Manuel de Almeida Carvalhais, natural de Amarante

Manuel de Almeida Carvalhais

Erudito

O maestro Dr. Manuel Ivo Cruz, nos seus trabalhos de valorização e promoção da música portuguesa, vêm, há vários anos, chamando a atenção dos estudiosos e pesquisadores a um nome pouco lembrado da pesquisa histórico-musical de Portugal: Manuel Pereira Peixoto d’Almeida Carvalhais (Amarante 1856-Paço de Cidadelhe, Mesão-Frio 1922).

Em 1996, através da editora Renascimento Musical, Porto, esse prestigiado idealista republicou, na coleção Documentos para a História da Música Portuguesa, um texto já antigo relativo ao historiador, assinado por Adolfo Salazar (1890-1958), autor de renome nos estudos musicais ibéricos e latino-americanos do passado (Revista Musical, Madrid, Agosto 1917).

Salientando a formação de Adolfo Salazar e considerando as suas obras como indispensáveis ao bom conhecimento da evolução musical espanhola e hispano-americana, o maestro Ivo Cruz justificou a reedição desse estudo pelo fato de ser ele um “índice da projecção internacional dos trabalhos do historiador português, tendo sublinhado a extraordinária importância das suas investigações.”

Já nessa ocasião mencionava que um próximo lançamento do inventário de acervos do Arquivo e Biblioteca do Paço de Cidadelhe, elaborado pelo Arquivo Distrital de Vila-Real, iria fazer “incidir uma nova luz sobre o ilustre musicólogo nortenho.” (Documentos para a História da Música Portuguesa VII: Adolfo Salazar, Un Historiador Musical Portugués – D’Almeida Carvalhais, Porto: Renascimento Musical, junho 1996)

De facto, Adolfo Salazar terminou o seu artigo com a seguinte afirmação, que hoje surpreende os estudiosos, uma vez que pouco ou nada se sabe a respeito de d’Almeida Carvalhais:

“El nombre de don Manuel Pereira Peixoto d’Almeida Carvalhais se mencionará en los anales de la musicologia al lado de los que son fundamentales en esa ciencia: Ambros, Baini, Westphal, de Cousemaker, Gevaert, Fétis, Brenet, Pedrell, Rolland, Wyzewa…”

A.A. Bispo

Manuel Pereira Peixoto d’Almeida Carvalhais nasceu em Amarante, no dia 17 de janeiro de 1856 e faleceu no Paço de Cidadelhe, a 22 de março de 1922.
Era descendente de família de antigas raízes, à qual pertenceu o fidalgo galego D. Gonçalo Gonçalves Ponte, que veio para Portugal à época de D. João I, vivendo em Ponte de Lima.
Outro de seus ancestrais. casado com Maria Sotello Priergo, foi senhor do Solar de Priego, na Espanha. Seu pai foi o Conselheiro e Juiz Desembargador Manuel de Almeida Carvalhais, senhor da Casa de Travanca (Santa Marinha do Zêzere).

Manuel Pereira Peixoto d’Almeida Carvalhais estudou no Liceu Nacional do Porto, dando continuidade a seus estudos na Universidade de Coimbra. Foi obrigado a dedicar-se ao património familiar, sobretudo à administração de sua casa em Mesão Frio, Paço de Cidadelhe. Coadunou, assim labores agrícolas com os seus estudos, desenvolvendo os mesmos em trabalho isolado e atmosfera retirada, alcançando grande erudição. Em várias viagens à Itália alcançou amplo conhecimento do repertório lírico e adquiriu materiais que enriqueceram o seu considerável acervo particular.

A Câmara Municipal de Mesão Frio deu início, no dia 28 de outubro de 2006, às celebrações dos 150 anos de Almeida Carvalhais. A solenidade teve lugar no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Mesão Frio. Esse edifício foi a residência de Almeida Carvalhais, o Paço de Cidadelhe, localizado na freguesia com o mesmo nome. O estudioso havia deixado por testamento os seus bens a sua filha Maria Augusta, de quem descendem os atuais proprietários da Casa do Paço de Cidadelhe.

O programa constou dos seguintes pontos:

Salão Nobre
16 horas – Conferência – Maestro Ivo Cruz
16h30 – Inauguração da Exposição “Vida e Obra D’Almeida Carvalhais”
Paço de Cidadelhe
18 horas – Partida para o Paço de Cidadelhe
18h30 – Momento Musical
19 horas – Porto de Honra

Da Mesa de Honra da sessão solene de abertura fizeram parte o Dr. Manuel Ivo Cruz, o presidente da autarquia de Mesão Frio, Marco Teixeira da Silva, Aldina Monteiro, Presidente da Assembléia Municipal de Mesão Frio, o Arquitecto Fernando Maia Pinto, do Instituto Português do Património Arquitectónico, José Vale Figueiredo, da Comissão Instaladora do Museu Nacional da História da Música e Maria Eugénia Pimentel, representante da família Almeida Carvalhais.

O maestro Dr. Manuel Ivo Cruz proferiu uma conferência sobre a vida e obra do erudito estudioso. Nessa ocasião, apresentou o projeto do Centro de Estudos de Almeida Carvalhais, e que se encontra em fase adiantada de implementação.

O presidente da autarquia, Marco Teixeira da Silva, considerou o significado de Carvalhais para a região e o país, salientando que este, no presente, deverá ser “mais conhecido no estrangeiro do que em Portugal”. Mencionou também a importância do legado e do vulto de Almeida Carvalhais para a Casa do Paço de Cidadelhe e o seu papel no desenvolvimento cultural e turístico do Douro, ao lado de suas paisagens e de seus bens arqueológicos.

Após a solenidade, na Casa do Paço de Cidadelhe, com a presença do Secretário de Estado da Cultura, Prof. Dr. Mário Vieira de Carvalho, do Governador Civil de Vila Real, António Martinho, e da Delegada Regional da Cultura do Norte, Helena Gil, realizou-se um programação musical com obras da época de Almeida Carvalhais. Das apresentações tomaram parte, entre outros, o pianista Domingos António, o flautista António Jorge Marques e os cantores Maria João Bastos, João Merino, Francisco Reis e Filipe Garcia.

Sessão do I.S.M.P.S. na Alemanha

No sentido de considerar nos meios musicológicos da Alemanha e apoiar os esforços do Dr. Manuel Ivo Cruz, o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa realizou, no dia 16 de dezembro de 2006, juntamente com o Instituto de Musicologia da Universidade de Colónia, na sede europeia da Academia Brasil-Europa, uma sessão dedicada a Almeida Carvalhais. A sessão fez parte do colóquio de encerramento do seminário dedicado ao tema “Espanha, Portugal e América Latina na Pesquisa Musical” e destinado à discussão de aspectos teórico-científicos e da história social de redes de pesquisadores no estudo da literatura cultural e musicológica relativa à Península Ibérica e aos países latino-americanos.

Adolfo Salazar

Com base na singular prognose de Adolfo Salazar, que inseriu o erudito português no rol dos mais renomados historiadores da música da Europa, deu-se particular atenção ao pensamento desse estudioso espanhol, à sua contextualização na História das Ideias, à sua inserção na história sócio-política espanhola e latino-americana e à recepção de suas obras no México e em outros países. Esses aspetos foram tratados na conferência de título “Adolfo Salazar e seu significado para o desenvolvimento do pensamento histórico-cultural espanhol no século XX”, proferida por Martina Krüger.

Para Adolfo Salazar, desde que em 1870 Joaquim de Vasconcelos, comparando o estado da história artística de Portugal com o dos demais países da Europa, se decidiu a empreender um primeiro ensaio de classificacão dos músicos portugueses, até que, em 1908, Manuel de Almeida Carvalhais publicou seus trabalhos sobre Inês de Castro, a musicologia portuguesa teria dado um passo considerável.

A ciência histórica da música não teria experimentado em Portugal um crescimento ordenado e progressivo, de modo que a afirmação se baseava na importância e riqueza excepcional de dados e das investigações que Carvalhais apresentava na sua publicação.

Carvalhais seria um erudito de estilo velho e severo, que em tais matérias seria, para Salazar, o único admissível. O seu sistema consistiria na mas escrupulosa e exata ordenação de dados e fatos, sem pretender um exame crítico nem considerações dedutivas de nenhum género. Em resumo, Carvalhais seria, para Salazar, um historiador e não um teórico. Descartando todo o elemento pessoal, fora de seu amor pelo exato, preferiria mostrar os fatos, deixando ao crítico toda possível dedução doutrinária. Os fatos deveriam falar por si próprios com a sua eloquência incontestável.

Inês de Castro na ópera e na coreografia italianas

Para a consideração de d’Almeida Carvalhais, as discussões se concentraram na sua obra Ines de Castro na ópera e na choreographia italianas, impressa em Lisboa, em 1908 (Typographia Castro Irmão), publicação rara, pouco difundida. Essa obra, segundo indicação na própria página-título, entendia-se como separata de um trabalho em manuscrito intitulado Subsídios à História da Ópera e da Choreographia Italianas, no século XVIII, em Portugal. Já essa informação indica o escopo amplo do seu autor e chama a atenção ao significado do seu trabalho para uma história da receção cultural e, sobretudo, para uma história das relações interdisciplinares e internacionais nas áreas da música, do teatro e da dança. Numa época na qual existiam relativamente poucas obras dedicadas à história da música portuguesa – como Adolfo Salazar salientou – o autor dedicara-se a um estudo especializado de um género e de uma época. Esse intento assume também particular interesse sob o aspecto global do desenvolvimento histórico da própria musicologia histórica no referente aos estudos do século XVIII e à fase da matéria ainda basicamente orientada pelo necessário levantamento de fontes documentais.

O próprio Manuel de Almeida Carvalhais estava consciente do valor do acervo que construíra:

“Possuidor de immensa bibliotheca dramatica, se não a mais rica, provavelmente a mais copiosa collecção de dramas musicaes que existe no mundo (cerca de 16:000 librettos) tendo, tambem amorosa e constantemente, desde os vinte annos de edade (hoje vou nos cincoenta e tres) recolhido quanto hei podido de obras e documentos sobre o theatro musical e choreographico, com particular respeito ao italiano, procurei, n’estes ultimos annos, nova recreação aos cuidados que exige a complexa lavoura de uma grande quinta n’esta região, e á contrariedade em que essa lavoura me põe obrigando-me a permanecer aqui durante quasi todo o anno (…)” (op.cit. 9)

O autor, apesar de salientar modestamente que sabia que o seu trabalho apenas fornecia subsídios à específica História da Ópera e da Coreografia, salientava a importância do seu contributo para o desenvolvimento dos estudos histórico-musicais baseados solidamente em documentação e dos estudos bibliográficos em geral:

“Resolvi aproveitar aquella collecção para escrever uns Subsidios à Historia da Opera e da Choreographia Italianas do Seculo XVIII em Portugal, baseado nos librettos mesmos e nos Indices e Memorias theatraes, publicacões coévas, portanto fontes seguras e insuspeitas, que possuo, subsidios estes meus que incluem a bibliographia dos librettos italianos impressos em Portugal, ou para Portugal, no mesmo seculo.

Esta bibliographia, que nunca se fez entre nós, realisaria o voto do egregio continuador do Diccionario Bibliographico Portuguez que, nas cartas com que me tem honrado, mais de uma vez me animou a escrevel-a.” (op.cit. 9-10)

A partir de um trabalho baseado em fontes documentais, Manuel de Almeida Carvalhais procurava, portanto, realizar um estudo histórico-musical fundamentado, corrigindo publicações anteriores e avançando com o estado dos conhecimentos, podendo, sob o aspecto desse seu escopo, ser considerado como representante de um entendimento científico da historiografia da música, do teatro e da dança segundo critérios singularmente avançados para a sua época.

“Quanto á Historia da Opera italiana em Portugal no referido seculo, procurei, quanto pude, illuminar onde erraram, e supprir onde faltaram, os escriptos portugueses que existem impressos sobre o assumpto, bastante errados, confusos e deficientes na parte que me tem merecido mais constantes estudo e pesquizas, a serie das operas representadas, ou simplesmente cantadas, isto é, com ou sem apparato scenico, em Portugal; e pobrissimos na choregraphia e respeitante musica.

Munido d’essas publicações em livros e jornaes, que revi cuidadosamente, e á vista tambem dos librettos e dos indices e annuarios, hoje rarissimos, que se publicavam em Milão e em Veneza, abraçando todos os theatros lyricos da Europa, ­ coordenando, confrontando e annotando, áquelles nossos escriptos bastante accrescentei e emendei, resultando-me a rica messe de cerca de quinhentas operas, que descrevo, executadas em italiano no Seculo XVIII, em Portugal, assim nos palacios e theatros da Côrte, como nos theatros publicos e nos pequenos palcos, ou casas de particulares; e as noticias que respeitam essas operas.” (op.cit. 10)

A intenção de realizar um trabalho histórico bem fundamentado se expressa também no cuidado que teve em indicar os critérios seguidos na consideração do material.

“A fórma de descripção que fixei, e cumpri, para cada opera sobre si, é a seguinte:
a) Transcripção inteira do frontispicio. (Descripção bibliographica do libretto)
b) Formato e numero de paginas.(Descripção bibliographica do libretto)
c) Texto. Se italiano só, se acompanhado de versão portugueza (Descripção bibliographica do libretto)
d) Numero de actos (ou partes) e de mutações scenicas.
e) Nome do librettista.
f) Nome do mestre compositor da musica.
g) Personagens e respectivos nomes dos cantores.
h) Logar da acção. Base (historica, etc.)
i) Nomes do scenographo, vestiarista, etc.
j) Noticias e anecdotas illustrativas sobre a opera.
k) Ciade, theatro e data em que teve logar a recita inicial, se a opera já fôra ouvida no Estrangeiro.
l) Lista chronologica das operas do mesmo titulo, ou assumpto, com os nomes dos compositores da musica, cidade, theatro; e data da primeira audição.” (op.cit. 10-11)

Como o autor menciona, havia concluído a descrição de 500 óperas e de grande numero de “balli”, também igualmente tratados, destinados para um tomo de cerca de “500 paginas compactas de in-4.° regular, ou de in-8.° grande”. Este tomo representaria a primeira parte do seu trabalho. O projetado segundo tomo deveria tratar das carreiras artísticas dos cantores, bailarinos e outros que intervieram nas récitas em Portugal, até o ano de 1800. Essa publicação poderia também ser ilustrada com os retratos que possuia, assim como com fac-similes de libretti raros. A publicação das óperas e dos bailados relacionadas com o assunto “Inês de Castro” compreendia-se, assim, apenas como sendo uma amostra da obra maior. (op.cit. 11)

Aspectos da disposição e método

A obra de Carvalhais, após a carta-prefacio e a elucidação das abreviaturas, compõe-se de duas partes. A primeira parte é dedicada a óperas e bailes de assunto inesiano e bibliografia dos respectivos libretti. Trata da ópera que motivou o seu trabalho, considera as óperas (sob o título Inês de Castro e sob o título Dom Pedro de Portugal), os bailes inesianos (também sob o título Inês de Castro e sob o título Dom Pedro de Portugal). oferece um quadro cronológico das óperas, outro dos bailados, um guia cronológico dos 133 números do seu inventário e as cidades onde foram representadas as obras. Na segunda parte do seu trabalho, dedicada a biografias, após tratar de libretistas, músicos, cantores e outros relacionados com a ópera que motivou o seu trabalho, considera os seguintes nomes: Angelo Talassi, João Paesiello, Vicente Praun; Jeronymo Crescentini; Luisa Gerbini; José Tavani; Caetano Neri; Domingos Caporalini; Miguel Cavanna; Miguel Bologna; André Rastrelli; Vicente Mazzoneschi e Domingos d’Almeida. Termina com índices de fatos notáveis e curiosos, de artistas célebres e intérpretes, assim como de apelidos.

Justiça histórica e patriotismo: Marcos Portugal

Nos comentários mais ou menos desenvolvidos que o autor faz com relação aos vários títulos registados, oferece subsídios para estudos de suas concepções. Assim, considerando a ópera Ines de Castro, com poema de J. Ferretti e música de Vincenzo Migliorucci e Marco Portogallo, levada à cena em Roma, no Teatro Valle, no dia 27 de novembro de 1810, comenta, com relação a Marcos Portugal:

“Quem ha ahi que se recorde de ter ouvido executar um trecho sequer de musica theatral do nosso Marcos?

É deveras ingrato, e anti-patrotico, o esquecimento em que estamos do maior dos nossos musicos, tantas vezes delirantemente applaudido, juntamente e por igual, com Cimarosa e com outros grandes mestres italianos. São, todavia, dignos de louvor os Senhores Joaquim de Vasconcellos e Ernesto Vieira, porque cada um, em seus Diccionarios de Musicos Portugueses, dão, acerca de Marcos, a mais longa noticia que póde caber em diccionarios, embora especiaes, como os seus.

Além d’esses dois longos artigos, apenas sobre Marcos Portugal existem algumas breves notas dispersas em jornaes, um capitulo nos Guerrilheiros da Morte, do Pinheiro Chagas, e um magrissimo folheto in 8.° Parece-me que nada mais, impresso, em portuguez.

Está por fazer o quadro que o Snr. Joaquim de Vasconcellos, entre paginas 132 e 133 do tomo 2.° dos seus Musicos Portuguezes, intitula de synoptico e chronologico das operas (dramaticas) de Marcos Portugal representadas em Portugal e no Estrangeiro, de perto de cem numeros, incluindo as replicas.

Eu, porque para a immensa voga, que teve o mestre, acho pequena a colheita de mais de 400 d’esses numeros por mim começada ha uma duzia de annos, ainda não tirei a lume o meu quadro, que ainda poderei augmentar, e que se acha rigorosa e seguramente fundamentado, em grande parte com os librettos mesmos e suas reimpressões.

Cada numero do meu quadro, ou, direi, do meu livro, do qual entretanto só tenho o manuscripto, consta de: titulo e genero da composição dramatica, numero de actos, nomes da Cidade e do Teatro, anno e estação, nomes dos interpretes, base e observações.” (op. cit. 41-42).

Camonianismo e a presença de Portugal na Europa

A atenção principal do colóquio do ISMPS foi dirigida a um aspecto da publicação de Manuel de Almeida Carvalhais que justifica o seu significado sob o aspecto interdisciplinar e na perspetiva de uma musicologia de orientação cultural. Tendo dedicado a sua obra a Antonio Augusto de Carvalho Monteiro pela sua Camoneana, considerando o seu estudo como contribuição a essa obra, o próprio autor sugere a perspectiva sob a qual a publicação pode ser considerada da forma mais apropriada, ou seja no contexto de Camões e no da literatura e do culto camoniano quanto a seu significado para a identidade cultural de Portugal e do mundo de língua portuguesa em geral.

Como o próprio autor menciona, o erudito mecenas a quem dedicou a sua obra possuía uma coleção dedicada a Inês de Castro e, entre outros documentos, cartazes e programas adquiridos em alfarrabistas, tais como um cartaz impresso de tragédia lírica de mesmo nome de Persiani, realizada em Florença, em 1841:

“Identico e raro documento, igualmente bem conservado, possue o mesmo opulento camonianista para as recitas do n.° 70 d’este inventario. Mede o cartas 1m,00 X 0m67. Faziam parte de um lote de cem ou mais cartazes, nenhum duplicado, de espectaculos de opera antigos, que pude descortinar e adquirir, ha muitos annos, no armazem de um alfarrabista, em Florença.” (op.cit. 79)

Inês de Castro: dimensão européia do assunto nacional

” (…)_ Qual seraa o coraçam / tam cru e sem piadade, / que lhe nam cause paixam ua tam gram crueldade / e morte tam sem rezam? / Triste de mim, inocente, / que por ter muito fervente / lealdade, fee, amor / ò Princepe, meu senhor, / me mataram cruamente!

A minha desaventura, / nam contente d’acabar-me, / por me dar maior tristura / me foi pôr em tant’altura / para d’alto derribar-me. / Que, se me matara alguem / antes de ter tanto bem, / em tais chamas nam ardera, / pais, filhos nam conhecera / nem me chorara ninguem. (…)” (Garcia de Resende, Trovas que Garcia de Resende fez à morte de dona Ines de Castro ,… (861) cancioneiro Geral de Garcia de Resende IV, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993; 301)

Surge como particularmente relevante e passível de análises de questões de identidade e de compreensão histórica que a obra de Carvalhais tenha considerado o episódio histórico de Inês de Castro. Essa amada do infante Dom Pedro de Portugal, morta por Alfonso IV e pelo Conselho de Estado, em 1355, e sepultada por Pedro como sua esposa na tumba real de Alcobaça, foi tratada em trovas “endereças às damas” por Garcia de Resende (1516), alcançando o seu significado nacional com o terceiro canto dos Lusíadas de Camões (1572). Os estudos literários já há muito se dedicaram ao tratamento das diversas dramatizações do tema em Portugal, nos países lusófonos e em outros contextos literários e culturais, tais como na França, na Inglaterra e na Alemanha.

(…)

“Tu só, tu, puro amor, com força crua, / Que os corações humanos tanto obriga, / Deste causa à molesta morte sua, / Comos e fora pérfida inimiga. / Se dizem, fero Amor, que a sede tua / Nem com lágrimas tristes se mitiga, / é porque queres, áspero e tirano, / Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas, linda Inês, posta em sossego, / De teus anos colhendo doce fruto, / Naquele engano da alma, ledo e cego, / Que a Fortuna não deixa durar muito, / Nos saudosos campos do Mondego, / De teus fermosos olhos nunca enxuito, / Aos montes ensinando e às ervinhas / O nome que no peito escrito tinhas.

(…)”

(Lusiadas, Canto III, CXIX, CXX)

É justamente como registo da extraordinária difusão do episódio de Inês de Castro na vida operística em vários países que reside o significado da obra de Manuel de Almeida Carvalhais. O trágico acontecimento, de tão destacada importância para a história portuguesa e uma cultura de identidade lusitana foi apresentado liricamente em numerosas cidades de vários países, sendo até mesmo adaptado a outras realidades e situações. Assim, o autor menciona a transformação de Inês de Castro em “Malvina” e a transferência do enredo para a Grã-Bretanha em representação levada a efeito na Itália. Nessa singular adaptação histórica, Alfonso IV transformou-se em Malcolm, Rei da Escócia, e a cena decorre parte no Palácio Real de Edimburgo e parte no Castelo de Malvina, em fins do século IX.

“Em Napoles, em 1851, a Censura não permittiu que o Maestro João Pacini pozesse em scena uma sua Ines de Castro, opera que escrevêra sob a poesia de Cammarano. Por isso, teve este poeta de mudar o titulo ao libretto, que ficou chamando-se Malvina di Scozia, argumento identico ao da heroina de Camões. E, sob tal titulo, e passando a scena de Coimbra para Edimburgo, e tornados Escocezes e Irlandezes os personagens, e feitas varias modificações na poesia, assim se imprimiu o libretto para a recita, como segue:

91. Malvina di Scozia. Tragedia lirica in tre atti, Da rappresentarsi nel Real Theatro di S. Carlo nell’inverno del 1851.

Napoli. Stabilimento Tipografico del Poliorama. Vicoletto Mezzocannone, n.4, p. piano. 1851.” (op.cit. 86-87)

Com música de Giovanni Pacini, a Malvina di Scozia foi levada no Teatro alla Scala de Milão. Nos seus comentários, o autor entra em maiores pormenores a respeito das relações da tragédia de Inês de Castro com a Inglaterra e que foram mais amplas do que esse exemplo poderia supor:

“Talvez pelo facto de existir uma tragedia ingleza intitulada Elvira, em duas edições de 1763 e 1778, em post-scriptum á qual o seu auctor, David Mallet, declara que deu a Inês de Castro o nome de Elvira, e se refere com louvor a Camões, querem alguns que seja baseado n’essa tragedia o libretto que serviu a Paisiello para a sua opera Elvira, representada no T.° S. Carlos de Napoles a 12 de janeiro de 1794. Posso assegurar que nada tem de commum no assumpto a tragedia recitada e a opera referidas. (…)

Por palpite tambem, alguns camonianistas, bibliographos, que na ancia de augmentarem as suas contribuições aos inventarios Camonianos, desprezaram o ver para crer, estão, por isso, em equivoco acerca de outras Inezes que nada teem que ver com a de Castro, por exemplo, e sem sahirmos da especie librettistica, as operas italianas dos títulos: Agnese, ou Inês, musica de Paer; Inês, musica de Guindani, etc. (…)

Ha, pois, mais Inezes na terra, e Pedros tambem; porque no mesmo engano ledo e cego estão os bibliographos camonianistas a respeito de d. Pedro, depois, cognominado ora o cruel ora, o severo e o justiceiro, de Portugal, que confundem com Pedro o cruel de Castella, contemporaneo do nosso.” (op.cit. 89-90)

Apesar dessas ressalvas, o deslocamento da tragédia de Inês de Castro, tão vinculada com a história política de Portugal e com o universo camoniano para outro país e outra língua dá margens a reflexões quanto a possíveis estruturas simbólicas inerentes ao episódio. Como discutido, tratar-se-ia de um singular caso de relacionamento entre estrutura e história; essa estrutura teria recebido a sua concretização específica na história portuguesa, estaria porém em condições de ser deslocada para outros contextos. Inúmeras seriam as possibilidades aqui de análises, por exemplo sob o aspecto psicológico, e grandes seriam as suas consequências para um assunto de tal relevância para a cultura lusa.

Os comentários de Carvalhais oferecem outros muitos subsídios para estudos de compreensão histórica. Um deles diz respeito à questão da dramatização de episódios históricos em bailados do século XIX. Citando um jornal italiano, raro, que adquirira na Itália (I Teatri, giornale Drammatico Musicale, e Coreografico, Milano), transcreve um comentário do bailado histórico Pedro de Portugal, de Salvador Taglioni, representado em 16 de abril de 1827 no Teatro Alla Scala:

“Não ha historia mais commovente por alguns respeitos, nem por muitos outros mais atroz do que a que pinta as accãos de D. Pedro e D. Inês, o mais bello episodio do poema de Camoens. (…) Mas esta historia, quanto bella e interessante se mostra no poema do grande Epico Portuguez, outrotanto difficilmente se presta a apresentar-se semelhante no theatro. Aquillo que n’ella constitue a parte de maior interesse, e dá a nota característica, não é tanto a violenta morte de Inês, quanto o caso a que foi conduzido D. Pedro pelo extraordinario amor pela rara belleza e pela indole suavíssima d’Inês.

D’este acontecimento, ou, mais precisamente, dos dramas escriptos sobre o assumpto, tirou o snr. Taglioni argumento para o seu baile, que elle quiz intitular historico, e por certo o teria podido fazer historico, e summamente poetico tambem, se na ardua empresa se tivesse sujeitado a desenvolver fielmente a pintura historica mantendo-lhe os factos e o seu caracter, coisa que um ousado e imaginoso choregrapho não teria julgado impossivel de executar. Mas Taglioni, apezar d’aquelle epitheto que deu ao seu baile, quiz aplanar o caminho reduzindo a modos communs uma tam suprehendente acção, não dispondo-a aos momentos dramaticos de alto interesse que ella podia inspirar, nem aproveitando-se dos grandes meios que offerece, nas composições mimicas, o theatro no qual tinha de represental-a; meios que as leis dramaticas, e a índole mesma dos espectaculos pantomimicos authorisam a usar livremente, embora sejam vedados á simples tragedia.” (op.cit. 122-123)

Significado da discussão para Brasil e para a Musicologia em geral

Durante o debate do ISMPS, considerou-se o significado de Camões e do episódio da “rainha depois de morta” na história cultural do Brasil, em particular sob o aspecto de questões de identidade cultural luso-brasileira. Com relação ao século XIX, lembrou-se que o assunto era tratado no ensino escolar brasileiro. Singular é o facto de que também no Brasil surge um vínculo de Inês de Castro com a Inglaterra: assim, Pedro II conhecia uma obra referente ao tema em inglês, de autoria de Richard F. Barton, tendo recebido um exemplar diretamente de Londres (Dom Pedro II e a Cultura, Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, 1977, 142).

Entretanto, a relevância da discussão relativa a Carvalhais é antes de caráter teórico, pois enquadra-se no atual debate relativo à assim-chamada Musicologia Histórica, um debate que vem adquirindo aspectos polémicos em vários centros. O que se critica, sobretudo, não é naturalmente procedimentos históricos na Musicologia, nem apenas uma Musicologia Histórica de orientação eurocêntrica que se limita exclusivamente a estudos histórico-musicais restritos às fronteiras geográficas da Europa e que relega – de forma absurda – toda a história da música erudita de países como o Brasil para a Etnomusicologia, cujos representantes, naturalmente, não a consideram. O que se debate é sobretudo uma Musicologia Histórica pouco refletida quanto às suas concepções teóricas e seus procedimentos. A afirmação “de que as fontes falam por si” sugere uma objetividade científica quase que positivista que impede que se aguce a sensibilidade para concepções condutoras do pensamento, sempre existentes, ainda que muitas vezes inconscientes por parte dos estudiosos.

No caso de Carvalhais, por exemplo, apesar de toda a sua orientação dirigida às fontes, essa inserção do pesquisador em determinados contextos culturais, as suas visões e concepções se manifestam no seu interesse pela Ópera Italiana ou nas suas observações relativas a Marcos Portugal. O descobrimento, a catalogação, a sistematização de documentos, por si, não podem ser considerados como objetivos últimos do trabalho musicológico, cujo escopo não é especificamente antiquário ou arquivístico. Representam etapa necessária, fundamental, mas apenas preparatória para análises mais profundas. Sob o aspecto da discussão atual relativa à assim-chamada Musicologia Histórica, a valorização de Carvalhais não pode ser posta a serviço de uma Musicologia restrita e pouco refletida historiograficamente e que está sendo criticada e superada nos maiores centros da disciplina da Europa e dos Estados Unidos. Ela pode, é verdade, servir de lembrança à necessidade de superação de problemas derivados de posições opostas, ou seja, da inapropriedade científica de edifícios teóricos construídos sem a consideração suficiente e crítica das bases documentais, tais como se constata não apenas em trabalhos de cunho histórico-ideológico como também, e sobretudo, em determinados complexos temáticos do âmbito da Etnomusicologia.

A principal relevância da revalorização de Carvalhais, porém, parece residir no fato de ter trazer mais uma vez à tona a questão da justiça histórica. Tem-se aqui um problema da ética na posição do pesquisador, no da reconstrução de edifícios históricos e na criação de imagens do passado. Por mais que se procure a objetividade, aspectos éticos estarão sempre envolvidos, consciente- ou inconscientemente nas escolhas temáticas, no peso dado aos assuntos e nos exames realizados. Somente um aguçamento da sensibilidade para essas questões e uma constante preocupação reflexiva poderão aqui abrir novos caminhos. A questão da justiça histórica e da ética na história vincula-se, portanto, à própria consciência ética do estudioso. Com isso, o redescobrimento de Carvalhais pode fornecer um impulso à questão que parece tornar-se cada vez mais premente para o trabalho científico: o intuito e o esforço incondicional de reconhecimento daqueles que realmente idealizaram, visualizaram, moveram ou criaram, e que, por não fazerem propaganda de si ou pelas circunstâncias não tiveram a presença nos documentos obtida por outros que muitas vezes apenas compilaram ou se aproveitaram de temas e iniciativas alheias, divulgando-as de forma mais eficiente. Uma pesquisa que se oriente apenas pelas “fontes que falam por si próprias”, e considere apenas jornais e publicações várias, folhetos e outros produtos impressos que hoje às vezes surgem de forma avassaladora, e uma prática científica que se oriente apenas pelo número de citações de autores em obras, somente poderá constatar divulgações, correndo o perigo de dar um aval científico e perpetuar nomes e visões de desenvolvimentos criados por meios propagandísticos e promocionais, contribuindo para a intensificação de modos de comportamento e práticas indignas do trabalho científico.

O maestro Ivo Cruz, revalorizando o nome e a obra de Carvalhais, oferece um exemplo de atitude modelar de estudioso de consciência que procura reconhecer valores e fazer justiça histórica, independentemente do fato de ser esse erudito não citado, não considerado nos meios especializados e praticamente desconhecido na história cultural. Comprova, com isso, que o princípio de que “as fontes falam por si próprias” deve ser considerado diferenciadamente. Em muitos casos, sobretudo em função das fontes secundárias do presente, trata-se, para um estudioso de consciência e de preocupações por procedimentos éticos, de considerar criticamente o que as fontes falam e até mesmo de agir “apesar das fontes”.

A.A. Bispo

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