SINFOLUSA
A Sinfonia em Portugal
por Jorge Lima Barreto (1949-2011)
Livro de Alexandre Delgado, da colecção “Caminho da Música”
A edição musicológica em Portugal é escassa e então sobre a música portuguesa é absolutamente rara – não reconhecida ou acarinhada pelo regime político-cultural, assim apenas a persistência de algum autor mais convicto e com um esforço enorme pode de vez em quando oferecer-nos uma obra que conduza ao melhor conhecimento da (nossa) Música. É o caso do notável compositor e teórico Alexandre Delgado (AD) que neste opúsculo nos apresenta uma História da Sinfonia em Portugal.
O texto consiste em vários artigos monográficos sobre algumas das sinfonias mais importantes escritas por autores portugueses. O livro é dedicado ao saudoso Nuno Barreiros, um dos mais doutos investigadores da música do século XX, cujos textos dispersos foram alento para AD se lançar nesta epopeia. Devido ao facto, mil vezes reivindicado pelo autor, de a maior parte das nossas sinfonias não serem regularmente tocadas ou distribuídas em partitura, AD recorre a uma metodologia interessante: ordena teleologicamente uma série de sintagmas, de análise tão breve quão suculenta, complementada pela reprodução de segmentos da escritae assinaladas como exemplos em faixas do CD que acompanha o livro – o que nos dá parte do processo musicográfico e a possibilidade de ouvirmos a própria execução; procurando desvendar um elo estético, definir uma idiossincrasia e mesmo estabelecer retratos dos nossos maiores sinfonistas.
O termo sinfonia não é unívoco e sofreu uma enorme evolução desde a seu surto no século XVIII – pode ser uma abertura de ópera, um poema sinfónico, uma sinfonieta, ou, tout court, uma obra em grande escala para monumental orquestra – os seus movimentos são de número variável – no período clássico e no romântico foram criadas as mais notáveis sinfonias, embora em Portugal o género só tivesse vingado num período pós-romântico e se apresentasse como uma das formas mais importantes da nossa literatura musical nos tempos modernos. A sinfonia persiste como uma das mais grandiloquentes formas musicais, todavia numa acepção mainstream, jogo de convencionalismos, conspícuas insinuações nacionalistas, prodigiosas recuperações regionalistas, disciplinaridades arreigadas à mais rigorosa postura teórica – como na situação pósmoderna todas as premissas são válidas a sinfonia mantem-se viva, veja-se a sua prodigalidade nos EUA ou na Finlândia, entre outros.
No devir da leitura deparamos muitas vezes com uma sobrecarga de filiações de génese dos compositores portugueses a estrangeiros, com agudeza de percepção ou com certa sonegação de valores por nós considerados extraordinários (Mahler é um deles; Stravinsky é arrolado em situações de euforia prosaica, etc.). Também o epigonismo da produção sinfónica nacional se reflecte no tomo e se o seu âmbito temporal vai até ao fim do século XX, o enredo é solitário e separado das grandes revoluções da MÚsica Contemporânea (pós-serialismo, experimentalismo, electroacústica, conceptualismos avant-garde, e.a.), situando-se a postura de AD obrigatória e exclusivamente na modernidade e na retrospecção das suas origens. O olhar pedagógico perscruta o musicograma, o critério irrepreensível do bom gosto pauta a amostra discográfica e uma profunda e
maravilhante competência ilumina a análise. Por ordem cronológica, são avaliadas as mais distintas criações no género:
Começando por duas sinfonias de João Domingos Bomtempo (a 1ª e a 2ª, dos inícios do século XIX), de caracter classicista mas abençoadas pelo génio beethoveniano.
A sinfonia nº 1″, À Pátria”, é um ícone da Música Portuguesa – escrita em1894 pelo insigne pianista Viana da Mota, o compositor intenta levantar a épica dos “Lusíadas” num monumento sinfónico – relevante o tópico relativo à textura tímbrica que alegadamente anteciparia o conceito de melodia de timbres de Schonberg, bem como a denotação de factores do folclore português, que iria posteriormente epitomizar o nacionalismo da criação sinfónica.
Logicamente mais generosa na sua análise está a abordagem das quatro sinfonias de Luís de Freitas Branco, aquele que foi talvez o maior compositor português do século XX e que em definitivo impôs um sinfonismo especificamente português – “conciliação do erudito e do popular” e “reminiscência wagneriana até ao limiar do atonalismo” (na 1ª, de 1924); metamelodismo gregoriano na 2ª, de 1926; inovação técnica, neoclassicismo, arrebatamento estilístico na 3ª, de 1944; ultramodernismo e discurso dissonante na 4ª de 1952.
Seguidor do mestre Luis de Freitas Branco foi o carismático Joly Braga Santos – uma panóplia de seis sinfonias: na 1ª, de 1946, a “conciliação do neoclassicismo britânico e neo-realismo russo”: a 2ª, de 1948, que tem a ver com a criação do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional pelo controverso ministro António Ferro, desenhada como uma vasta e apoteótica forma sonata; a 3ª, de 1949, transpira o regionalismo alentejano; a 4ª , 1950, é um painel de referências eruditas e modernistas de Joly, com adjudicação do elemento coral; a 5ª, conhecida por “virtus lusitaniae” é a sua obra-prima – pelo fulgor da substância rítmica – cujo segundo andamento intitulado “Zavala” e inspirado nos marimbeiros moçambicanos desta localidade, pode ser considerado no seu perfeccionismo um cúmulo da nossa literatura musical. A 6ª,de 1972, num bloco contínuo, marca o mais aventureiro estilo do compositor pelas texturas dissonantes, as massas sonoras e preconiza, pela profusidade dos seus elementos, a pósmodernidade.
Fernando Lopes-Graça, génio do lirismo, o mestre do neo-realismo, o provedor das melodias tradicionais; foi escolhida a sua ” Sinfonia per Orchestra”, de 1944; aqui o labirinto temático ou a pura adopção de um auto pastoril transmontano fazem dela a mais “portuguesa” de todas as sinfonias.
Outros autores com criações relativas ao género sinfónico (Ruy Coelho, Francisco de Lacerda e o seu celebérrimo e belíssimo poema sinfónico “Almourol”; Frederico de Freitas, António Victorino d ´Almeida, Álvaro Cassuto, e.a., foram preteridos quiçá por critérios de gosto ou no arbítrio da selecção); há, acima de tudo, descobertas, ilações, correlatividades, de grande eloquência e momentos de superior congeminação que nos arrebatam para a audição das obras estudadas. A constrição estética induzida pela própria temática pode raiar por vezes o conservadorismo, mas o musicólogo Alexandre Delgado não se inibe ao dialecticamente vituperar o sistema político-cultural vigente desde Bomtempo e ampliado nos nossos dias pelas ignorância e indiferença e mesmo pela atitude censória perante a Música de Arte. Um livro estimulante cuja força semântica nos eleva ao amor pela música sinfónica portuguesa.