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Mísia
Fado
Mísia (n. 18 de Junho de 1955 – m. 27 de julho de 2024) nasceu no Porto, cidade onde viveu até à adolescência tardia, durante a qual, por vezes, cantou como amadora nas casas de Fado. Cerca dos 20 anos, por motivos familiares instala-se em Barcelona e depois de vários trabalhos decide regressar a Portugal e a Lisboa, em 1991, para construir um repertório próprio dentro do universo do Fado.
Sem público latente para o seu estilo pessoal e contemporâneo, a Mísia – pioneira e espírito livre – coube-lhe abrir o seu próprio caminho. Começa então o que segundo Manuel Halpern se virá a chamar o Novo Fado:
… A delimitação temporal é sempre difícil. Mas, se nos forçássemos a marcar uma data para o início do novo fado, seria Março de 1991, época em que Mísia lança o seu primeiro álbum. Tudo o que está antes é uma espécie de pré-história. Manuel Halpern in O Futuro da Saudade (D. Quixote, 2004).
Contactou pessoalmente poetas e compositores, cantores autores, fotógrafos, designers, estilistas portugueses seduzindo-os com a sua visão do Fado. Agustina Bessa-Luís escreve para a sua voz o único poema que se conhece desta escritora. José Saramago, José Luis Peixoto, Lídia Jorge, Vasco Graça Moura, Mário Cláudio, Paulo José Miranda, Hélia Correia, Manuela de Freitas, Jorge Palma, Vitorino, Sérgio Godinho escrevem especificamente para a sua voz. Descobriu a sua sonoridade própria, gravando com o trio tradicional de guitarras e acrescentando por vezes os instrumentos que ouvia nas ruas do Porto durante a sua infância – o acordeão e o violino. Com este Fado ‘contemporâneo’ alcança os primeiros êxitos em Espanha, Japão, Alemanha e em Portugal onde é agraciada com a Medalha de Mérito (2005) e o Prémio Amália Rodrigues na Categoria Divulgação Internacional (2011).
Em França recebe a Medaille de Vermeil (2004), a mais alta condecoração da cidade de Paris, e é nomeada Oficier de l’Ordre des Arts et des Lettres de la République Française (2011).
A realizadora chilena Carmen Castillo realiza dois filmes sobre Mísia para o canal franco – alemão ARTE. A artista conceptual Sophie Calle convida-a para o seu projecto Prenez soin de Vous – representação francesa na 52ª edição da Biennale de Veneza (2007).
Com o álbum Tanto Menos Tanto Mais (1995) recebe em França o Grand Prix de l’Academie Charles Cros. Garras dos Sentidos vende na altura mais de 250.000 exemplares e foi distribuído em 62 países. Paixões Diagonais conta com a participação da pianista Maria João Pires. Canto, inspirado totalmente na música de Carlos Paredes e com a maioria de poemas de Vasco Graça Moura mas também de Pedro Tamen e Sérgio Godinho, obtém o Prémio da Crítica Discográfica na Alemanha. Em Drama Box participam Fanny Ardant, Ute Lemper, Carmen Maura, Miranda Richardson e Maria de Medeiros. No álbum duplo Ruas (2009) para além de Fado (Lisboarium) canta músicas e intérpretes de outros países (& Tourists) que simbolizam também o sentido trágico da vida que existe no Fado. Versões de Nine Inch Nails, Joy Division, Camaron de la Isla, Dalida, etc.
Em 2012, com Senhora da Noite Mísia regressa ao património musical do Fado Tradicional, num álbum onde pela primeira vez na história do género, os textos são exclusivamente escritos por mãos femininas – 13 fados, 13 mulheres. Escritoras poetisas, autoras, fadistas, cantoras. Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, Manuela de Freitas, Hélia Correia, Amélia Muge, Lídia Jorge entre outras. Para este disco, John Turturro realiza o videoclip de O Manto da Rainha (2011), um texto da própria Mísia.
Mísia é uma ‘voz personagem’ que protagoniza projectos alternativos à sua carreira no Fado. Exemplos dessa versatilidade são História do Soldado de Stravinski (Festival El Grec Barcelona, 2008), Os Sete Pecados Capitais de Kurt Weill e Bertold Brecht (Teatro Nacional São Carlos e Münchner Prinzregententheater, 2007), Maria de Buenos Aires de Piazzolla e Ferrer (Teatro Nacional São Carlos, 2007), assim como a sua participação no álbum Mediterrâneo (2013) do grupo barroco L’Arpeggiata. Em 2013 participa como actriz na peça O Matadouro Invisível de Karin Serres.
No ano de 2013 lançou o álbum conceptual Delikatessen Café Concerto (2013), com direcção musical do Maestro napolitano Fabrízio Romano e que conta com as participações de Ramón Vargas, Adriana Calcanhotto, Paulo Furtado (The Legendary Tigerman), Melech Mechaya, Iggy Pop e Dead Combo.
Já em 2014 Mísia estreia dois novos concertos. Tributo a Amália Rodrigues – 4ª Edição do Festival de Fado de Madrid. São 3 – Caymmi, Lupicínio & Cartola – 21ª Edição do Festival Porto Alegre em Cena, Brasil. A convite de Adriana Calcanhotto, Mísia canta a música destes 3 compositores brasileiros traduzida para a linguagem musical do Fado, com acompanhamento das três guitarras. No ano seguinte Mísia foi acompanhada pela Bremer Philarmoniker num repertório que abrange não só o Fado mas também os lieder de Schubert e em 2016 editou o seu mais recente trabalho, que para além de marcar o regresso de uma das melhores intérpretes de Fado, reúne pela primeira vez num só álbum as suas canções de eleição, escolhidas de entre o imenso rol de notáveis composições da artista.
Através de uma selecção feita pela própria Mísia, Do Primeiro Fado Ao Último Tango leva-nos numa viagem extraordinária pela sua já longa mas sempre brilhante carreira. Vinte e cinco anos depois da edição do seu primeiro disco, a história de Mísia faz-se de uma mão-cheia de grandes álbuns e de concertos invariavelmente memoráveis um pouco por todo o mundo. E depois há canções que se tornaram um pouco parte de todos nós. As que aqui se recordam no alinhamento desta colectânea são por isso parte da história do Fado dos últimos 25 anos.
discografia:
2016 – Do Primeiro Fado ao Último Tango
2015 – Para Amália
2013 – Delikatessen Café Concerto
2011 – Senhora da Noite
2009 – Ruas
2005 – Drama Box
2003 – Canto
2001 – Ritual
1999 – Paixões Diagonais
1998 – Garras dos Sentidos
1995 – Tanto menos, tanto mais
1993 – Fado
1991 – Mísia
PRÉMIOS E DATAS-CHAVE:
• “Le Coup de Coeur” da Academia Charles Cros, França (2015)
• Prémio Amália Rodrigues, Portugal (2012)
• Prémio Gilda, Itália (2011)
• Ordem das Artes e das Letras (Officier), França (2011)
• Prémio Renato Carosone, Itália (2010)
• Ordem do Mérito, Portugal (2005)
• Grande Medalha Vermelha da Cidade de Paris, França (2004)
• Ordem das Artes e das Letras (Chevalier), França (2004)
• Prémio da Crítica alemão dos Fonogramas, Alemanha (2004)
• Prémio no Festival International du Film d’Art et Pédagogique, França (2004)
TEATRO:
2016 – Giosefine. Um espectáculo baseado na “Carta desde Casablanca” de Antonio Tabucchi. Estreia mundial no Teatro Regio em Buenos Aires.
2013 – O Matadouro Invisível de Karin Serres. Estreia mundial no Teatro Malaposta em Lisboa.
MÚSICA:
2014 – São 3. Festival Porto Alegre em Cena, Brasil.
2013 – Mediterraneo. Estreia no Salle Gaveau em Paris, França.
2011 – Salto! Estreia no Ruhrtriennale em Bochum, Alemanha.
2010 – Our Chopin Affair. Estreia no Krakow Opera, Polónia.
2009 – Delikatessen. Estreia no Chiesa dello Spirito Santo em Sant’Antimo/Nápoles, Itália.
2009 – Brahms, Viola & Fado. Estreia em La Fenice em Veneza, Itália.
2008 – Mísia & her Poets. Estreia no Grec Festival em Barcelona, Espanha
2008 – The Soldier’s Tale. Estreia no Grec Festival in Barcelona, Espanha
2008 – Rendez-vous chez Nino Rota. Estreia no Diana Theatre em Nápoles, Itália.
2007 – Saudades Symphoniques. Estreia no Victoria Hall em Genebra, Suíça.
2006 – Maria de Buenos Aires. Estreia no Teatro Nacional de São Carlos em Lisboa, Portugal.
2005 – The Seven Deadly Sins. Estreia no Centro Cultural de Belém em Lisboa, Portugal.
CINEMA E MÚSICA:
2010 – Passione. Mísia é uma das personagens principais desta aventura musical através da música de Nápoles. Este filme dirigido por John Turturro foi apresentado no Festival de Cinema de Veneza em 2010 e deu origem a uma digressão internacional, da qual Mísia fez parte.
LITERATURA:
2011 – Les Fados de Mísia. Entrevistas com Hervé Pons
COLABORAÇÕES:
Isabelle Huppet (Actriz), Patrice Leconte (Realizador), Iggy Pop (Cantor e compositor), Agnès Jaoui (Actriz), John Turturro (Realizador), Gilbert & George (Artistas Plásticos), Bill T.Jones (Bailarina), Maria Bethânia (Cantora), Angélique Ionatos (Cantora), Adriana Calcanhoto (Cantora), Maria de Medeiros (Actriz), Amélia Muge (Poeta e compositora), Melech Mechaya (Banda), Dead Combo (Banda), Martirio (Cantor), Sophie Calle (Fotógrafa), Christina Pluhar (Música), Bela Silva (Pintora e ceramista), Carmen Maura (Actriz), Miranda Richardson (Actriz), Júlio Pomar (Pintor), Padma Subramanian (Bailarina), Arman (Pintor), Sérgio Godinho (Poeta e compositor), Ramón Vargas (Tenor), The Legendary Tigerman (Músico), Manuel Paulo (Músico e Produtor), Jorge Palma (Compositor e Autor), Vitorino (Produtor e Compositor), Ricardo Dias (Músico e Produtor).
Selecção de fontes de informação:
UGURU;
“Expresso”, 17 de Outubro de 1998;
“Público”, 15 de Outubro de 1999;
“DNA”, 22 de Julho de 2000;
“Público”, 19 de Novembro de 2004;
“Sábado”, 20 de Maio de 2005;
“Visão”, 26 de Maio de 2005;
Baptista-Bastos (1999), “Fado Falado”, Col. “Um Século de Fado”, Lisboa, Ediclube;
Halpern, Manuel (2004), “O Futuro da Saudade”, Lisboa, Dom Quixote;
Pons, Hervé (2007), “Os Fados de Mísia”, Ed. Oceanos.
Fonte: Museu do Fado, acesso a 15 de abril de 2018
Carta a Deus
Em 2021, a fadista Mísia publicou no seu perfil (Susana Aguiar), e republicou em 2024:
CARTA A DEUS
Querido Deus
Não sei se te lembras de mim e de um episódio passado há muito tempo, no Colégio Liverpool no Porto. Com treze anos e depois de ler “Porque não sou Cristão” (tu sabes qual o autor), com a frontalidade que ainda hoje conservo, fui direita bater à porta do gabinete da Madre Directora comunicar-lhe pessoalmente que já não acreditava em Ti.
A seguir deitei fora a minha coleção de santinhos de que tanto gostava , suas nuvens trespassadas por feixes de luz celestial.
Interna desde os seis anos, fiquei mais só a partir desse dia. Uma solidão cósmica, sem nenhuma luz ao fundo do corredor. Visualizava-me como uma astronauta pendurada pelo cordão da cápsula espacial, com o negro infinito do espaço como edredon eterno.
Três anos mais tarde li “O Mito de Sísifo” e então aí é que ficou tudo estragado entre nós.
Hoje percebo que a função da ideia de Ti teria sido uma útil consolação para o vazio afectivo daqueles anos e dos seguintes. Mas nesse tempo eu ainda não possuía a sabedoria necessária para aceitar que a verdade não é o que mais interessa, e que a ideia de Ti não tem um valor fixo.
Não sabia que a tua morte pode ser um enorme vazio, sobretudo para uma agnóstica como eu.
Sou hoje uma agnóstica não praticante. Pago promessas na ilha japonesa de Enoshima, a BentenSan – ciumenta deusa das gueishas, dos artistas e jogadores – e trago sempre comigo um minúsculo Santo António (versão homeopática) que faz tudo o que lhe peço: só milagres muito pequeninos e sempre possíveis.
De facto, nunca me refiz do luto de Ti.
Por isso a voz desta carta é ainda a daquela aluna que não quis mentir por omissão. Por isso, esta é uma carta íntima só entre tu e eu, um textinho sem grandeza ou sombra literária, sem pretensões deontológicas. Nada de Heidegger, Levinas, Nietzsche ou Coleridge e a sua suspensão da incredulidade.
Querido Deus, tenho tantas perguntas a fazer-te! Algumas desde os treze anos, outras desde ontem.
É verdade que depois de criar o mundo, te foste embora não vendo assim o que fizeste?
Nunca viste os tsunamis que nos engolem, os fogos que nos abrasam, os ventos que nos estrelam contra coisas duras, e os raios que nos partem?
Nem as crianças em fase terminal nos hospitais morrendo devagar, com olhos febris como lagos cintilantes?
Porquê tiveste tanta imaginação para células doentes e vírus mutantes?
Não sabes nada da falta de compaixão da humanidade, da tortura, das violações, da crueldade entre nós ? Do nosso sofrimento físico e moral ? “Heavy furniture”, querido Deus….
Talvez as minhas perguntas te pareçam impertinentemente ingénuas, mas – qual Lilith – fiquei para sempre cristalizada no estádio de estarrecimento primário que me provocou e provoca o tipo de lugar em que nos puseste.
Dirás que só te falo de grandes catástrofes e da barbárie mais extrema. Que as flores são lindas, que as joaninhas têm design dos sixties, que os passarinhos cantam e que as crianças sorriem sem motivo. Sim, são excelentes argumentos aos quais sou sensível, mas não chegam para acalmar mil dúvidas (algumas bastante quotidianas), acumuladas desde o Colégio Liverpool.
És capaz de assistir a um documentário da National Geographic sem tapar os olhos quando o bebé antílope mais frágil, de pernas a tremelicar imenso, vai ser mesmo comido?
E a calçada portuguesa, não podias fazer de maneira que continuasse a ser “tãaao linda!” mas menos letal de modo a não enviar para a traumatologia os idosos com osteoporose? E já agora, que também se pudesse andar com sapatos de tacão sem o risco de partirmos a moleirinha?
Não achas que evitar a segunda parte de Bambi teria sido uma boa operação de marketing para a tua imagem?
Por favor Deus, diz que sim! Não podias inventar um nome mais poético para Ranholas?
Temos também o caso da estátua do Pessoa no Chiado – ele tão pouco sociável – numa exposição sem defesa, entregue aos turistas de Badajoz. Achas que ele merecia uma coisa assim?
E pela Tua Santa Saúde, não podias aconselhar o João Braga a decidir de uma vez por todas em que tom quer cantar?
Desculpa a irrelevância e a provocação de algumas questões mas como muito bem sabes, fizeste-me irresistivelmente imperfeita. Poderia continuar a importunar-te com a minha curiosidade, mas com que sentido perguntar ad aeternum?
Não sei se algum dia e de que maneira me responderás. … Nem sei se ainda quero as Tuas respostas. Era de facto mais fácil até aos treze anos quando estavas dentro de mim e não precisava de te escrever.
Lenta genuflexão,
Mísia
Ps: Ah, já me esquecia!
Obrigada pelos pinguins, cães salsichas, peixinhos da horta e tremoços.
Pela maravilhosa Celeste Rodrigues, Yoshitomo Nara e Mahler.
Obrigada pelas palavras” cogumelo e borboleta”. (Delete “fronha” please)
Obrigada pelo milagre das cerejeiras em flor e pelos barquinhos de papel.
Ten points por Veneza! Yess!
Sincera e eternamente agradecida pelo meu fantástico gato Vírgula!
(Escrito em 2017)