PRODÍGIOS DO PIANO

Cuidado com o futuro do Zé!

Em 2018, celebra-se em Malta a quadragésima conferência internacional da European Piano Teachers Association (EPTA), com o tema «Prodígios do Piano». Embora ainda não tenha visto o programa em detalhe, arrisco dizer que é mais do que pertinente falar-se desta matéria.

Os «prodígios do piano» existiram em todas as épocas da história deste instrumento. Permito-me, de modo informal e desorganizado, partilhar o meu ponto de vista em relação a alguns aspectos deste assunto sobre o qual – sendo eu pianista, professora, e mãe – tenho pensado muitas vezes.

É frequente vermos, na internet, vídeos de crianças muito pequenas a tocar, com competência, peças musicais muito difíceis e habitualmente tocadas por músicos mais velhos. Aos seis anos, o Zé já toca estudos de Chopin. Aos sete anos, já toca uma das últimas sonatas de Beethoven. O Zé é um prodígio. Há qualquer coisa de notável, de extremamente fora do normal, no facto de conseguir tocar tão bem música tão difícil. É tentador pensar «So, what?», ou desvalorizar estes fenómenos como se de uma banalidade se tratasse. São, não há dúvida, casos notáveis pela aparente discrepância entre a idade do executante e a dificuldade da música. Continua a haver «prodígios» que, como Mozart, surpreendem o mundo ao fazer, muito novos, aquilo que muitos adultos nunca conseguirão realizar. Portanto – ponto um – não desvalorizemos os «prodígios».

Daqui, passamos para assuntos mais controversos. Um deles é o do eventual sacrifício que estas crianças fazem para conseguir tais proezas. Poderão estar em jogo aspectos cruciais do seu crescimento e educação. Levanta-se, por exemplo, a questão das expectativas que estas crianças criam em relação a si próprias. Se eu sou o Zé, um prodígio, o mundo acarinha-me e aplaude-me, e vai ser assim para todo o sempre. Nada disso. O Zé está redondamente enganado. Se no tempo de Mozart havia pouca concorrência, hoje o mundo é outro. Ninguém vai ter «paninhos quentes» em relação ao Zé. Os pais do Zé ficam furiosos ao ouvir isto. O mundo tem que acarinhar o Zé, porque ele é diferente dos outros. O Zé cresce na expectativa de que tudo vai ser fácil, porque é um prodígio. O Zé cresce a achar que o mundo tem obrigação de lhe proporcionar indefinidamente oportunidades para ser aplaudido. O Zé chega aos vinte e cinco anos e não percebe porque não é ainda «head of keyboard» da maior escola do mundo, e porque não tem concertos diários no Carnegie Hall. Em vez disso, se quer pagar as contas ao fim do mês, o Zé tem que ensinar crianças sem talento, e tocar para amigos de vez em quando.

A culpa é da mãe, do pai do Zé, talvez também do professor do Zé. O Zé era um prodígio e, sendo assim, teria sido capaz de aprender a viver no mundo real, se os adultos à sua volta se tivessem preocupado com isso. Mas, para tal, era preciso que eles próprios se apercebessem do perigo. Infelizmente, a mãe do Zé, o pai do Zé, o professor do Zé, viram no prodígio a oportunidade de se realizarem num mundo difícil. Projectaram-se no Zé, e ao fazê-lo projectaram o desgraçado para uma realidade insuportável.

Há muitos pais de Zé por aí, mesmo quando os Zés são prodígios apenas aos seus olhos. É uma pena. Por outro lado, não faço ideia de como será lidar com um super-talento que executa, num instrumento, proezas extraordinárias. Talvez seja demasiado tentador investir em que o mundo o reconheça como único, procurando assim garantir o seu futuro.

Escrevi este texto porque tenho visto muitos Zés infelizes com as surpresas que a vida lhes traz. No caso do piano, há demasiados bons executantes, pelo que nenhum prodígio é suficientemente prodigioso para ter a vida garantida. Se leu este texto e se identifica com a mãe ou com o pai do Zé, não entre em pânico. Mas, por favor, trate-se, antes que dê cabo do futuro do seu filho!

Luísa Tender

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