Joaquim dos Santos
Composição
Joaquim Gonçalves dos Santos (13 de abril de 1936 – 24 de junho de 2008) nasceu numa aldeia de Cabeceiras de Basto, no norte de Portugal. Frequentou os seminários arquidiocesanos de Braga, onde iniciou os estudos musicais, que desenvolveu sobretudo sob orientação de Manuel Faria.
Do seu principal mestre recebeu os primeiros impulsos para a composição musical, de que resultaram algumas obras, ainda como estudante; mas desse contacto resultou, sobretudo, o gosto pela composição contemporânea, que implicou a exploração de novos e revolucionários caminhos musicais, mesmo se bastante distintos do mestre.
Ordenado presbítero e após breve passagem pelo Conservatório de Música de Braga, prosseguiu, a partir de 1963, os estudos em Roma, no Pontifício Instituto de Música Sacra, como bolseiro do Estado Italiano e da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1965 foi premiado, nessa escola, pelas suas composições, que foram executadas em concerto.
Durante a sua estadia em Roma, fez ainda o curso de direcção e interpretação polifónica no Conservatório de Santa Cecília. Foi nessa cidade que estabeleceu contacto estreito com a música de grandes vultos, de que se destacam Stravinski, Petrassi e Britten. Os estudo das suas obras, a audição das mesmas em numerosos concertos foram construindo a sua personalidade musical, a um tempo singela e arrojada, natural e sofisticada, clássica e inovadora.
Regressado a Portugal, tem levado uma existência simples, entre a leccionação musical a vários níveis e, sobretudo, a composição. Por temperamento avesso a todo o tipo de protagonismo, tem sido algo ignorado pêlos seus compatriotas. Por outro lado, o seu estilo absolutamente oposto a qualquer género de exibicionismo ou snobismo contrasta com o seu entusiasmo pelas inovações musicais, sobretudo do séc. XX. Isso permite-lhe juntar, na sua vasta obra, trechos de enorme simplicidade e profunda raiz popular com partituras elaboradas, ao nível da melhor produção musical contemporânea.
Das suas criações de maior vulto destaca-se um bom número de obras corais sinfónicas (Passio et mors D.N. lesu Christi secundum Lucam, Stabat Mater, Te Deum, Cantatas, etc.) assim como não menos significativo conjunto de obras de câmara (algumas com recurso as instrumentos menos usuais, como marimba, bandolim, bandolocelo, etc).
É também abundantíssima a sua produção coral, desde simples harmonizações de canções populares, passando por trechos litúrgicos de vários níveis de exigência, até grandes obras para coro, com acentuado poder descritivo e arrojadas soluções, que revelam considerável maturidade no conhecimento e domínio da técnica vocal específica, para além de uma capacidade expressiva extraordinária, com recursos relativamente simples.
Do conjunto já inabarcável da sua produção musical, poderia destacar-se o tratamento da orquestra, que demonstra de forma suprema na sinfonia «Roma Eterna». Possivelmente por ter crescido numa família em que o som da flauta acompanhava o dia-a-dia; talvez por essa infância ter decorrido num dos recantos mais bucólicos do Minho (de onde, aliás, continuam a brotar todas as suas criações); talvez também pelas influências musicais dos seus inspiradores (com saliência para Stravinski), é especialmente exemplar o seu tratamento dos sopros.
Por um lado, salienta-se a mestria com que introduz e combina os metais, que demonstra uma convivência de décadas, através da prática de direcção de bandas; por outro lado, sobressai sobretudo a beleza bucólica e simultaneamente arrojada com que joga com as madeiras, em continuação pessoal e inovadora de passagens típicas de Stravinski. Ritmicamente, para além do compositor russo, é clara a influência de Britten, que também deixou a sua marca em certa predilecção pela percussão.
Em obras coesas, perfeitamente unitárias e completas, consegue um estilo que acolhe, sem preconceitos nem discriminações, os contributos de diversas fases da história da música, desde o gregoriano à dodecafonia, sem a falsidade da mera citação, mas também sem estéreis subjugações a escolas ou estilos rígidos. De forma singelamente pessoal e única, deixando para trás academismos de todo o género, antecipou e prossegue, numa coerência rara, uma espécie de «pós-modemidade» musical, muito para além de qualquer modernidade forçada ou de qualquer classicismo anacrónico. É, pelo contrário, a sinceridade do seu pensamento musical que determina os recursos a utilizar, resultando disso obras claramente contemporâneas e, simultaneamente, naturais, evidentes, por isso acessíveis ao público com um mínimo de sensibilidade musical.
O seu «isolamento» numa aldeia da montanha portuguesa representou, durante muitos anos, a injustiça do esquecimento a que normalmente são condenados vultos culturais de envergadura. Contudo, isso permitiu também que Joaquim Santos mantivesse o entusiasmo puro da sua utopia musical, sem as contaminações que marcam o conturbado mundo artístico actual. Disso resulta uma atitude humana e musical que nos coloca constantemente em contacto com a origem simples do mais profundo daquilo que somos, sem artificialismos afectados. Simultaneamente, a sua música representa um sinal de esperança para um contexto de produção artística que parecia esgotado, desgastado com as suas próprias experimentações, sem nada mais ter a dizer, a não ser cantar a sua morte inevitável. Representa, por isso, um aceno importante para o futuro da música, como modo sublime de o ser humano se dizer a si mesmo e ao mundo que habita.
João Duque