Frederico de Freitas
Composição
Biografia por Adelino Gomes
São muitas as pessoas que terão cantarolado, pelo menos uma vez na vida, Rua do Capelão acompanhando Amália Rodrigues, Dulce Pontes ou Lula Pena. O fado, que faz parte da banda sonora do filme A Severa, é apenas uma das muitas dezenas de canções que Frederico de Freitas escreveu ao longo da sua vida profissional e que permanecem ligadas a um certo imaginário lisboeta cheio de Recrutas e sopeiras, de Raparigas de Alfama e de Arraiais de Santo António.
São raros os compositores portugueses que têm contribuído, de forma tão vincada, para a construção musical de uma imagem de Portugal, no seu caso a imagem da nação católica, cujas fronteiras permanecem inalteradas desde a Idade Média, e que protagonizou a assombrosa façanha dos Descobrimentos. Um Portugal rural e de povo honrado, onde as meninas eram costureiras e os rapazes podiam emoldurar Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
Obras como Ribatejo, a Missa Solene, a Suite Medieval, a Sinfonia aos Jerónimos ou o Hino Asas Atlânticas saíram todos da sua pena. Mas Frederico de Freitas também escreveu peças bastante mais ambiciosas e abstractas, que ligaram o compositor ao mais “sério” da tradição musical erudita, entre as quais uma ópera, e diversas obras de câmara e orquestrais, entre as quais se destacam o Concerto para Flauta e o Quarteto Concertante.
A facilidade que tinha para se mover indiferentemente na revista e na ópera, no Parque Mayer e no Teatro Nacional de São Carlos, ou para dirigir tanto as Orquestras Sinfónica e de Câmara da Emissora Nacional, como a chamada Orquestra Portuguesa, torna difícil a apreensão dos rasgos que definem a sua personalidade artística.
Os exemplos que ilustram esta dificuldade podiam ser outros: o mesmo regente que colaborou nas comemorações organizadas para a celebração do Estado Novo em 1940, o ano do duplo centenário, ou no “Concurso da Uva e do Vinho”, organizado pelo “Diário de Lisboa” e pela Emissora Nacional, dirigiu alguns anos depois a estreia portuguesa da “Sinfonia nº 5” de Dimitri Chostakovich no São Carlos, e primeiras audições no Porto de obras de Fernando Lopes-Graça – o “resistente” por excelência da música durante o Estado Novo.
O funcionário da Emissora Nacional (foi Segundo Maestro da Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional entre 1935 e 1974) esteve também por detrás de iniciativas bastante mais corajosas, como a Sociedade Coral de Lisboa (1940-1949) e a Orquestra Sinfónica do Porto (1949-1953).
Orquestrou A Portuguesa e Grândola Vila Morena e sendo, ainda, o compositor português de música sacra mais destacado do século XX, foi, ao mesmo tempo, um dos mais empenhados membros da Sociedade Portuguesa de Autores, em cuja fundação participou quando tinha 23 anos.
Tendo exercido a actividade de músico profissional durante todo o Estado Novo, não se pode dizer, contudo, que a sua actuação fosse ditada por imperativos políticos: foi funcionário público e participou em numerosos festejos propagandísticos, mas os que o conheceram afirmam que manteve sempre a sua independência e integridade.
Foi precisamente o filme A Severa – orgulhosamente publicitado à data da estreia, em 1931, como o “primeiro fono-filme português” – que tornou Frederico de Freitas numa das personagens musicais mais populares da época, premiando muitos anos de dedicação exclusiva e apaixonada à música (e que continuou por mais 50 anos).
Essa ligação ao mercado da música ligeira teve aliás consequências na apreciação da sua obra de cariz erudito, tornando difícil a sua categorização. É significativo que o adjectivo “ecléctico” seja o mais usado. Contudo, as suas composições foram saudadas, já na década de 30, como uma via intermédia que podia resolver o problema do isolamento a que tinham conduzido algumas das propostas mais radicais do modernismo musical.
O centenário tem servido para recuperar algumas das suas obras, muitas das quais não eram tocadas há décadas, mas deixou outras de lado. Vinte anos depois da morte de Frederico de Freitas, o grosso da sua obra musical continua por editar e, embora uma parte esteja disponível em gravações, pode afirmar-se que está ainda por conhecer.
Adelino Gomes, Público/Ípsilon, 15 de novembro de 2002, acesso a 06 de novembro de 2017