DO “TEMPO LONGO” AO “TEMPO ACELERADO”:

A SOCIEDADE MUSICAL DE GUIMARÃES NA GUIMARÃES CAPITAL DA CULTURA 2012

Gomes de Araujo, H.L. (2014). “Do tempo longo ao tempo acelerado (1). A Sociedade Musical de Guimarães na Guimarães Capital da Cultura 2012” (2), In Vieira, H. et al Pensar a Música II, Guimarães: Sociedade Musical de Guimarães, 105-121.

Henrique Araújo
haraujo@porto.ucp.pt
Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa
CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes.

O autor agradece ao Presidente da Sociedade Musical de Guimarães, Dr. Armindo Cachada, ao Presidente da Fundação Cidade de Guimarães, Professor João Serra, ao Director da Academia de Música Bernardo Valentim Moreira de Sá, Dr. Domingos Salvador, à Professora Maria Helena Vieira, da Universidade do Minho e ao Mestre Victor Matos a colaboração prestada no fornecimento de dados e relatórios e ao Professor José Maria Pedrosa Cardoso, Presidente da Comissão Científica do Congresso Musical de Guimarães 2012, pelos comentários críticos à primeira versão do texto que ora se apresenta.

1. O problema: a regulação das sociedades globalizadas de hoje.

Segundo Bruni (2010) a economia experimental e a economia comportamental tem vindo a introduzir categorias como a “sinceridade”, a “genuinidade” em procedimentos não instrumentais (a confiança, as reciprocidades, o voluntariado) que afetam positivamente a motivação e os interesses económicos dos sujeitos.

Estamos, pois, perante uma outra economia, esta não só orientada para a satisfação das necessidades de consumo tal como a clássica, mas também para o desenvolvimento da capacidade criadora das pessoas (Lasida, 2011, p.35) e das suas sociedades de pertença. O que a põe em movimento e a regula são os processos de identidade, reciprocidade e gratuitidade dos agentes económicos tomados agora como criadores interdependentes, ou seja, como co-criadores de “bens relacionais” (Bruni, 2010, p.154).

Doutro modo: esta economia, dita da gratuitidade (Bento XVI, 2009) põe em marcha processos de auto – regulação sócio – comunitária complementarmente aos processos de controlo político – jurídico (Azevedo, 2009), caracteristicamente prevalentes na economia clássica. Foi esta nova economia da criatividade que se pretendeu imprimir à Guimarães 2012, em complemento com a economia de mercado, como procuraremos evidenciar neste texto.

Significa isto dizer que as elites burocráticas que eram acometidas de um suposto poder de antecipação, controle e regulação das crises do mercado, estão hoje em falência. No melhor dos cenários, criam a expectativa de que surjam outras elites, carismáticas essas (capazes de romper com as situações do sofrimento e de injustiça vigentes (Gomes de Araújo, 2012, p. 821) permitindo assim o renascimento de oportunidades favoráveis ao desenvolvimento pessoal e comunitário. Foi esta oportunidade de aliança de elites burocráticas e carismáticas que surgiu formalmente em 2009 quando o Conselho Europeu de Ministros da Cultura da União Europeia designou Guimarães como uma das Capitais Europeias da Cultura do ano 2012, conjuntamente com a cidade eslovena de Maribor (Universidade do Minho (UM, 2013).

O problema em avaliação de um modo geral, nas sociedades globalizadas de hoje e de um modo particular, na Guimarães Capital Europeia da Cultura (CEC-2012) é, assim, um problema de regulação. Não é por acaso que aquela se insere na fase institucional da evolução das Capitais Europeias da Cultura, iniciada em 2000 e caracterizada por um “acréscimo de regulamentação e controlo” (UM, 2013). E sabemos bem como a (des) regulação das sociedades globalizadas de hoje é um problema de grande acuidade. Trata-se de um problema transversal a todas elas. A nível político, social e cultural, económico
e financeiro, ela aí está cada vez mais presente. A entropia que tal desregulação comporta põe em causa o sistema de contratos em que desde os séculos XI-XII se construiu paulatinamente a moderna sociedade europeia. A estabilidade das relações contratuais, garantia de direitos e deveres preestabelecidos, passou assim a ficar em causa.

A questão que tal situação levanta é a de saber qual a causa da situação actual, acima sumariamente descrita. Sabemos (Caraça, 2011) que as sociedades ditas “primitivas” concentravam no seu líder o poder de regular as mesmas e, assim, de tentar antecipar o futuro, guiando o grupo no caminho da sobrevivência. Nas sociedades tradicionais, o aumento de recursos veio permitir a existência de uma elite dirigente letrada político-militar-religiosa que constituía agora o sistema antecipatório do futuro das mesmas. As modernas sociedades europeias trouxeram a proliferação dessas elites – política, militar, eclesiástica, artística, académica, económica, financeira -, deixando no seu centro uma elite política que, coordenando a informação possível que lhe chegava, criava líderes que mantinham a “supervisão do futuro”. A divisão do poder político em legislativo, executivo e judicial que o modelo da democracia liberal veio consagrar é uma expressão daquela proliferação.

2. A questão: podem elites fragmentadas regular sociedades globalizadas?

Nas sociedades de hoje, as elites globalizaram-se através do seu sistema financeiro, deixando no seu lugar uma elite política que já não pode controlar mais a informação. A questão então é a seguinte: sendo as elites subgrupos cuja função é a de produzirem líderes; sendo a responsabilidade destes a de criarem sistemas antecipatórios que regulem os problemas existentes nas suas sociedades de pertença; sendo, por sua vez, esta regulação, conditio sinae qua non, do desenvolvimento bio-psico-eco-sócio-cultural-espiritual, pessoal e social dessas sociedades; encontrando-se as elites, nas sociedades complexas de hoje, muito fragmentadas e especializadas; o paradoxo é: como podem elites tão fragmentadas e especializadas fazer face à crise de sociedades tão globalizadas como são as de hoje? Doutro modo: como podem elas, funcionarem como sistemas antecipatórios de regulação dos problemas das sociedades complexas e globalizadas de hoje?

A resposta é: claramente, não podem. Há uma completa desmesura entre a necessidade de regulação das sociedades globalizadas de hoje e o estilhaçamento e extrema especialização do poder das suas elites. É o próprio sistema capitalista que está posto em causa neste hic et nunc.

Sinais desta crise sistémica são identificados como “o desejo exacerbado de consumo, a desindustrialização em amplas regiões, a acentuação das degradações ambientais e a desigualdade crescente na repartição” ( Lasida, 2011, p. 311). A consequência prática é a de haver, nas actuais sociedades globalizadas, um aumento de entropia, conflitualidade e perda de sentido de vida, pessoal e comunitária.

Não nos iludamos pois. Vivemos uma crise de sistema que o atinge na sua racionalidade e desenvolvimento e nos valores de antecipação, planificação, controle e segurança, que caracterizam o centro financeiro da sua economia.

Mas tal não impede o aparecimento de acontecimentos inesperados nas margens do sistema. São momentos subitamente abertos ao futuro e destinados a durar, no meio de um passado marcado pela morte” (Lasida, 2011, p. 314). Trata-se de um outro tipo de tempo – o kairos – que outro tipo de líderes, os líderes carismáticos, transportam. É este tempo e são estes líderes que vão estar (também) presentes na Guimarães 2012, como mais adiante procurarei mostrar.

Como sabemos, o termo carisma provém do gr. kharisma que denomina um dom da graça (gr. kharis, alegria) divina que o khairos (o “tempo da alegria”) súbita e inesperadamente manifesta quando o movimento que a figura carismática lidera, estabelece uma ruptura com situações de desgraça (de sofrimento, de aflição, de injustiça, de morte).

Como dizia Max Weber (1978), os carismas simbolizam missões divinas e a sua legitimidade advém da força pessoal de quem os transporta e que está sendo constantemente submetida à prova (p.1115).

Como ele repetia e bem, o líder carismático: “gains and retains (his authority) solely by proving his power in pratice. (…). Most of all, his divine mission must prove itself by bringing well-being to his faithful followers” (Weber, 1978, p. 1115). Podemos assim dizer que o líder carismático e os seus seguidores criam, à sua volta, “bens relacionais” (Bruni, 2010).

Com efeito, o portador do carisma é um autor, isto é dizer um sujeito que goza de autoridade junto dos seus seguidores e, em consequência, da confiança destes em virtude da missão que acreditam estar investida nele.

Neste sentido, “charismatic domination is also the opposite of bureaucracy in regard to its economic substructure. Bureaucracy depends on continuous income (…), but charisma lives in, not off, this world” (Weber, 1978, p.1113). Como ele dizia: “As a rule, charisma is a highly individual quality. This implies that the mission and the power of its bearer is qualitatively delimited from within, not by an external order” (Weber, 1978, p.1113).

O poder revolucionário do carisma, manifesta-se assim “por dentro”, a partir de uma metanoia central das atitudes dos seus seguidores, enquanto que uma organização racional revoluciona a partir de “fora” (Weber, 1978, p. 1113). Como dizia Max Weber: “In this purely empirical and value-free sense charisma is indeed the specifically creative revolutionary force of history” (Weber, 1978, p. 1117). E adverte que embora a sua missão não seja necessariamente e sempre revolucionária, ela inverte, na maioria das formas carismáticas, todos os valores hierárquicos e derruba costumes, leis e tradições.

E qual será o resultado desta força criativa revolucionária? Será só a inovação técnica? Ou será também o da inovação social (Bruni, 2010, p. 184) ou seja, a sua capacidade de criar novos modelos de viver em conjunto (Lasida, 2011)? E, neste caso, não estarão aqui as sociedades musicais e as Capitais Europeias da Cultura como a CEC-2012?

Por que processos os carismas – e nomeadamente os dons artísticos – podem dar origem, em certos contextos históricoculturais – marcados pelo sofrimento e a injustiça –, a formas de inovação social como foram a Sociedade Musical de Guimarães (SMG) e a Guimarães 2012?

Possivelmente cada um desses líderes carismáticos, não teria a possibilidade de criar um sistema antecipatório da solução de crises, dentro da sua área específica de acção. Mas a reunião de todos eles na fundação de cada forma institucional, tornou mais possível a criação desse poder duradouro de regulação do desenvolvimento do seu contexto. Em suma e de um modo mais geral: o que confere distinção (Bourdieu, 1979) às formas societais musicais e às Capitais Europeias da Cultura é a de nelas se poder verificar a concentração de líderes diversos – religiosos, militares, empresariais, culturais – quer na sua fundação, quer na sua direção, quer ainda na sua simples participação. Nelas pode realizar-se a união do uno e do múltiplo na liderança da sua organização. Aí reside, no caso da SMC e da CEC-2012, a sua distinção (Bourdieu, 1979, p.101) e sua quota parte no poder de regulação do desenvolvimento de Guimarães e do seu concelho.

A questão que tal facto coloca é: por que é que elas têm esta identidade e esta distinção (Bourdieu, 1979, p.195)? Tendo a linguagem criativa em geral e a musical, em particular, uma vocação universal, não permitirá ela, assim, a criação de condições de convivialidade entre pessoas e líderes de natureza diversa que de outra forma se encontrariam acantonados em territórios de acção institucional, específicos e separados? Não residirá nesta força organizacional centrípeta a sua identidade própria?

3. O contexto da Guimarães 2012: morte e (re)nascimento.

O tema que me foi dado para esta comunicação – “A Sociedade Musical de Guimarães (SMG) na Guimarães Capital da Cultura 2012 (CEC-2012)” tem, como todos os temas, um contexto. Como o podemos definir?

O contexto histórico-político e económico da Guimarães 2012 insere-se numa primeira aproximação, por um lado, no ciclo actual de perda de soberania em que Portugal se encontra, e, por outro, no “berço da nacionalidade” do país que Guimarães representa. Um país inteiro em sofrimento, subjugado por uma política de austeridade, uma economia em recessão e com um desemprego crescente, revê-se no logotipo desta Capital Europeia da Cultura. Inspirado na
planta do seu castelo e no elmo de D. Afonso Henriques, o coração aparece, reinventado e multiforme, no espaço público e privado das suas ruas e lojas e no tempo interior dos vimaranenses. Como bem diz o referido relatório, “Guimarães, o berço da Nação é um lugar de onde todos os portugueses fazem parte” (UM, 2013,p.27). Em Guimarães 2012 estamos todos, desde o nascimento – mesmo os que lá não puderam ir -, no coração de Portugal.

Numa segunda aproximação, o contexto da Guimarães 2012 inserese num processo de desindustrialização que atingia, desde o início da década de 1990, a tradição industrial e exportadora dos sectores vimaranenses dos têxteis, do vestuário e dos couros, “em resultado, por um lado, da forte valorização cambial da moeda portuguesa naquela década e da posterior adoção do euro e, por outro, da forte concorrência resultante da abertura dos mercados europeus aos produtos asiáticos.” (UM, 2013, p.19).

Ao sofrimento geral dos portugueses, acrescia neste contexto, o sofrimento particular dos vimaranenses, a exigir uma libertação da fase de decadência não só do país, mas também aqui do concelho que trouxesse uma reestruturação geral do seu sistema económico, purificasse a sua estrutura democrática e contivesse a violência que a opressão suportada podia provocar. Como assinala o referido relatório: “A Guimarães 2012 foi interpretada à partida como uma oportunidade para promover a reconversão do tecido económico, assente na criatividade e na inovação, e para reforçar a sua competitividade e a criação de emprego qualificado, nomeadamente através do desenvolvimento das indústrias culturais e criativas” (UM, 2013,p.20).

4. A Guimarães 2012: eixos, poderes e temporalidades.

Simbolicamente, a salvação da cidade do espectro da metáfora da morte reside num poder baseado em Deus, nos espíritos e nos antepassados (Turner, 1969) que dê futuro à acção das suas instituições. Há que confiar nelas. Tal libertação exige como conditio sinae qua non, uma programação da Guimarães 2012. Assente em doze pressupostos entre os quais, “uma forte ligação à comunidade (…), o desenvolvimento da consciência de pertença à Europa, a valorização da “visão histórica e biográfica do território em relação e confronto com leituras contemporâneas”, contemplou quatro áreas: Comunidade, Cidade, Pensamento e Arte, “esta última ramificada nas disciplinas Cinema e Audiovisual, Artes Preformativas, Música, Arte e Arquitectura.” (U.M., p.28).

Os programas da área da música são descritos no referido relatório, como “rígidos e de improvisação, de expressão erudita e popular, profissional e amadora (…) que chegassem a todos os públicos.” (UM, p. 30). Mas é outro relatório – o da Sociedade Musical de Guimarães (Cachada, 2013),-que realça, dentro destes programas, a realização pela Sociedade Musical de Guimarães da Ópera “L’Enfant et Les Sortilèges” de Maurice Ravel em parceria com a Orquestra Estúdio da CEC (Cachada,2013). Tendo resultado da candidatura a financiamento à CEC-2012, o apoio financeiro por esta foi integral. Mas o mais significativo foi sem dúvida o elenco de sete cantores profissionais e de um coro de mais de 100 vozes, composto por alunos dos 6º a 12º anos que tendo-se inserido na continuidade de a acção pedagógica anterior (Cachada, 2013,p.8) da Academia B. V. Moreira de Sá e tendo beneficiado de uma cobertura por parte dos media significativa, permitiu uma visibilidade do trabalho que extravasou as fronteiras da cidade (Cachada, 2013, p. 9).

O relatório da Universidade do Minho destaca “o trabalho realizado pela Fundação Orquestra Estúdio durante todo o ano de 2012. Além do reportório histórico, a orquestra percorreu freguesias e espaços menos convencionais do concelho com os seus desdobramentos e formações; acompanhou músicos e apresentou novas criações de compositores portugueses e internacionais.” (UM,2013,p.30). Mas é o segundo relatório que evidencia o facto de alguns dos professores de música da Academia B.V. Moreira de Sá terem integrado como
instrumentistas, “o elenco permanente de músicos da Orquestra Estúdio”(Cachada,2013,p.10) e de algumas vezes, ter sido “solicitada à Orquestra Clássica da Academia a cedência de instrumentistas, em algumas actuações, para colmatar falhas no elenco da Orquestra Estúdio” (Cachada, 2013, p.10). Ao longo de 2012 registaram-se 1 300 eventos culturais metade dos quais foram, no seu conjunto, de música, cinema e teatro (UM, 2013, p. 31), sendo de sublinhar que o maior número de eventos (353) foi de música.

Ora, entre a programação e a realização de todos estes eventos, há necessariamente dois eixos que se cruzam: o vertical, da estrutura hierárquica das instituições em que aquela se baseia e inscreve e o horizontal, da comunidade dos vimaranenses em que os dons artísticos encontram múltiplos topos em rêde, para se diluírem na animação interior daqueles e na inovação social da cidade e do concelho. O futuro que o poder de libertação institucional do sofrimento e da injustiça anuncia, presentifica-se na linguagem analógica interior daqueles que procuram no reforço da sua fé, do seu amor e da sua identidade como vimaranenses, portugueses e europeus, romper com o sofrimento e a injustiça de que são alvo.

Como noutro local enfatizei é a futuridade do poder de libertação que justifica a presentificação do poder da dádiva de todos os dons (“presentes”, em sentido substantivo e verbal) que estiveram à prova (Gomes de Araújo,2009,p.221) nas centenas de eventos que animaram, durante 2012 e parte de 2013, a CEC-2012. Em que se baseia este último poder? Como já admiti como hipótese funda-se na autoridade daqueles que, tendo submetido a sucessivas provas os dons de que eram portadores, se revelaram autênticos líderes pelo sucesso obtido nessas provas de inovação técnica e social (Gomes de Araújo, 2012, p. 817). Ancoraram a sua autoridade na tradição, na força e na riqueza, garantindo assim a confiança dos seus seguidores e a consequente sobrevivência do grupo, isto é dizer, o seu futuro. Terá sido completamente assim? Terá ficado garantido o futuro do legado da Guimarães 2012?

Na verdade, podemos dizer que se entendermos por elite o subgrupo que forma, contem e reproduz líderes, houve sem dúvida antes, durante e após a Guimarães 2012, uma elite gestora, cultural e artística, que teve a seu cargo o exercício daqueles dois poderes. A prová-lo está a evidencia da adesão da população As pessoas não deixaram de corresponder ao apelo dos eventos, acompanharam a requalificação urbana e visitaram os novos espaços culturais. Mas também abriram as casas à música, decoraram as montras com corações de cartão, abraçaram iniciativas e foram actores em momentos privilegiados da programação” (UM,2013,p.126).

Terá sido completamente assim? Terá sido suficiente esta adesão para garantir o futuro do legado da CEC-2012? “Se por um lado Guimarães ficou enriquecido com a requalificação urbana e com os novos equipamentos surgidos ou consolidados, sobram muitas incertezas acerca de uma efectiva renovação e reposicionamento da cidade como cidade orientada para o sector criativo e cultural. Para vários dos equipamentos criados para 2012 o futuro é ainda uma incógnita pelo que se afigura difícil avaliar os seus efeitos. A Casa da Memória continua por abrir, os equipamentos de Couros estão a funcionar abaixo das suas capacidades e mesmo a Plataforma das Artes e da Criatividade entrou em 2013 com dúvidas sobre a sua forma de gestão, sem que todas as valências instaladas estejam a ser utilizadas” (UM, 2013, p. 81). E na área da música podemos tomar o caso particular, mas relevante, da Orquestra Estúdio. Com ela, “a grande maioria dos músicos, nacionais e estrangeiros, passou a viver na cidade de Guimarães (…) a qual, com amplas tradições musicais, acolheu amavelmente os músicos e a Orquestra, que foi um dos projectos mais bem-sucedidos e valorizados pelos vimaranenses. A presença diária desses músicos (…) coloriu a cidade de um tom cosmopolita e criou laços de sociabilidade entre a cidade anfitriã e os músicos (…). A isto acresce o facto de a Fundação Orquestra Estúdio ter-se entrosado com projectos fortemente ancorados na comunidade, como o grupo Outra Voz, o coro de crianças e as Orquestras Sub-12 e Sub-21. A decisão de não dar continuidade à orquestra terminado o ano de 2012 foi sentida com consternação pela cidade, que via a instalação definitiva da Orquestra como um projecto vivamente relacionado com os eixos culturais da cidade e que entendia ser um legado crucial a manter no pós-Guimarães 2012″(UM,2013,p.79). De novo, o relatório da Sociedade Musical de Guimarães (Cachada,2013) vem desocultar e evidenciar aspectos relevantes que o relatório da Universidade do Minho (UM,2013) omite, como a responsabilidade “de delinear e levar a cabo” os projectos da formação das Orquestras Jovens Sub 21 e sub 12, assumida pela Sociedade Musical de Guimarães (Cachada,2013,p.9).

5. Os aspectos diurno e nocturno do tempo: do “presente etnográfico” ao tempo longo do passado.

As temporalidades que percorreram estes dois eixos (vertical e horizontal) antes, durante e após a CEC-2012, evidenciaram bem as duas formas de regulação a que nos referimos no início: a políticojurídica e a sócio-comunitária. Na verdade, falámos de regulação, de inovação e de futuro. E dissemos que a futuridade que a Guimarães 2012 pretendeu imprimir à acção das suas instituições, foi

sendo presentificada pela acção criativa dos seus participantes, vimaranenses
ou não. Como noutro local sublinhei (Gomes de Araújo, 2009) estas múltiplas formas de dádiva pessoal, diluíram-se, na animação económica de Guimarães, com repercussões mesmo em parte de 2013 (UM, 2013, p. 74). De acordo com o referido relatório “algumas (das instituições vimaranenses) desenvolveram projectos a partir da história da cidade e da sua memória projectando-as nofuturo” (UM, 2013, p. 29).

Mas, o que talvez chama mais a atenção, é a relativa pouca evidência dada no referido relatório (UM, 2013) à participação das instituições mais antigas e emblemáticas da cidade – a Sociedade Martins Sarmento (SMS) e a Sociedade Musical de Guimarães (SMG), fundadas respectivamente em 1881 e em 1903 -, na Guimarães 2012. Como foi possível que tal esbatimento tivesse acontecido com instituições com tanta relevância para a cultura local, regional e nacional? Esta é a questão levantada pela etnografia do presente (o “presente etnográfico” dos antropólogos) vimaranense.

É compreensível que o passado, embora esteja tão presente na memória da Guimarães “berço da Nação”, tivesse ficado de certo modo enoitecido nos projectos, nas antecipações e nas expectativas da CEC-2012. Como Pina Cabral chama a atenção é ao aspecto diurno da vida sócio-cultural (da Guimarães 2012) que “correspondem as pessoas, coisas, processos e significados que recebem maior legitimação”, enquanto que ao passado, corresponde o aspecto nocturno dos processos que “são reprimidos e que não encontram uma forma óbvia de expressão” ( Pina Cabral,2000,p.875). Torna-se assim evidente que não é o passado que nos desafia a olharmos para o presente, mas é, pelo contrário, o “presente etnográfico” que, pela sua evidência problemática, nos convida e incita a iluminar os subterrâneos daquele. Não lemos esse tempo de trás para a frente, mas, inversa e paradoxalmente, de frente para trás. Significa isto dizer que a leitura do vector do tempo é, na antropologia, inversa da da história.

Sem dúvida que esse passado, não tendo sido o objecto central da preocupação (pré+ocupação) da Guimarães 2012, renasce ciclicamente no tempo dos rituais de comemoração (co+memoração) (da independência de Portugal a 5 de Outubro de 1143, da fundação da Sociedade Musical de Guimarães a 25 de Março 1903, da designação de Guimarães como Património Cultural da Humanidade a 13 de Dezembro de 2001, etc.). Na verdade, é nesses momentos que o “tempo linear” e profano dos relógios das nossas sociedades modernas e contemporâneas recupera a fundura do “tempo circular” e sagrado das sociedades tradicionais. Mas tal não chega para tornar o passado, objecto temporal central deste “berço da Nação”. Na verdade, o objecto central da CEC-2012 é o presente e sua projecção num futuro que se sabe incerto (UM, 2013,p.81).

Segundo o ponto de vista de Hermínio Martins, estamos também aqui perante os sinais de um tempo acelerado na vida quotidiana “provocado e sustentado pela computorização e digitalização da comunicação e da informação em todas as fases da vida e do lazer. (…). Vivemos numa economia-mundo de maximização de fluxos – energéticos, informacionais, materiais, virtuais, financeiros (talvez a vanguarda da globalização hodierna) -, e convergentemente, de minimização dos stocks” (Martins, 2011, p. 335). Segundo este autor, estamos numa “economia acelerada” ou “turboeconomia”, incompatível com a “economia da felicidade” (Martins, 2011, p. 338) ou a “economia da gratuitidade” (Bento XVI, 2009; Bruni, 2010) a que no início nos referimos como dinâmica económica que se pretendeu imprimir à Guimarães 2012, complementarmente à do mercado.

O relatório da Sociedade Musical de Guimarães (Cachada, 2013) enfatiza os objectivos de “levantamento, estudo e divulgação do património musicológico vimaranense, disperso por vários espólios à guarda de entidades como a Sociedade Martins Sarmento (como o códice seiscentista conhecido por “Passionário Polifónico de Guimarães” (SL 11-2-4), o Museu Alberto Sampaio, o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta e a Sociedade Musical de Guimarães, além de outras” (Cachada, 2013,p.1).

Estes objectivos estiveram presentes em dois grandes projectos, já concluídos, “O Congresso Musical de Guimarães” e, realizado de 23 a 25 de Março de 2012 e o “Musicave – Portal Musical do Vale do Ave”(Cachada,2013, pp. 1-5).

Numa “economia acelerada” que tende a minimizar os stocks (Martins, 2011), estes projectos – e, sobretudo, o segundo –, corporizaram bem a consciência da defesa do património imaterial neste hic et nunc.

6. A conclusão: algumas reflexões.

Estas contradições levam-nos aqui a formular algumas reflexões, a saber: pode uma capital europeia da cultura, como a CEC-2012, integrar adequadamente no tempo, o passado longo da acção das suas instituições, o presente da animação da economia da sua cidade e a projecção de tudo isto no futuro incerto dos seus cidadãos, no curto e acelerado horizonte temporal da sua programação?

De modo mais concreto: a programação da CEC-2012 conseguiu contemplar, na aceleração do nosso tempo quotidiano, o tempo longo inscrito nas suas instituições mais antigas e emblemáticas como a Sociedade Martins Sarmento e a Sociedade Musical de Guimarães, e o tempo curto do hic et nunc da actuação dos actores da Capital Europeia da Cultura?

Reflexões como esta, a que nos inclinamos a dar uma resposta positiva, mostram como, perante a fragmentação das elites, a desregulação e a conflitualidade dela decorrentes, e a aceleração das temporalidades das sociedades contemporâneas, é nosso imperativo ético – e não só objectivo científico –, desocultar, evidenciar e transmitir às novas gerações, a bondade dos carismas e dos “bens relacionais” (Bruni, 2010) inscritos no tempo longo de sociedades como a Sociedade Musical de Guimarães que hoje continuam a ser disseminados consistentemente nas suas relações inter-geracionais, sociais e pedagógicas. São os futuros possíveis dos nossos filhos que, como sabemos, estão também em jogo em estudos de caso como este.

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Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012

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