmente significado? Onde existem letras no nosso universo? Nem cor, nem cheiro, nem som nem nada. Símbolos que substituem a imitação directa, tal como a música substitui a imitação directa, onomatopeica, da realidade, por uma representação das emoções através de fotões de som, as notas. Dando assim lugar à imaginação na substituição, qual cifra de César, dos inefáveis símbolos por realidades pessoais e intransmissíveis, logo, Universais. Só é Universal o que é pessoal; cruel paradoxo este, armadilha diabólica! na qual muitos caíram e cairão, querendo ser Universais através do Universal, i.e, do lugar comum, da banalidade, do vulgar, do anedótico, do cosmopolita, do aceite, do cliché.

E a dança, existirá ela sem a música? A dança é o resultado imediato da música enquanto apoteose do erótico, do êxtase (sim, o êxtase, mas o êxtase tal como é entendido por Milan Kundera). E se a música para a dança também não existe fora da coreografia, a qual restitui alguns, possíveis significados, aos abstractos fotões de som? Em que ficamos? Não foi Stravinsky que disse do seu próprio bailado Agon:

“construí um edifício, mas foi Balanchine quem descobriu a porta para se entrar nele”?

serão então e unicamente os movimentos coreográficos que desenham símbolos (se calhar, afinal letras, de uma língua que nunca aprendemos a decifrar) no espaço, imaginária gramática que permitirá dar algum sentido concreto aos baralhados, assemânticos, hiéróglifos da música? A dança, arte do movimento, usa-se porém – e demasiadas vezes – de músicas anti-movimento real, que não ilusório; quer do minimalismo, estático por natureza, quer de alguma música atonal, igualmente estática embora pelas razões contrárias. O débito regular de impulsos será então auto-suficiente para a criação de movimento? Em tempos primitivos, teve de o ser, como nos lembra “Le Sacre du Printemps”. E se neste ritual a métrica é irregular – e com ela os acentos – a pulsação é pelo contrário tão regular como um relógio suíço. Dissonâncias rítmicas.mais tarde, e até ao prodígio de Agon, Stravinsky acabou por descobrir a dissonância melódico/harmónica em Pulcinella, Orpheu, Apollo, Dances Concertantes.

A dissonância?

“Oui, monsieurs, la dissonance! Cette art noble et exquise qui a été perdu dans les premières oeuvres du maitre, car la dissonance n’est pas un accord qui sonne simplesment désagréable, mais par contre un acord qui sonne désagréablement bien dans un contexte tonal. Un contexte qui permet les dissonances, les authorize et tolère dans certaines conditions, pas un contexte où il’y-a des accords qu’on apelle “dissonantes” pour le bénéfit des gens ignorantes, mais des accords que ne sont plus que des agrégats ayant toute une autre fonction et apartenant à tout un autre systéme et univers sonores”.

Stravinsky, maitre de danse, le Chechetti des musicians. Stravinsky descobre a natureza do movimento ainda antes do movimento descobrir a natureza da música, e tal os pares amorosos complementares de Platão, incompletos cada um, ao encontrarem-se, música e dança, unem-se para sempre. E até hoje ainda ninguém se não o grande domador de balalaikas conseguiu deslindar o porquê desta mágica alquimia.

Sabemos que muito reside na exactitude do tempo cronológico, madre de toda a forma que será depois preenchida:

– “Igor, je veux ici un Pas-de-Deux avec 2 minutes plus ou moins” –

– “Georges, je ne sais pas ce que sont 2 minutes plus ou moins! Dites-moi 1 minute et 33 secondes, ou 2 minutes et 7 secondes, mais je ne sais pas qu’est-ce que c’est un Pas-de-Deux avec 2 minutes, environ!”

Consegue pois Stravinsky o mesmo que Berio conseguiu em relação a Mahler, mas desta vez não só para todo o passado – ó negação da cronologia, do Tempo! – mas para todo o movimento vital do corpo. Ao tocar-lhe, mesmo o mais banal elemento não só se transforma em ouro, qual Rei Midas, como ainda se torna no seu ouro: “made in Stravinsky”.

Eis novamente a inversão das polaridades históricas, eis novamente a violação da causalidade. Outro “Princípio da Estranheza”, do qual Heisenberg nunca suspeitou. E estranheza atávica, primordial, de um mundo onde os humanos ainda não tinham lugar é o que define a música do Orfeu russo. A sua lira neoclássica (mais que a lira primitiva ou cosmopolita, e muito mais ainda que a lira serial – um pouco seca, convenhamos.) criou objectos que revelam a pureza da dança e da música que lhe está associada de um modo quase insuportável. Parodicamente e paradoxalmente através da renúncia total ao sentimentalismo místico dos românticos e à rudeza pagã de um mundo de Ur tal como este pode ser pressentido em Le Sacre ou em Les Noces. As duas artes tornam-se uma só, como demonstrou Balanchine ao coreografar o Concerto de Violino. Coreografar? Não, Balanchine limitou-se a revelar a dança que aquelas páginas já continham. O coreógrafo deixa, com Stravinsky, de ser um criador distante, passa a ser um revelador do que já lá está implícito.

Parafernália de funambulescos pandemónios rítmicos oscilando numa corda bamba, sem nunca tombar no vácuo da pista lá em baixo (muito em baixo mesmo), retomando sempre o equilíbrio, a musa de Stravinsky é Fantomas nos telhados de Paris, é Houdini nos parapeitos de New York, é Chaplin em The Circus, é a revelação dos impulsos vitais que uma sociedade demasiadamente burguesa e acomodada já esquecera havia muito, até que em… 1913…

No teatro onde os Pas-de-Deux pela primeira vez se transformaram – subitamente – em Pas-des-Dieux, os comuns mortais assustaram-se. O 1º fagote e Saint-Säens idem.porém, il-n’y a pas plus de Stravinsky…, Pas-de-Deux, oui monsieur saint, Pas-des-Dieux aussi, monsieur croche anti-diletante, mais Pas-de-Stravinsky…

Mas é este afinal outro texto sobre Stravinsky? Terei já, como é meu péssimo hábito, derivado do assunto primeiro deste ensaio, a criação musical e a indefinição da mesma enquanto linguagem? E como falar da criação musical e da música destinada a induzir movimento através de uma gramática que com ela nada tem a ver?

Afinal este texto é mesmo sobre Stravinsky.

Voltemos então a Orfeu e à sua salvação; uma lira não é uma balalaika, strictu senso, mas a órfica vítima estava-se já nas tin…

(fragmento.)

© Sérgio Azevedo, 2002

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