LAPTOP
e a defenestração do imaginário
por Jorge Lima Barreto (1949-2011)
Num momento de anomia, implementação tecnocrática, detectamos a inversão e não apenas a perda de valores estéticos, taxonómicos e criativos no âmbito da música electrónica e na sua última expressão informática.
Grave é a delapidação do étimo “improvisação”: afinal qualquer fuga ao idioma, à gramática, fluxo desprovido de ideia, direcção ou estrutura, pode ser considerado improvisação, apologia do gesto efémero, sem imaginário ou conceptualismo como álibi para as incompetência e impotência composicional, …
A computer music é andróide, não é susceptível de ser executada exclusivamente por um músico e o seu gesto humano; corresponde grosso modo à união de duas inteligências, a natural e a artificial; assim a improvisação assistida por computador trata de elementos técnicos e simbióticos, floresta de interconexões Homem/Máquina.
O computador é uma tecnologia não específica e pode levar a cabo operações mentais (e.g. armazenagem; opção, estratégia; utilidade, operacionalidade); a memória computacional consiste no arquivo de notas, silêncios, ruídos, ritmos, madrigais, cantatas, sonatas, ragas, sinfonias, canções, e.a., e de sintagmas musicais das mais diversas índole e substância; trata-se de um labirinto fonográfico tecido de múltiplas direcções conceptuais e de inúmeras substantificações sonoras.
O computador substitui o operador musical humano, é, por excelência, um aparato de planificação tecnológica; estabelece conexões entre tecnopanóplias e instrumentos e programa relações sonoras elementares; o computador funciona de maneira estatística, recodifica, recolhe, classifica, processa e organiza o som digitalizado.
Estas máquinas calculadoras podem levar a cabo operações qualificáveis de mentais. Há um senão: o robot musical não tem emoções, nem sequer sonha; desconhece a aventura e, principalmente, o amor; e mais, não sabe o que é Música.
A prefiguração dos media como instrumentos deve ser considerada “suplementar”, casos do disco ou do rádio e, “complementar”, na dita “música assistida por computador”; não está em causa o uso do computador como instrumento musical; o agente, em processamento do evento sonoro da composição live electronic, sob muitos aspectos, pode bem ser o próprio improvisador que manipula esse seu aparato.
Desprezando o conceptivo compositor, o executante improvisa sobre matérias prefixadas em vários suportes: gira-discos, LP, CD, laptop, pode até improvisar-se musicalmente no sector da video art, ou em interacções on line, estas geralmente pusilânimes e massificadas…entre as inesgotáveis novas classificações de subtipologias, modas, ideossincrasias, está a corrente alcunhada “pósdigital”, um infradiscurso cuja matéria-prima são erros, defeitos, detritos, sonoridades imperfeitas de ordem técnica digital das próprias máquinas, do hardware e do software, a serem usadas como fluxo sintáxico.
A teoria do plunderphonic supera com grande aceitação da parte de muitos músicos e intelectuais, as questões éticas da apropriação sobre o argumento do livre arbítrio da criação artística e legitima o usufruto de todos os materiais musicais ou sonoplásticos disponíveis, indiscriminadamente.
Uma música indiscreta correlativa ao hip hop, ao techno ou ao house, sonoplastia da dance culture, proclama-se “música electrónica”, e recentemente com diletantismo, tende a vigorar o termo “acusmática”, qualquer coisa improvisada ou composta com matérias sonoras fixadas, exibindo muitas vezes o trivial da cena tecnoinstrumental da pop experimentalista e do scratch; non nova sed nova, i.e. “coisa que não é nova mas que aparece como tal”; o músico congemina próteses sonoras, espécie de artesanato e gestão electrónica, puras funcionalidade e medialidade; como as fotografias de Sherrin Levine sobre os nus de Edward Western, foto da foto.
Sendo assim qualquer software está inadvertidamente disponível para o desvio; edições cleptofónicas, pirataria sónica sortida, pornofonia, e.a.; afinal trata-se de um lapso terminológico pusilânime, ideologia da não-ideologia.
Não existe o acto de pura improvisação com os media instrumentalizados musicalmente; há tão somente a possibilidade de coabitação dos vocalismos e dos instrumentalismos acústicos e electroacústicos e, da parafernália, dispositivos ou controladores electrónicos analógicos e digitais.
No seu mais nobre sentido, a performance do músico/intérprete/compositor é o lado humano da computer music improvisada.
O reino dos DJs foi-se dilatando globalmente mas sofreu uma notória recessão perante a hiperracionalidade Operatória do computador propiciado musicalmente, um jogo empiricista e popularizado que descambaria na vulgata do laptop.
Impromptu na Era da Informática: expressão musical adjudicada ao computador, a improvisação entrou no âmbito do imaginário cyberpunk, e pulverizou-se na sua situação pósmoderna com clonagens , plágios, sobreposições, colagens, mudanças de estruturas rítmicas, ou de velocidades, ou de âmbitos texturais; derivas e outras atitudes de instrumentistas ou vocalistas artificiais, simulacros, que já não lidam com partituras escritas e impressas mas com o próprio material sonoro criado live no computador, normalmente no portátil (laptop); discursos que são sinapses instrumentais.
Como na parábola conceptualista: “desmaterialização da cultura material”.
A técnica do drone, figura contínua, com motivos legati, por vezes repetitivos, vem dos primórdios da música electrónica e hoje está trivializado no discurso da música de massas para laptop, à semelhança funcional do basso continuo no barroco e da rhythm section no jazz; a cronometria quadrada e binária subentende discursos melódicos fugazes, texturas tímbricas surgidas ad hoc, num lenocínio despudorado da máquina – a “música electrónica” das discotecas, a “música acúsmática” dos concertos de jazz e improvisada…
Inicialmente apelidava-se “groove” uma actividade improvisatória com o computador assumido como instrumento: duma parte o comando e a acção (teclas, rato e écran do computador), da outra, autodeterminação e controlo, liberdade de expressão estética.
Desenhando os sons ou esculpindo-os, pode-se sucessivamente modificá-los, transformar a sua imagem e obter variedades acústicas desconhecidas.
Depois, desde os anos 1980, com o sistema midi e a digitalização, a nova improvisação de cariz pop estilhaçou-se num âmbito pósmoderno com divagações poliscópicas, amálgama e concocção de delírios líricos, de variegados subestilo e subgénero tecnológicos, numa síncrese massificadora do Zeitgeist (avanço cultural no mundo).
Constelação de propostas de certo modo insólitas donde sairiam movimentos insulares e progressistas da novíssima música improvisada e da electronic live a culminar na massificação da “música electrónica” (termo usurpador popular e jornalístico para a música que recorre sobretudo ao laptop, entre outras parafernálias digitais e informáticas, actualizado no epifenómeno tecnocrático duma proclamada música improvisada “acousmatic”).
Nos finais do Século XX e desde o início deste Século XXI, com a massificação do computador portátil, o regime laptop surge hegemónico na ciberparafernália da nova improvisação.
Hoje vulgarizou-se – via um jornalismo acrítico e uma fruição pública sem valores estéticos – o termo “laptop”, depois, e/ou “acúsmática” (onde se validam todos os sons fixados como musicais, para designar a transformação dos sons em tempo real, uma atitude híbrida do improvisador e da sonoplastia do computador; ciberartesanato, normalmente debilitado pelo desconhecimento de operações de síntese e de génese do som; apropriando-se de programas prévios, simulação de manobras algorítmicas; todavia conhecendo uma progressiva popularização e sendo fruto apetecível do comercialismo pop, normalmente ao serviço da agiotagem de muitos coreógrafos, encenadores, e outros usurários da música.
Os laptoppers, prosseguindo a saga dos DJs, tornaram-se heróis da funcionalização no cinema, na dança, no teatro, na performarte e na instalação vídeo e multimediática.
Os termos historicistas “electrónica” e “acúsmatica” foram delapidados especialmente pelo pelo abuso progressivo do laptop – o computador fixo tem horizontes de recherche muito mais vastos e está conectado com o conceito de “música electrónica clássica” – agora, como que em contratartida, surgem grupos de índole pop e improvisada que quando recorrem à cenografia laptop se proclamam como “música acusmática” – da alegada e massificada “electrónica”, de caracter techno, à profusão de computadores portáteis que estão omnipresentes ao lado dos instrumentistas e vocalistas como recurso cosmético, decorativo, desviado da sua veracidade histórica e da própria representação culta do computador na Música.
Um violinista, um contrabaixista e um pianista podem assegurar um figuralismo rítmico melódico, harmónico e todo um florilégio de experimentos, independentemente da sua qualidade estética – mas a reunião de laptoppers improvisadores é incondicional pois as matéria, substancialização e discursividade não são de possível controlo semiológico; es get alles, tudo é válido, inclusivamente qualquer surpresa agradável num mundo do disforme.
O fenómeno trivializa-se em jogos infantis psicotecnicamente regressivos e domina afluentemente os mercados da improvisação pop, agora caucionados pela própria Academia que prepara, na sua vertente hipertecnológica da electrónica, não mais músicos e criativos, mas técninos e engenheiros, bricoleurs de rentabilidade económica imediata, sufragada pelas musobrocracia e meritocracia (protocolos, regimentos, canudos e prémios).
O sonho, o fantástico da intuição musical, os paradigmas da improvisação, da electrónica, da acusmática, a magia e a inventio, dissipam-se no artificio das manipulações tecnológicas do computador assumido como instrumento musical.
Porém, e com o maior optimismo, desenvolve-se revolucionariamente um situacionismo crítico e de clariaudiência, associado às viragens da dimensão estética da improvisação; finalmente, uma questão de gosto, pelo prazer de tocar e ouvir a Música; para ser amada pelo espírito aberto.
Jorge Lima Barreto
Publicado na Meloteca em 2009