SONOSFERA ARTIFICIAL

por Jorge Lima Barreto (1949-2011)

Estamos rodeados de sons, vivemos numa sonosfera.

Um ruído de fundo, global, envolve-nos, e subrepticiamente invade os nossos ouvidos; passivamente convivemos com essa amalgama sonora, fluxo contínuo e/ou descontínuo que é a sonosfera.

Podemos considerar dois tipos de sonosfera:

a) a natural, que corresponde a todo o mundo sónico e físico exterior, próprio da Natureza.

b) a artificial, que resulta de sons criados pelo homem, de duas formas: primo: sons incidentais biológicos, como a voz, ou, acidentais de origem tecnológica (motores de combustão, sirenes, slot machine, pás de aerogerador, e.a.); secundo: intencionalmente, sons codificados como a música ou as mensagens linguísticas.

Da sonosfera natural

O ruído inevitável domina poderosamente o nosso sentido auditivo.

As vibrações eléctricas (fonones) afectam a nosso corpo de mamífero que serve de caixa de ressonância – o som exterior, um ecossistema sonoro, é o nosso mundo real, por nós interiorizado; inconsciente, sem reflexão ou meditação ou sequer racionalização – como respiramos, ouvimos, arquivamos vários ritmos, tempos, intensidades, alturas, e timbres polimórficos; todavia, pela vontade, algo da luta pela sobrevivência da espécie humana, tentamos dominar toda essa bruma sónica…pulsações de ar, ondas, frequências, que vamos registando – por isso ao som do refluxo das ondas sabemos que estamos junto ao mar; massagem, mais que mensagem.

Crítica da sonosfera artificial

A partir da invenção tecnológica do microfone, do amplificador, do altifalante, e do registo fonográfico, no mundo dos sons fixados, podemos classificar dois tipos de envolvimentos sonoros artificiais:

sobreliminares, como o disco sound, a new age ou o hip hop, onde os sons são totémicos

e, subliminares, tipo aerosol, numa atmosfera impalpável e sedadtiva, distribuida dissimuladamente por emissores sonoros.

A maior parte dos sons que ouvimos ditos ou considerados como música provêm dum sistema sofisticado e totalilitário da indústria sónica. Com a electricidade e a proliferação dos mass media da música estava criado um movimento mercantil específico da indústria sonora.

Inicialmente tratava-se dum artifício discográfico, cujas músicas licorosas, pulsações voluptuosas, tendentes á abulia e à hipnose se ouviam por todo o mundo, como estratégia comercial e atmosférica.

Esta produção sonora cresceu como uma flor na estufa, rentável, deliquescência autorizada; o pacifismo seria em absoluto o valor positivo deste género sonoplástico.

Desde a sua origem, na alvorada do séc. XX, que a música de cinema, especialmente na academia de Hollywood, relacionou os sons que brotam naturalmente dum regato com um segmento duma suite pianística ou adjudicou rugidos de leão gravados em qualquer prisão zoológica com um imbróglio de marimbas e tam-tam; é esta a ilusão da música de cinema, transportada para a vida real, fecundo e complexo sistema morfológico, resultante do situacionismo musical pósmoderno, explicitamente redundante nas estruturas espaciotemporais envolventes.

O sentido pangeográfico desta indústria musical, leva-a a relacionar diversas músicas etnográficas sobre texturas da música clássica ocidental, que são apenas superfícies, alusões administradas, podendo eventualmente assegurar como pivot alguns interessantes e habilidosos intérpretes e compositores.

O estilo de fácil audição (easy listenning), como em toda a música ligeira, induz o domínio da melodia, da horizontalidade; esboço de texturas harmónicas, neo-romantismo sem sentimento profundo, insinuando um sensualismo impressionista banal; uma música que subrepticiamente apela à imaginação polissensorial endémica como meio de esterilização emocional.

Músicas funcionais para meditação, yoga, zen, relaxe com monografias instrumentais servidas como especiaria (sitar, shenai, koto, gamelão, ud, e.a.).
A passividade, reforçada por novos consumos tribais de drogadicção configurou a ideologia da música aeróbica; onde havia a abundância, a sociedade afluente, desenvolveu-se o ócio, o vazio existencial que os proselitistas, os charlatães, os filósofos do irrisório ditaram nas suas alegadas leis de compensação metafísica.

Este regime, todavia, trouxe para a música sofisticados sistemas de produção, vanguardas tecnológicas da indústria do áudio; estas obras combinam elementarmente diversas texturas sonoras cujas proveniências formais são as músicas do mundo (folclóricas, tradicionais, clássicas ou ligeira); recolhas trabalhadas com complacência tecnocrática, visando vendas astronómicas, confundindo pacifismo com passividade – apostados como um produto da indústria do lazer; editorial ecologista.

Muzak é uma firma transnacional que criou técnicas de envolvimento sonoro, indiferentemente da música a que recorre. Classificou os sons em suaves, que são as cordas; tónicos, os instrumentos de madeira e, emocionais que são os metais.

Considerou certos factores musicais: o tempo, relacionado com os batimentos do metrónomo por minuto: o ritmos, normalmente de figuralidade pregnante, como a valsa ou a rumba; o timbre instrumental é nebuloso. Cada factor obtem um número de pontos e essas variáveis são préclassificadas, impostas no tempo, no ritmo, no timbre e mesmo no volume sonoro. Realizam-se operações de filtragem dos sons harmónicos, reequilíbrios de baixos e agudos, de forma a depurar todos os artifícios musicais que possam distrair. Muzak é música tocada por milhões de auditores, fenómeno sinomórfico:,…usada como ar condicionado, numa máscara sonosférica. A indústria da música planificada Musak é utilizada em bancos, elevadores, jardins, salas, estádios, ginásios, museus, fábricas, estufas, aeroportos, estações de trânsito, jardins, e.a.

Recorria inicialmente a imbricações fúteis de música ligeira e clássica doseadas em dinâmicas rítmicas e intensidades; sendo um paradigma do conformismo, é o paradoxo da relação múltipla da tecnocracia, do humanismo e do ecologismo, ideologia desencadeada pela indústria musical, o triunfo insidioso do kitsch – Muzak é para ouvir sem escutar.

Insurreição contra o maneirismo, a hipercomplexidade e a estratificação de estereótipos, está o projecto para-anecóico, i.e. que pretende abolir o elemento sonoro, economicamente rarificador…; sons acústicos e electroacústicos breves e discretos, ouvidos esparsamente; ritmos em variação contínua, drones e noises meticulosamente controlados coexistem em pretensa suspensão temporal; desaceleração, contemplação, insinuação; trata-se afinal de um conceptualismo reducionista, decorrente da moda do despojamento nas artes decorativas. Uma frente abolicionista, regime de poupança sónica contra a poluição degradante do sentido auditivo.

Assim não podemos depreender aqui sequer uma tipologia musical, antes um vírus pseudoartístico já detectado por uma musicologia imunitária, uma operatividade sonoplástica beneficiária das tecnologias de ponta áudio e vídeo que proliferam de modo progressivo, num proselitismo irradiante; adjudicado a imagens maravilhosas da natureza, outras de foro etnológico, ou da área da divulgação científica, ou até mesmo da experimentação da vídeoarte, tendo como fundo sonoro, não raro, música licorosa e aqui, no ecrã hipnótico da imagem límpida, de cores puras, sem “ruído”, insinua-se categoricamente como sonosfera; spa, banho sónico, numa perspectiva clínica e terapêutica.

Esta sonosfera artificial concebeu obras lapidares de sonoridade ambiental, adjectivadas por melodismos anódinos e pontilismos lapidares; comprometido entre a especulação sobre os sons harmónicos e as músicas exóticas, radicado em técnicas corais polifónicas medievalistas, é uma concepção vocal e instrumental entre o entretenimento e a liturgia.

Noutra veretente podemos falar do músico paisagista que considera que o papel dos músicos não é reproduzir determinadas obras estéticas para prazer dum auditório reservado, mas intervir como qualquer arquitecto ou urbanista na cidade ou no campo criando paisagens sonoras artificiais.

A teoria ecologista científica fez um inventário sistemático de sons no sentido de nos protegermos de ruidos novivos que devem ser reduzidos pelos sons artificiais e/ou artesanais. A música ambiental tem o sentido cósmico da criação original de mundos! Unexpected End of Formula sonoros envolventes, propugna a comunitarização. Na sua ecopraxis, é pela difusão da música acusmática em lugares públicos ou urbanos, nesse carácter experimental utiliza todas as possiblidades do espectáculo, em novos sítios como a montanha, a pradaria, o mundo subaquático ou o estratosférico… o seu imaginário, monótono e translúcido tem um fundamento “verde”, aspira à boaventura ecológica.

A sonosfera artificial conheceu um progresso ex machina imparável até à era da telemática no último quartel do 2º milénio, que coloca a música na estética da comunicação. Para que isso acontecesse, duas tecnologias se desenvolveram a par: o satélite e computador.

A Telemática, ciência da comunicação à distância, situou a sonosfera em diversos espaços e tempos sonoros, transmediáticos, polissensoriais, interactivos (rádio, exclusivamente sonoro; TV, audiovisual, que privilegia a imagem sobre o audível; aparelhos ambulatórios, género walkman, walkie-talkie, radio car, rádio transistor, câmara de vídeo, satélite; reprodutores interactivos, o CDI, o CDrom; o computador portátil, laptop; e.a.; interacção e participação com a Internet).

A sonosfera cinética evoluiu desde o posicionamento estético dos altifalantes, à sua deslocação no espaço, determinada pelo computador, criando uma realidade virtual de espaço e movimento.

Na sonosfera artificial que recorre ao computador é considerada a noção de espaço, a fenomenologia sonora adequadamente dispersa, o envolvimento conjecturado; os espaços sensíveis e os abstractos; as estruturação e cognição da geografia dos sons, modelos de configurações espaciais, a virtualidade dos espaços sonoros, a espacialização audiovisual, a arquitectura sónica, os espaços da imaginação subjectiva do emissor e do ouvinte…o paradigma do espaço é apenas a oportunidade de criar sons algures, musicais ou não.

A sonosfera artificial é metaestilo, polimorfismo, orgasmo olímpico, cacofonia ou plenitude mística, pulsão colectivizante; como na horticultura: polinização e hibridação.

Laboratório cultural, investimento anónimo na experimentação, prática de insuspeitos modelos como percepções e relações alternativas; sendo rizomórfica, a sonosfera artificial empreende novos processos criativos de produção. Propõe um novo objectivismo – enredo multifário, citação, miscibilidade, invenção maravilhante de objectos aventados pela lógica do pensamento absurdo, de pregnante sensualidade. O seu ritmo é abstracto, apenas determinado por obscuras leis da mecânica e da electrónica ou pela pulsação volúvel da acção humana.

Com o maior optimismo a sonosfera artifi

Jorge Lima Barreto

cial é um situacionismo crítico e de clariaudiência, associado às viragens da dimensão estética do som.

Jorge Lima Barreto

Lisboa, Agosto, 2008

SPA

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