MÚSICA NO SÉCULO XX PORTUENSE
por Filipe Pires
O retrato exaustivo de um período tão dilatado não cabe nas reduzidas dimensões de um artigo evocativo. Por esta razão se prefere fazer passear a memória pelas pessoas, pelos acontecimentos ou pelos locais que foram construindo o património musical da cidade, deixando-se conduzir apenas por aquilo, que se leu, aquilo que se vai ouvindo ou por algo do que se sabe.
Aberto o livro do tempo na página pretendida, ao romper do século XX depara-se-nos o teatro como pólo centralizador de praticamente todo o impulso musical existente no nosso País, então ainda reduzido a Lisboa e Porto. Teatro de ópera italiana, teatro de revista portuguesa, comédia, farsa e também música de salão e religiosa, esta última tantas vezes composta sobre árias favoritas de óperas!
A formação de compositores, instrumentistas e cantores tinha lugar apenas na capital, visando quase exclusivamente estes géneros musicais, de modo a satisfazer gostos longamente generalizados. Compositores portuenses, como Artur Napoleão (1843-1925), Manuel Benjamim (1850-1933) – primeiro português a compor música de acompanhamento para a projecção de filmes -, João Arroyo (1861-1930) ou Hernâni Torres (1881-1939) não fugiam à regra, alheios à existência de repertórios de outra natureza ou proveniência.
No entanto, o Porto tomara uma certa dianteira, em relação à capital, que já havia deixado extinguir a chama da renovação, ateada por João Domingos Bomtempo, mais de meio século atrás, como compositor, pianista, chefe de orquestra e fundador do Conservatório Nacional em Lisboa.
No início do século, o meio musical portuense encontrava-se dominado por uma figura de invulgar prestígio, que traçava, através de uma incansável actividade multifacetada, os rumos da vida cultural da cidade e imprimia novas forças ao País. Violinista, chefe de orquestra, director de coros, pedagogo, escritor e conferencista, Bernardo Valentim Moreira de Sá (1853-1924) não se limitou ao exercício de funções inerentes a tão específicas modalidades. Criou infra-estruturas sobre as quais assentariam as acções de formação e divulgação de repertórios e intérpretes. Nas últimas duas décadas do século anterior, havia fundado e dirigido instituições como uma Sociedade de Quartetos e uma Sociedade de Música de câmara, das quais sairia o “Orpheon Portuense“, que ainda hoje perdura. A partir de 1900, além da constituição de um quarteto de cordas, a que deu o seu nome e no qual participou ao lado da então jovem violoncelista Guilhermina Suggia, promoveu e dirigiu concertos sinfónicos, corais e de câmara, apresentou em Portugal alguns mais reputados solistas e conjuntos nacionais e estrangeiros, bem como a primeira audição, entre nós, de obras fundamentais dos maiores compositores mundiais. A acção desenvolvida por Moreira de Sá viria a culminar com a criação, em 1917, do Conservatório de Música do Porto, cuja direcção assumiu, a par da docência.
LUIZ COSTA
A obra de Luiz Costa
O imediato continuador destas iniciativas foi o seu genro e antigo discípulo Luiz Costa. Após a morte do sogro, sucedeu-lhe na direcção do Orpheon Portuense, com igual energia e dedicação, trazendo ao Porto grandes nomes da cena musical internacional, de entre os quais há que salientar Maurice Ravel, que aqui se apresentou como pianista e compositor.
Embora tendo nascido nos arredores de Barcelos, a vida profissional de Luiz Costa (1879-1960) decorreu no Porto, de cujo Conservatório de Música foi também Director, além de professor de Piano. Pianista do mais elevado nível, formador de uma notável plêiade destes instrumentistas, foi igualmente um compositor de grandes recursos técnicos e expressivos, autor de numerosas obras caracterizadas por acentuado cunho de serenidade lírica e impregnadas de inconfundível sabor português. A atmosfera campesina do Minho é traduzida de forma muito pessoal, não apenas nos títulos evocadores das peças para piano como também nas de canto. Algumas das suas canções identificam-se completamente com os textos poéticos que as inspiraram, da autoria de António Correia de Oliveira ou Teixeira de Pascoaes. A frescura e elegância da escrita de Luiz Costa, um leve toque de impressionismo e um culto intenso pela Natureza são reflexos da sua personalidade requintada.
Também natural do Porto, onde iniciou os seus estudos musicais, Óscar da Silva (1870-1958) pode ser considerado o último dos grandes músicos românticos portugueses. A sua vida agitada e aventurosa foi dividida, alternadamente, em períodos de fixação nesta cidade, em Lisboa e no Brasil. Pianista de grande carreira internacional, dedicou a este instrumento uma parte significativa da sua produção como compositor. Com 11 anos de idade, apresentou em público a sua primeira composição, um hino infantil, cantado por um coro de crianças, sob a sua direcção, no Palácio de Cristal. Desde então, e até à data da sua morte, prestes a completar 88 anos de existência, podem ser contabilizadas cerca de três décadas, durante as quais a sua actividade criadora teve lugar no Porto ou em Leça da Palmeira, onde viria a falecer. Herdeiro de tradições onde se fundem as influências de Schumann, Chopin e Liszt com as de um acentuado estilo elegante de salão oitocentista, a que não é estranho um espírito de opereta nacional, por seu turno derivada de modelos franceses e vienenses, revela-se sobretudo como um artista sensitivo, por excelência, privilegiando a intuição e a comunicabilidade imediata. Exemplo flagrante desta tendência são as “Dolorosas” para piano, porventura uma das suas obras-primas, compostas em 1910, sob a emoção e o profundo desgosto causado pela morte da mãe. Ao longo de toda a primeira metade do século, foram muito numerosas as homenagens que lhe foram prestadas, por ocasião de estreias das suas obras, realizadas no Salão Gil Vicente do Palácio de Cristal, no Ateneu Comercial ou nos Teatros Sá da Bandeira e Rivoli, durante as quais foi distinguido com o Colar da Ordem de S. Tiago e com as Medalhas de Ouro e Mérito Artístico da Câmara Municipal desta cidade. Em 1940, compôs o Hino do Porto, oficializado nessa data.
A EXCELÊNCIA DE CLÁUDIO CARNEYRO
Outro grande compositor, sem dúvida o mais representativo criador musical portuense do século XX, é Cláudio Carneyro (1895-1963). Nascido na freguesia do Bonfim, filho do grande pintor António Carneiro, passou praticamente toda a sua existência nesta cidade, exceptuando algumas viagens ou não muito longas estadias em Paris ou nos Estados Unidos da América. A sua viúva, Katherine, de nacionalidade norte-americana, actualmente com 104 anos de idade, dizia-nos que quase ninguém conheceu intimamente o seu marido, pois ele “nunca revelava o seu pensamento, mesmo às pessoas de família”. A estes traços de carácter, discreto e intimista, se deve, certamente, o lugar de relativa modéstia que lhe foi atribuído em vida e que só muito recentemente ultrapassou as apertadas fronteiras regionais atingindo a verdadeira dimensão de figura nacional. Contudo, desempenhou algumas funções de relevo, entre as quais as de Director e professor do Conservatório de Música do Porto. Foi também, durante breves anos, Director artístico do Emissor Regional do Norte. Em 1939, fundou e dirigiu uma orquestra de arcos na sua cidade-natal, tendo composto para esse conjunto inúmeras transcrições de outros compositores, além de obras próprias. O Governo português distinguiu-o com o grau de Oficial da Ordem de Santiago da Espada e o Orpheon Portuense atribuiu-lhe o “Prémio Moreira de Sá” pelo conjunto da sua obra. Por ocasião das comemorações do centenário do nascimento do compositor, a Câmara Municipal do Porto instituiu o “Prémio Bienal de Composição Cláudio Carneyro“, destinado a galardoar novos valores neste domínio.
Mais esquecidos têm ficado, até hoje, os nomes de três outros compositores, cuja abundante produção mereceria uma maior atenção por parte de intérpretes e organizadores de manifestações musicais. Por ordem cronológica, Berta Alves de Sousa (1916-1997), nascida na Bélgica, de família oriunda do Porto, veio muito nova para esta cidade, onde se radicou e desenvolveu a sua actividade como compositora e professora de música de câmara e piano no Conservatório. Nas suas obras, utilizou uma linguagem de cariz impressionista, onde avulta, igualmente, o emprego da politonalidade.
Vítor Macedo Pinto (1917-1964), licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu funções diplomáticas no Paquistão, antes de se consagrar definitivamente à Música. Embora só nos últimos 5 anos da sua existência se tenha fixado no Porto, de onde era natural, ocupou-os na docência de Composição no Conservatório local, exercendo importante acção pedagógica, alicerçada em convicções estilísticas de um salutar ecletismo.
O decano dos compositores portugueses é hoje Fernando Corrêa de Oliveira, nascido em 1921, autor de uma original técnica de composição, a que deu o nome de “Simetria sonora”, compreendendo as vertentes harmónica e contrapontística. Pode ser considerado o único discípulo de Cláudio Carneyro que seguiu a via da composição musical, a par da do ensino, ministrado principalmente na Academia Parnaso, de que foi fundador nesta cidade, abrangendo os domínios da Música, do Bailado e do Teatro.
AS NOVAS GERAÇÕES
À geração seguinte pertencem o autor destas linhas, bem como Álvaro Salazar e Cândido Lima, que ao ensino da Composição, no Conservatório e, mais recentemente, na Escola Superior de Música portuenses têm dedicado uma parte significativa da sua actividade. Os dois últimos fundaram, na década de 70, pequenos grupos instrumentais, sediados no Porto, que se têm consagrado ao estudo e à divulgação da música do século XX, com particular incidência na dos compositores portugueses. A “Oficina Musical”, dirigida por Álvaro Salazar, organiza anualmente Jornadas de música contemporânea, além de levar a efeito encomendas e publicações de obras. Cândido Lima é director do “Grupo de Música Nova“, que privilegia sobretudo a promoção dos mais jovens talentos, proporcionando-lhes mesmo uma primeira oportunidade de contacto público.
Surgido quase simultaneamente com estes agrupamentos instrumentais, o “Grupo de Música Vocal Contemporânea“, sob a direcção do barítono Mário Mateus, tem revelado nas suas actuações um elevado nível artístico, proporcionado pelo profissionalismo dos seus elementos. Com objectivos menos específicos e congregado num meio académico não musical, o “Coro da Faculdade de Letras do Porto” encontrou no maestro José Luís Borges Coelho um forte dinamizador de vontades, que se tem empenhado em atrair para a prática coral muitas dezenas de estudantes, com os quais obtém excelentes resultados artísticos.
HELENA SÁ E COSTA
A menção de pequenos agrupamentos instrumentais e vocais actuantes nos nossos dias não pode fazer esquecer outros que, em décadas anteriores, desempenharam papel importante na vida musical da cidade. Encontra-se neste número o “Trio Portugália“, que deu numerosos concertos durante os anos 50. Era composto pela pianista Helena Costa, por sua irmã, a violoncelista Madalena Costa, e pelo violinista Henri Mouton. Este conjunto alargava-se, por vezes, a um quarteto, contando, para esse efeito, com a participação do violetista François Broos. Os dois últimos músicos mencionados, embora não sendo portugueses, encontravam-se radicados no Porto, aqui tendo formado escola, que se projectou até hoje. Na década seguinte, o “Quarteto de cordas do Porto“, constituído por professores do Conservatório, foi um dos melhores conjuntos congéneres de que o País dispôs. Também ligado ao mesmo estabelecimento de ensino, o “Grupo Musical Feminino“, composto por alunas e fundado pela sua Directora, Stella da Cunha, inspirou ao compositor Cláudio Carneyro um grande número de peças corais, nos anos 30 e 40.
“SOCIEDADE DE CONCERTOS”
Neste “retorno ao passado” tem lugar uma palavra relativa às instituições promotoras de acontecimentos musicais, que ficaram conhecidas sob a designação de “Sociedades de concertos”. Actualmente em vias de extinção, a sua actividade passou a ser empreendida, sob forma pontual ou regular, por organismos de índole diversa, nem sempre directamente vinculados à cultura. Não foi assim, contudo, na primeira metade do século. Além do já referido Orpheon Portuense, duas outras sociedades, após um período áureo, conseguiram sobreviver no Porto, ainda que com actividade reduzida. São elas o “Círculo de Cultura Musical” e a Juventude Musical Portuguesa, sediadas em Lisboa, cujas delegações nortenhas foram lançadas, com enorme êxito, por Ofélia Diogo Costa e continuadas por suas filhas Maria Ofélia e Maria Inês. Menos duradoura, ainda que laboriosa, durante os anos em que aqui esteve aberta, foi a delegação da Pró-Arte, incentivadora de alguns valores locais, em início de carreira.
Como já foi dito, a propósito da acção desenvolvida, no início do século, por Moreira de Sá, as instituições por ele criadas constituíram os alicerces sólidos sobre os quais foi construída toda a vida musical da cidade. O Conservatório de Música, fundado em 1917, tem sido o viveiro de sucessivas gerações de músicos, criadores e intérpretes. Com o advento da “experiência pedagógica” dos anos 70, adquiriu uma autonomia pedagógica e curricular, quebrando a tradicional dependência dos modelos ditados por Lisboa. Outras escolas foram surgindo, como o “Curso Silva Monteiro“, fundado por Ernestina Silva Monteiro, discípula de Óscar da Silva, e continuado até hoje pela pianista Fernanda Wandschneider, que igualmente deu início aos Cursos e Concursos internacionais da Cidade do Porto. Mais recentemente, a “Escola de Música do Porto“, fundada e dirigida pela Profª. Hélia Soveral, garante um ensino de nível profissional qualificado.
O começo da década de 80 trouxe consigo o desdobramento dos níveis de ensino da Música em Portugal. Os Institutos Politécnicos das duas principais cidades do País integraram na sua rede escolar as Escolas Superiores de Música, conferindo graus de bacharelato e licenciatura. No Porto, este estabelecimento de ensino ampliou, já nos anos 90, a sua esfera de acção às Artes do Espectáculo. Actualmente, dispõe de uma esplêndida sala de espectáculos, muito activa, a que foi dado o nome de Teatro Helena Sá e Costa, em justíssima homenagem à ilustre pianista e pedagoga, filha de Luiz Costa e neta de Bernardo Moreira de Sá. A Profª. Helena Costa foi a primeira Presidente da Comissão instaladora desta Escola, além de continuar à frente do Orpheon Portuense.
MADALENA MOREIRA DE SÁ E COSTA GOMES DE ARAÚJO
Voltando ainda um pouco atrás, sob a égide do Conservatório e por iniciativa da sua Directora de então, Maria Adelaide Diogo de Freitas Gonçalves, nascera, em 1947, a “Orquestra Sinfónica do Conservatório de Música do Porto”, que transitaria, alguns anos depois, para a RDP, mas viria a sucumbir, em 1989, após lento estertor. Em seu lugar, foram aparecendo, em períodos de 4 anos, a “Orquestra do Porto“, sob administração de uma “régie” cooperativa, a “Orquestra Clássica do Porto” e, por fim, a “Orquestra Nacional do Porto“. Esta última, beneficiando de personalidade jurídica própria e tutelada pelo Ministério da Cultura, é susceptível da tão desejada estabilidade. Embora de excelente qualidade técnica e artística, nenhuma delas foi variando entre si, mantendo uma dimensão média de 50 músicos. O ansiado regresso à formação sinfónica, com um mínimo de 80 ou 90 elementos, só veio a concretizar-se em Outubro passado, a escassas semanas do final do século!
À ESPERA DA CASA DA MÚSICA…
Ao longo destes 100 anos, os locais habituais de realização de manifestações musicais de diversa natureza – concertos de orquestra, música de câmara ou solística, ópera e bailado -, foram escasseando progressivamente. O desaparecimento do Palácio de Cristal constituiu um rude golpe para a Cultura. Cinemas como Águia de Ouro, Júlio Dinis, Sá da Bandeira, Batalha ou Trindade viriam a fechar as suas portas ou a desviar para fins menos nobres os cartazes que ainda afixam. Nos nossos dias, honra seja feita a salas como as do S. João, do Rivoli ou do Coliseu, cuja intensa e diversificada programação garante à cidade a vida cultural de que é merecedora. Outro tanto há a esperar do Auditório Carlos Alberto, após a remodelação em curso. Finalmente, não pode ser esquecida a importantíssima participação das Fundações Engenheiro António de Almeida e Cupertino de Miranda, bem como de algumas igrejas na divulgação de um riquíssimo património que é, acima de tudo, nacional.
Em post-scriptum expectante, a Casa da Música em gestação será, porventura, o primeiro tema do próximo artigo evocativo…
Texto originalmente publicado na revista «Porto de Encontro», Julho de 2001.