MOTU PROPRIO TLS
EFEITOS EM PORTUGAL
por António José Ferreira
Na sequência do código de música sacra, cada bispo nomeou a sua comissão diocesana de música sacra e foi dando orientações, publicadas em periódicos diocesanos e, a partir de 1937, na revista “Lumen”, órgão oficial das dioceses portuguesas. Pelo seu significado, destacam-se entre os pronunciamentos de bispos, os cânones musicais do Concílio Plenário Português (1926).
O episcopado incentiva os clérigos a aprenderem música, impõe restrições às filarmónicas nas festas religiosas, aplaude publicações litúrgicas que visem a participação, fomenta o restauro do canto de vésperas nos domingos e dias de preceito, apoia os coros e órgãos de tubos, lembra a proibição de coros mistos, rejeita tudo o que seja sensual.
O papel fiscalizador que presidia às comissões “de Revisores e Censores da Imprensa”, de “Vigilância da Pregação”, de “Vigilância contra o Modernismo” verificava-se também nas comissões musicais, analisando a conformidade com o Magistério, corrigindo abusos que ocorriam nas festas religiosas. Todavia, a implantação da República, em 1910, a condição periférica de Portugal, as carências em termos de cultura musical e as dificuldades de comunicação contribuíram para que a recepção do Magistério fosse lenta.
Os contactos internacionais com abadias, institutos e escolas de música seriam decisivos. Ao longo do século XX, eclesiásticos, professores em seminários, frequentariam o Pontifício Instituto de Música Sacra, criado em 1910: José Augusto Alegria, Manuel Faria, Manuel Luís, Abel Ferreira Alves, Luís A. F. de Matos, Joaquim dos Santos, Antóni Azevedo Oliveira, António Cartageno.
No Instituto Gregoriano de Paris (1923) houve também alunos portugueses: Júlia d’Almendra, os padres Mário Brás (Bragança), Gabriel da Costa Maia (Porto), Mário Silva (franciscano) e Celestino Borges de Sousa (Singeverga). A aposta na formação, que dependia muito dos bispos, deu frutos nas comunidades cristãs e na cultura portuguesa, embora os músicos se tenham debatido com muitas dificuldades, tanto na formação como na actividade. Na Igreja do século XX, o músico é-o a tempo muito parcial.
A actividade dos seminários e casas religiosas apresenta numerosos vestígios da influência de Pio X. No início do século XX, Emílio Knaebel, do Colégio do Espírito Santo, divulgou em Braga o canto gregoriano no espírito restaurador de Pio X. Este impulso acabaria por influenciar o Pe. Manuel Alaio, de algum modo o iniciador da chamada “Escola de Braga”. Professor de solfejo e de canto gregoriano no Seminário Conciliar procurou pôr em prática a restauração da música. Alguns padres poriam em causa a competência do sacerdote bracarense, tendo sido convidado o Padre Germano del Prado, em 1935, para “restituir ao canto gregoriano toda a sua beleza”. Mês e meio depois, o monge espanhol despediu-se argumentando que o Padre Alaio executava adequadamente o gregoriano. Na Arquidiocese foi-se criando um ambiente favorável à música, que tem por expoente máximo Manuel Faria e continua a ter lídimos continuadores.
O mosteiro beneditino de Singeverga desempenhou um papel importante na divulgação do movimento litúrgico musical através das emissões quaresmais de canto pelo seu coro na Emissora Nacional , entre 1942 e 1944, os encontros, semanas de estudos, edições e revistas. A “Opus Dei” (1926-1947), primeira revista litúrgica em Portugal, tinha uma secção de Música Sacra com perspectivas histórica, teórica, técnica e pedagógica do gregoriano. Sucedeu-lhe a “Liturgia” (1947-1951), com artigos de autores portugueses e estrangeiros sobre a música da Igreja, notação musical, história, canto gregoriano, legislação canónica e introduções aos cantos da missa. Na “Ora et Labora” (l954-), já na transição do Concílio Vaticano II, encontramos ainda artigos sobre gregoriano, documentação canónica, discografia, bibliografia musical litúrgica.
Na abertura do Seminário Maior de Cristo Rei dos Olivais (1931), o Cardeal Patriarca “manifestou a vontade de ver ensinado o verdadeiro canto gregoriano segundo a tradição de Solesmes. E o programa de estudos previu, a seguir, uma aula quotidiana de canto gregoriano”. De facto, Mons. Pereira dos Reis, Inacio Aldassoro, Pascal Piriou, José Ferreira, Manuel Luís tiveram um papel musical litúrgico importante no Patriarcado e no País. A revista “Novellae Olivarum” (1942) publicou cânticos, insistiu na participação do povo pelo canto. Reconhecendo a importância da liturgia e da missa, deu relevo ao gregoriano; divulgou o magistério da música e os grandes acontecimentos litúrgico-musicais.
No Porto, a publicação de música sacra “Laus Deo”, do editor Eduardo da Fonseca, compositor e membro da Comissão Portuense de Música Sacra, apresenta uma parte significativa de cânticos em latim, vários deles compostos por padres do Porto. “Abençoada pelo Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo do Porto”, ostenta fotografias do interior da Sé do Porto e o brasão do bispo D. António Barbosa Leão, pormenores importantes porque representativos da época. Em 1943, as Edições Lopes da Silva, também do Porto, publicaram ” Música Sacra. História e Legislação” (P.e Luís Rodrigues), o único livro do género publicado em Portugal. Além de elementos históricos, a obra apresenta 170 páginas de legislação, incluindo o “motu proprio” de Pio X, decretos e respostas da Congregação dos Ritos e determinacões diocesanas desde 1643, provisões episcopais e constituições sinodais.
Professor no Seminário Maior do Porto, Luís Rodrigues publicou também, em 1946, um “Tratado de Canto Gregoriano e Polifonia Sagrada”, com dedicatória “aos veneráveis amigos e mestres: D. Joseph Gajard, D. Gregório Sunol, D. Eugène Cardine, D. Lucien David, Henri Potiron”. Fê-lo a instâncias de padres e leigos, convicto de que o sacerdote deve possuir conhecimentos de canto gregoriano, polifonia, um pouco de harmonia, contraponto, fuga e certos termos da música moderna. Como outras escolas da Igreja que procuravam cumprir as orientações do Magistério, o Colégio do Sardão, em Gaia, publicou em 1955 o ” Vademecum do cantor gregoriano “, de Pierre Carraz, para directores e membros dos grupos corais.
Em Coimbra, começou a publicar-se em 1927 a “Música Sacra” , a primeira de música sacra que existiu em Portugal. Pretendia dar glória a Deus e por em prática o “códico jurídico da Música Sacra”. Procurava ser representativa das dioceses portuguesas, ao nível da composição, com vários correspondentes e colaboradores (J. Trocado, Manuel Alaio, Luiz Gonzaga Mariz, António D. Correia, Francisco J. Galvão, E. de Aguiar). No ano seguinte, por causa de certas críticas, o Bispo de Coimbra retirar-lhe-ia a licença, terminando assim a publicação.
Em Braga, a Tipografia Editorial Franciscana teve uma actividade bastante significativa, imprimindo muitas obras musicais. Bom número de missas em latim foram compostas e publicadas até aos anos 70 (Alexandre dos Santos, J. C. P. Almeida, Abel F. Alves, Benjamim Salgado, José Angérri, R. Marques), sem especial valor estético na sua maioria. O imenso catálogo de obras em latim de Manuel Faria, os motetes “O salutaris”, “Tantum ergo”, “Ecce Sacerdos Magnus”, “Panis angelicus”, “Te Deum”, “Magnificai”, “Crux fidelis”, “Veni creator” que encontramos em numerosos compositores eclesiásticos e leigos, reflecte ainda a influência de Pio X. Além do “Liber Usualis”, os seminários e paróquias recorreram a outras colectâneas de cânticos, em latim e em português. “Lyra Sacra” (1903), “Saltério Eucarístico” (1920), “Cantai ao Senhor” (1925), “Devocionário Musical” (1927), “Jubilate. Selecção de cânticos sacros” (1939) assumem o objectivo de contribuir para a restauração da música sacra. As colectâneas solicitavam a aprovação e benção episcopal, que lhes garantia legitimidade no acolhimento nas paróquias, associações, seminários e casas religiosas.
Numa época em que novos meios de comunicação se implantam, as primeiras transmissões directas da Emissora Nacional (1933) acontecem no âmbito litúrgico das celebrações do Natal e da Páscoa (1934). A partir de 1943, as transmissões da missa dominical, cantada pelos seminaristas dos Olivais, passaram a fazer parte da programação radiofónica e, anos 50, a mesma Emissora Nacional gravou e transmitiu concertos de órgão. Do Seminário dos Olivais transmitiu a Rádio Renascença (1937) a sua primeira missa cantada, bem como concertos de órgão pelo P.e Piriou e canto coral executado pelos seminaristas. Nos anos 60, os alunos do Centro de Estudos Gregorianos participaram em celebrações litúrgicas, concertos e missas transmitidas quinzenalmente pela RTP.
Influenciada por Pio X, pela musicóloga S. Corbin, padres Aldassoro e Piriou, Júlia d’Almendra (1904-1992) foi a grande promotora do “motu próprio” em Portugal: defendeu o latim, promoveu o canto gregoriano, a polifonia clássica, o órgão de tubos, a musicologia, a pedagogia. Em 1950, apoiada pelo Bispo de Leiria, criou, em Fátima, as Semanas Gregorianas, que persistem sob a direcção de Idalete Giga. Entre os formadores portugueses destes cursos ( que valorizam o gregoriano, direcção coral, pedagogia e organística), contam-se o musicólogo M. Joaquim, os padres Alegria, Brás, Faria, Costa Maia, Borges de Sousa, C. Silva (Leiria), Joaquim O. Bragança (liturgista), Ângelo Pinto (professor do Seminário de Vilar e do Conservatório do Porto), Sebastião Faria (Braga), José J. P. Geada (Guarda) e Maria Helena P. de Matos.
Inspirando-se no modelo do Instituto Gregoriano de Paris, Júlia d’Almendra criou o Centro de Estudos Gregorianos (1953) – actual Instituto Gregoriano de Lisboa – a primeira Escola Superior de Música Sacra em Portugal. O CEG deu formação qualificada aos organistas, ensinou harmonia, canto gregoriano, ritmo, modalidade e improvisação. Entre os seus alunos de órgão contam-se A. Cartageno, Simões da Hora, A. Duarte, Bettencourt da Câmara, J. Canhão. A partir de 1956, a revista “Canto Gregoriano” publicou documentação do Magistério, traduções de mestres do canto gregoriano, baseando-se na “Revue Gregorienne” (Solesmes) e “Le Lutrin” (Genebra). Embora tivesse poucos assinantes e leitores, foi a única revista de canto gregoriano que existiu em Portugal, funcionando como elo de ligação entre o CEG e os participantes nas Semanas Gregorianas. A Liga dos Amigos do Canto Gregoriano, que foi dirigida por Frederico de Freitas, apoiava o movimento musical.
Pela Audição Integral da Obra para Órgão de J. S. Bach, promovida pela Gulbenkian em 1965/66, Sibertin-Blanc, que deu um contributo organístico notável, referia o praticamente nulo interesse pelo órgão no início do século: “Desde há alguns anos, assistimos a um ressurgimento, lento mas real do rei dos instrumentos (…): em Lisboa e na Província constroem-se instrumentos; outros renascem depois de longos anos de silêncio; muitos alunos inscrevem-se nas classes de órgão das duas escolas que o ensinam em Lisboa; os nossos velhos mestres são reeditados, e chegaram mesmo a ouvir-se, nos últimos tempos, obras para órgão originais, assinadas pelos nossos grandes compositores contemporâneos”.
O ressurgimento organístico exige também referências a S. Kastner (na interpretação da música antiga) e, mais tarde, Gerhard Doderer, Manuel Valença e Ferreira dos Santos. Em 1960, um órgão francês foi adquirido por Júlia d’Almendra para sua casa e inaugurado pelo organista francês E. Souberbielle, facto significativo dos ideais de Júlia d’Almendra e da sua afinidade com Pio X – tal como é significativo ter trazido a Portugal músicos com o nível de J. Gajard, J. Guillou, J. Chailley.
Devia ter-se feito muito mais na sequência do TLS, como se deve fazer mais na lógica do Vaticano II. A influência do canto eclesiástico é óbvia nos compositores para a liturgia, mas, em termos corais, restam praticamente a Capela Gregoriana Laus Deo, o Coro Gregoriano de Lisboa, o Coro Gregoriano de Évora, o Coro Gregoriano do Porto, enraizados na herança de Júlia d’Almendra ou dos seminários.
Ao investigarmos a História da Música “erudita” em Portugal no séc. XX, encontramos um número pouco significativo de obras sacras, embora haja influências da tradição musical da Igreja em L. de Freitas Branco, F. Freitas Gazul, R. Coelho, F. de Freitas, Victorino de Almeida, C. Lima, A. V. Dias, João P. Oliveira, V. Azevedo, E. Carrapatoso, S. Azevedo, C. Bochmann. Apesar de tudo, a influência de Pio X na Música Sacra é um capítulo fundamental a escrever. A investigação da música na Igreja não é apoiada, nem reconhecida a sua importância, salvo honrosas excepções. É minha convicção de que a pesquisa histórica projecta luz sobre o presente e os melhores caminhos a seguir. A Igreja, os coros litúrgicos, os agentes musicais devem redobrar o interesse pelo canto gregoriano, a polifonia e o órgão de tubos, fomentando a escrita contemporânea.
O centenário do nascimento de Júlia d’Almendra e os 25 anos da morte de Luís Rodrigues, personalidades relevantes na cultura portuguesa do século XX, lembram-nos que a Igreja continua a ter uma função pedagógica fundamental no universo da Arte: demitir-se dela é falhar a própria evangelização.
António José Ferreira
Consequências do motu proprio “Tra le Sollecitudini” em Portugal, in Nova Revista de Música Sacra 109(2004)1-4.