TIAGO HORA
ENTREVISTA
Produtor e musicólogo, autor de várias publicações, rubricas e argumentos para espetáculos musicais. Com uma intensa actividade no ramo da produção discográfica, assinando edições nacionais e internacionais, tem sido também responsável pela criação, direcção artística e produção de diversos concertos e espetáculos. É investigador do INET-MD da Universidade Nova de Lisboa, onde dedica as suas atenções ao estudo da produção discográfica.
Como começou a sua descoberta da arte dos sons?
Começou ainda muito novo. Cresci numa casa em que a música era uma presença constante, uma paixão que veio sendo herdada ao longo de sucessivas gerações. O meu bisavô tocava violino, não sei precisar com que grau de perícia e acção. O meu avô tinha uma actividade regular como regente coral em diversos coros de Vila Nova de Gaia, Porto e arredores, paralela à sua actividade profissional. O meu tio era um organista profissional de destaque e professor do Conservatório Nacional, e a minha mãe tinha também tido formação musical quando jovem. Portanto, havia um ambiente propício a essa descoberta, que leva aliás a que não consiga precisar ao certo quando despertou o meu fascínio pela a música.
Para mais, tinha um acesso ilimitado às teclas do piano, ou do harmónio (um instrumento de meados dos anos 60 do século XIX), que também tínhamos lá em casa, o qual ainda lá persiste. E a partir dos meus 5 anos comecei a estudar piano na Academia de Música de Vilar do Paraíso, o que viria também a cimentar, e a estruturar, claro, essa paixão.
Qual o primeiro momento em que se lembra de ter consciência de que a música era fundamental para si?
Creio que foi algo que sempre esteve presente nas minhas projecções daquilo que gostaria de fazer um dia. Talvez algures pelos 12 anos isso se tenha intensificado. Recordo de ainda pequeno ter essa ideia bem vincada, de que o objectivo seria a música. Mais tarde, ainda antes do ensino superior cheguei a equacionar outras paixões, mas a música sempre se sobrepôs.
Eu fiz os meus estudos de música paralelamente ao percurso escolar tradicional, o que, visto com os olhos de hoje, me permitiu um leque muito rico e interessante de valências académicas. Mas a música foi realmente a única área de actividade que sempre tive em mente desde muito cedo.
Que professores foram mais marcantes na sua vida artística?
Tive diversos professores que marcaram de uma forma mais ou menos evidente o meu percurso artístico e académico, inclusivamente não apenas da área musical.
No entanto, há sempre nomes que não só marcam directamente o nosso percurso, mas são referências muitas vezes ainda antes de termos o privilégio de poder ser seus discípulos. Ou aqueles que assumem um papel fundamental, tanto na vertente académica como humana, no sentido que a dada altura toma a nossa vida. No meu caso, os nomes de David Cranmer e Rui Vieira Nery são os mais marcantes.
Também num grau de menor continuidade lembro o impacte que tiveram nas minhas perspectivas as aulas e abordagem da professora Salwa Castelo-Branco, ou do professor Paulo Ferreira de Castro.
Por outro lado, há sempre referências com quem aprendemos e de quem nunca fomos alunos, mas gostaríamos de ter sido. Ou mestres de quem acabamos por absorver muito e que nos marcam muito ao longo do contacto pessoal e profissional. É o caso de José Luis Uriol ou Manuel Morais, por exemplo, que além de dois grandes amigos, sempre vejo como mestres no âmbito da interpretação de música antiga, por exemplo. E se formos mais longe, e pensarmos em ensinamentos que apreendemos de mestres dos quais não pudemos sequer ser alunos mas que nos legam muito da nossa formação, o nome Santiago Kastner e o seu legado influenciaram e espicaçaram muito o meu interesse desde que me comecei a dedicar à musicologia e até aos dias de hoje.
Que música ouvia na sua juventude?
Ouvia muita música erudita, desde sempre. Ao mesmo tempo sempre me interessei muito por Jazz, bossa nova e MPB, que desde muito miúdo sempre fizeram parte da banda sonora constante desde que me lembro de ouvir música. Pelo meio, ouvi muito Rock, Heavy Metal, música portuguesa, house, e as inúmeras variantes de todos estes nichos. Sempre gostei muito de conhecer bem o género musical, artista ou corrente estética que em dado momento ouvi. E além da qualidade artística, sempre me marcou muito a procura de edições de grande qualidade sonora.
Quando começou a florescer o seu lado investigador?
De investigador no sentido estrito da musicologia, apenas no final do ensino secundário e na transição para o superior. Mas creio que sempre tive um gosto natural para procurar, escrutinar e tentar saber mais sobre os assuntos, ou manias, que me iam surgindo desde a infância.
O facto de ser sobrinho de Joaquim Simões da Hora influenciou-o no sentido da Musicologia?
Influenciou-me sobretudo no sentido do que falava no início, da intenção sempre inabalável de fazer a minha vida no domínio musical. Claro que, por conseguinte, o enveredar pela área da musicologia advém em parte dessa influência, como de outras referências como sempre o foi para mim o trabalho do mestre Rui Vieira Nery. Mas foi sobretudo algo que surgiu do meu próprio interesse e que me fascinou num crescendo contínuo.
Quais lhe parecem as maiores dificuldades e vantagens que se colocam hoje aos investigadores portugueses na atualidade?
Antes de mais, é importante salientar que ser investigador, tal como ser pintor, músico, futebolista, seja o que for, exige talento. É preciso ter um perfil adequado, ter uma paixão específica pelo próprio acto ou processo, que a maior parte das vezes é muito enriquecedor, de pesquisar, interpretar, revelar. Isso para mim parece-me inquestionável. Daí que uma das primeiras dificuldades que me saltam à vista em relação à actividade de investigador em Portugal é a da credibilização que é dada à importância elementar do trabalho de investigação. E esse ponto de partida gera depois uma série de dificuldades que, muitas vezes, não se resolvem apenas com uma revisão de processos de atribuição de bolsas, ou maiores estímulos e subsídios para a investigação. Não. O problema está antes, no mesmo ponto onde está a origem de uma série de outros problemas que a sociedade portuguesa alimenta: a educação. É aí que tudo começa, na escola, em casa, na própria sociedade civil. É preocupante como ainda nos dias de hoje se delimita e condiciona tanto o futuro dos jovens. Têm uma diversidade incomparável de actividades diferenciadas, mas no final são raros os casos em que o talento e o interesse do aluno, do filho ou do jovem, não são suplantados por vontades alheias, muitas vezes acreditadas por um cânone social que ainda se mantém hoje em dia. Os músicos sofrem isso, os investigadores também, e muitas outras áreas. Quantas vezes um músico é questionado sobre o que faz, já depois de responder que a sua profissão é ser músico? O mesmo acontece muitas vezes com um investigador. E isto é um problema grave. Porque este quadro de desconhecimento e menosprezo empobrece essas carreiras, torna-as injustamente profissões de segundo plano aos olhos da sociedade. E essa é uma dificuldade. Sobretudo porque em Portugal temos investigadores do mais alto nível, em praticamente todas as áreas, e a musicologia não foge a essa regra.
Temos grandes musicólogos em Portugal, centros de investigação que se actualizam constantemente, jovens investigadores interessados e preparados, professores que são referências em cada uma das suas áreas de especialização à escala internacional em muitos dos casos. Portanto, temos esse cenário como uma grande vantagem, mas temos a falta de apoio cultural e social como desvantagem que se repercute em várias condicionantes. Uma das mais evidentes é a falta de uma maior articulação entre o resultado da investigação e a sociedade. E no caso da música essa lacuna não deveria existir de todo. Aí cabe também aos próprios investigadores assumirem uma consciência de maior abertura no seu próprio trabalho e na sua participação na formação e informação da sociedade, que pode e deve ser mais activa, interventiva e congregadora.
Por outro lado, há um crescente estimulo à publicação, mas muitas vezes não há a capacidade de fazer circular as publicações, às vezes até mesmo dentro do meio académico. E continuamos a não ter publicações periódicas dedicadas à música capazes de chegar a todo o público, seja pela natureza das mesmas, seja pela abordagem das temáticas ou pela falta de trabalho gráfico verdadeiramente actualizado e eficaz, e sobretudo pela falta de uma sociedade que tenha interesse em consumir esses conteúdos. Ou seja, voltamos ao início no que diz respeito às dificuldades. O problema começa na formação.
Em todo o caso, ao contrário do que possa parecer, creio que as vantagens superam as desvantagens, ou pelo menos abrem caminho para que se possam colmatar no futuro algumas dessas lacunas. Como disse, temos grandes professores, investigadores, bons centros de investigação, e temos também ainda muito que investigar no que toca ao património nacional, bem como no que diz respeito a diferentes linhas de investigação.
Qual considera ter sido, até à data, o momento mais feliz da sua carreira?
A edição do livro “Joaquim Simões da Hora: intérprete, pedagogo e divulgador”, que teve como ponto de partida a minha tese de mestrado em musicologia. Tanto do ponto de vista pessoal como académico foi o momento mais feliz até ao momento. E, depois há também alguns trabalhos discográficos que são verdadeiramente apaixonantes, e determinados projectos e produções de espetáculos que deixam saudade, claro.
Como era o ambiente musical em que nasceu o seu tio, Joaquim Simões da Hora?
Era muito parecido com aquele em que eu próprio cresci, na mesma aldeia, hoje vila. Na Madalena (Gaia) a vida musical centrava-se muito em dois pólos principais: a igreja e o orfeão da Madalena. Simões da Hora cresceu num ambiente muito fértil à prática musical porque o meu avô, Manuel da Hora, como já disse, dirigia vários coros, entre eles o da igreja, e o do orfeão a dado momento, a par com um coro que fundou, o Coral Madalenense, com o qual trabalhava muita música antiga, não apenas o barroco mais tradicional, que nos anos 40 e 50 já era algo irreverente, digamos, mas também alguma polifonia portuguesa do século XVI e XVII. O espólio de partituras dele e os programas que ainda se preservam afirmam uma selecção musical muito informada e pouco comum para a época, sobretudo para a actividade coral amadora num sítio recôndito como era na época a Madalena. Ao mesmo tempo o meu avô trabalhava no Porto, era director de uma importante companhia de seguros e, desta forma, tinha também uma visão mais cosmopolita. Daí que Simões da Hora, além de acompanhar muito o pai em concertos na Madalena e na zona do grande Porto, e Aveiro por exemplo, tinha também um contacto constante com o que se fazia na cidade do Porto e do centro gaiense. O meu avô comprava muitas partituras para estudarem ambos ao piano ou harmónio, que sempre existiram lá em casa, que ainda existem aliás. Daí que o meu tio nasceu e cresceu num ambiente muito propício para potenciar e alimentar o seu talento natural, o que rapidamente se refletiu no perfil de um jovem que desde muito cedo passou a tocar regularmente tanto no âmbito erudito (paralelamente aos estudos de piano no Conservatório), como sobretudo no meio da música ligeira, do jazz, da bossa nova e de novas tendências que começam a emergiu nos idos de 1950/60. Aos 15 anos já tinha um conjunto com o seu nome que fazia alguns concertos em bares e festas pelo Porto e Gaia. Aos 16 teve um programa onde se apresentava a solo ao piano, semanalmente, nos estúdios do Rádio Clube Português.
“Lá em casa havia um harmónio e a música nasceu naturalmente.” Esta citação de Joaquim Simões da Hora revela um ambiente em que já havia um gosto musical ligado à igreja?
Sem dúvida. Como disse antes, esse foi um dos contextos em que Simões da Hora cresceu. A casa onde nasceu e onde viveu até aos 20 anos era nas imediações da igreja local, o pai tinha uma sólida formação religiosa, fruto de em jovem ter ingressado no Seminário de Vilar (Porto) e da actividade de regente coral que exercia. Daí que rapidamente esteve exposta à música de igreja e à sua prática regular.
Pode-se dizer que Antoine Sibertin-Blanc e Santiago Kastner foram as personalidades mais marcantes na carreira de Simões da Hora?
Como mestres, sim. Em vertentes distintas, mas complementares. Sibertin-Blanc mais no sentido da prática organística, Santiago Kastner na interpretação da música antiga e do conhecimento histórico organológico e teórico. Mas além dos mestres, depois havia um talento, uma intuição e sensibilidade e destreza naturais que distinguiam Simões da Hora. Aliás, atributos esses que o próprio Sibertin-Blanc identificou e valorizou desde a primeira hora, como o próprio deixou testemunhado num pequeno livro publicado em 2006, sob a coordenação de João Vaz e António Duarte, quando se assinalaram 10 anos após a morte de Simões da Hora.
Como bolseiro da Gulbenkian, Joaquim Simões da Hora estudou em Bruxelas. Já foi estudado o papel da Fundação na renovação da atividade organística em Portugal?
Sim. Estudou no Conservatoire Royal Flamand de Bruxelles, com o mestre Kamiel d’Hooghe, onde aprofundou os seus estudos na interpretação histórica.
Não conheço trabalhos sobre o papel da Fundação Gulbenkian nesse aspecto, papel esse que foi fundamental, tanto na realização de centenas de concertos ao longo de sucessivas temporadas, como pelo patrocínio regular que concedeu a inúmeros restauros, sobretudo ao longo dos últimos 30 anos do século XX. Muitas vezes impulsionados pela actividade de Simões da Hora, como acérrimo defensor da recuperação do nosso património organístico. Ele próprio foi consultor de vários desses restauros, nomeadamente o grande restauro que se fez em São Vicente de Fora entre 1992 e 1994.
Joaquim Simões da Hora foi um grande intérprete e divulgador da música portuguesa antiga para órgão. Como ouve hoje as suas interpretações?
Sempre com renovado interesse. Era um intérprete fabuloso.
Há sempre algo de novo nas suas interpretações. Isso é um dos segredos de um grande intérprete. As subtilezas que muitas vezes só encontramos após repetidas audições de uma mesma gravação. Isso acontece muito com ele. E além disso, temos a sorte de ter duas edições discográficas, ambas editadas pela Portugaler, que atestam a sua qualidade de intérprete exemplar em concerto. O disco mais recente que produzi e lançamos na Portugaler no final do ano passado, Joaquim Simões da Hora In Concert, contém interpretações fabulosas, e além do mais reúne concertos de diferentes momentos da sua carreira, o que é ainda mais enriquecedor para o ouvinte, e para a difusão do seu legado.
Durante quase duas décadas, Joaquim Simões da Hora foi professor de Órgão no Conservatório Nacional. Que frutos realça desta sua atividade pedagógica?
O principal fruto foi a criação no Conservatório Nacional de uma verdadeira, actualizada e moderna escola de órgão, ao nível de alguns dos melhores centros europeus da especialidade. Isto só acontece quando Simões da Hora se torna professor do Conservatório. Ele acaba por dar um impulso incomparável, seguindo um caminho que já tinha sido despoletado pela acção de Antoine Sibertin-Blanc no Instituto Gregoriano, e contribuindo assim para a criação de uma nova tradição de escola organística em Portugal. Entre os discípulos de Simões da Hora no Conservatório destaca-se Rui Paiva, entre outros. Lembro também a Ana Paula Mendes ou o Pedro Crisóstomo. E há depois organistas que não estudaram formalmente com ele, mas que ou frequentaram cursos de aperfeiçoamento sob a sua direcção, ou tiveram contacto privilegiado com ele, e que acabam por ser em parte seus seguidores. O caso mais evidente é o do organista João Vaz.
Mas ainda voltando ao Conservatório, creio que o legado que Simões da Hora deixou para o curso de órgão nessa instituição é inequívoco, sem precedentes e sem continuidade directa nessa instituição.
Com Manuel Morais, Rui Vieira Nery e Maria Fernanda Cidrais, Joaquim Simões da Hora fundou as Semanas de Música Antiga Ibérica e as Semanas Internacionais de Música Antiga, que trouxeram a Portugal Jordi Savall, Ton Koopman ou René Jacobs. Que impacto provocaram estas personalidades nos participantes das semanas de música?
Foram momentos verdadeiramente reveladores. Não apenas para os participantes mas também para os próprios docentes, organizadores e os convidados. Houve muita troca de influências e ideias entre Jordi Savall e Joaquim Simões da Hora, por exemplo. E entre o último e Koopman, claro. Um impacto muito grande tanto em alunos como na comissão portuguesa, que no entanto já tinha um conhecimento sólido dos nomes que estava a trazer a Portugal. Aos nomes que citou podemos acrescentar também os irmãos Kuijken, Mark Brown ou Monserrat Figueras, entre muitos outros que marcaram presença em diferentes edições. E houve uma grande reciprocidade, alimentada também pelos contactos e convívio prévio, nomeadamente entre o Manuel Morais e o Jordi Savall que já se conheciam desde meados de 1970, quando ambos estudavam na Schola Basiliensis. Estas Semanas tiveram a primeira edição em 1978 e a última em 1987 e foram fundamentais para estimular o movimento da música antiga emergente em Portugal nessa altura, por uma geração encabeçada por Simões da Hora e Manuel Morais, entre outros nomes. A adesão dos alunos foi sempre em crescendo. A par destes cursos de aperfeiçoamento apenas se contavam os Cursos de Mateus, mas que não tinham esta especificidade tão marcada da música antiga.
Quais os compositores que ouve mais?
É uma nomeação difícil de fazer. Sempre ouvi com alguma frequência diferentes compositores de diferentes campos históricos e musicais. E também intérpretes, que é algo que nos esquecemos um pouco e que na maior parte muitos de nós fazemos com grande naturalidade. Quando nos damos conta seguimos muitas vezes as nossas escutas mais pelos intérpretes que mais apreciamos, do que pelo compositor específico.
Depois, passo muito tempo a ouvir a música que a dado momento estou a trabalhar num projecto discográfico. Isso leva dias, semanas às vezes. Pelo que condiciona aquilo que estou mais tempo a ouvir.
Mas centrando a resposta em compositores, de uma forma muito sintética e pragmática, aqueles que mais aprecio e que poderia colocar num mesmo patamar nesse sentido do gosto e não tanto da frequência da escuta são Händel, Bach, Buxtehude, Debussy, Ravel, Joly Braga Santos, Vaughan-Williams, Elgar, Delius, Schumann, Brahms, os compositores antigos ibéricos de uma forma geral, mas destacaria Cabezón, Cabanilles, António Carreira, Pedro de Araújo, Andrés de Sola, Carlos Seixas. Mas estas listas são sempre um pouco injustas e ingratas, claro está. Falta sempre algum nome, alguma obra específica. Há muita música gravada, muito boa, com gravações que por vezes fazem valer a pena determinado compositor, que antes não escutávamos da mesma forma. É um mundo fascinante este processo da obra, interpretação, gravação e escuta. E o mais surpreendente é sabermos que apesar da quantidade monumental de gravações que hoje em dia existem e às quais temos acesso, há sempre algo novo para gravar que não deixa de nos surpreender. E isso pode ser uma obra desconhecida até então, ou mesmo uma interpretação reveladora de uma obra já bem conhecida.
Investigou o Orpheon Portuense. Que contributo deu o Orpheon à música no Porto entre 1881 e 2008?
Investiguei sobre o Orpheon Portuense entre 2012 e 2014 a convite do CITAR da Universidade Católica do Porto. Para dizer a verdade, quando comecei esse trabalho desconhecia a grandiosidade do legado do Orpheon. Foi uma instituição fundamental na vida portuense e portuguesa ao longo de cerca de 90 anos. Desde a sua fundação até meados da década de 1970 o Orpheon Portuense tornou-se, a par com o Círculo de Cultura Musical em Lisboa, a principal sociedade organizadora de concertos em Portugal. A partir da década de 1970 a actividade do Orpheon começou a regredir, a encontrar diversas dificuldades de ordem financeira e organizativa. Foi uma sociedade de concertos que teve como principal fundador Bernardo Valentim Moreira de Sá, grande mestre, que estudou com Joseph Joachim em Leipzig. Aliás, foi Moreira de Sá o obreiro da criação do Conservatório de Música do Porto, entre outras várias iniciativas de destaque. Mais tarde a direcção viria a estar ao cargo do pianista e compositor Luís Costa, genro de Moreira de Sá, e depois da grande pianista Helena Sá e Costa, filha do primeiro e neta do segundo. Ou seja, uma instituição dirigida ao longo dos seus 127 anos em regime familiar. Nos primeiros anos a actividade da instituição centrou-se mais em concertos de profissionais e amadores, associados no pleno conceito orfeónico, entre eles a jovem Guilhermina Suggia. No entanto, a partir da segunda década do século XX o Orpheon viria a tornar-se um sociedade organizadora de concertos com artistas convidados. Artistas de topo como Backhaus, Ravel, Pablo Casals, Alfred Cortot, Kempff, Claudio Arrau, Walter Gieseking, Arthur Rubinstein, a Orquestra Filarmónica de Berlim, Wanda Landowska, Nathan Milstein, entre uma lista interminável de grandes nomes. Entre as décadas de 1920 e 1960 o Orpheon teve uma programação de causar inveja a qualquer grande sala. Depois começou a encontrar maiores dificuldades e acabaria por ter uma actividade mais pontual ao longo dos anos 80, com um último concerto em 1993. A sociedade em sentido institucional só acabou, no entanto, em 2008.
O seu legado e importância para a história da música em Portugal é riquíssimo, e a bom tempo a Casa da Música assegurou a manutenção e preservação do espólio, o que permitiu condições privilegiadas para que se levasse a cabo grande parte do trabalho de investigação que se reflectiu na publicação em livro que foi lançado em Dezembro de 2014, sob edição da Universidade Católica Editora. E, no meu caso particular, foi um trabalho que me deu um enorme prazer.
Colaborou com o CITAR no “Espólio Manuel Ivo Cruz”. Qual o contributo de Manuel Ivo Cruz para a Música erudita em Portugal?
Manuel Ivo Cruz teve uma actividade importante sobretudo enquanto grande maestro de ópera, com uma sólida carreira internacional, a par com uma acção importante como dinamizador da vida musical portuguesa, através da criação de diversas iniciativas de divulgação e programação musical, entre elas o Renascimento Musical que editou em partitura diversas obras inéditas de compositores portugueses. Além disso, era um coleccionador compulsivo. Coleccionava quase de tudo. O meu trabalho em torno do seu espólio foi sobre a música manuscrita portuguesa e brasileira, e daí resultou a publicação do catálogo da minha autoria em 2013, pela Universidade Católica Editora. Esse catálogo ilustra bem a diversidade de fontes que o seu espólio compila, mas uma visita à Biblioteca Manuel Ivo Cruz nas instalações da Universidade Católica do Porto, na Foz, vale muito a pena para se ter um retrato mais apurado da sua colecção. Em Outubro deste ano, nos dias 12 e 13, terá lugar uma jornada precisamente dedicada ao maestro Manuel Ivo Cruz e ao seu espólio, nessas mesmas instalações. Vale a pena aproveitar essa oportunidade para visitar o espólio.
Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia”. Foi comissário desta exposição, instalada na Biblioteca Pública Municipal do Porto e no Museu Nacional da Música em 2015. De que modo o compositor e o poeta foram importantes um para o outro?
Fui comissário dessa exposição, que na verdade ainda espera a instalação no Museu da Música Portuguesa, pois tem sido adiada. Espera-se que seja para breve. Para breve está também uma edição em livro em torno desse diálogo. Em princípio no final deste ano estará nas bancas. Por enquanto, não posso adiantar mais sobre esse assunto.
Sobre Eugénio de Andrade e Lopes-Graça, creio que ambos foram importantes para a cultura portuguesa de uma forma muito particular, com identidades artísticas marcantes e incomparáveis.
Lopes-Graça foi um compositor que trabalhou como ninguém a composição de canções sobre textos de poetas seus contemporâneos. Nesse sentido, quando olhamos para aquilo que resultou artisticamente do trabalho conjunto entre eles, vemos que a poesia dos três ciclos de Eugénio que Lopes-Graça musicou, As Mãos e os Frutos, Mar de Setembro e Aquela Nuvem e Outras, gerou um ciclo fundamental entre a escrita poética original, a música, e a difusão de ambas. Na verdade, nenhum dos três ciclos de poemas foi escrito para que fosse posto em música. Essa iniciativa partiu sempre de Fernando Lopes-Graça, posteriormente à publicação dos poemas de Eugénio. E em diferentes momentos. O primeiro ciclo, sobre uma selecção de poemas do livro As Mãos e os Frutos (1948), é composto em 1959, depois Mar de Setembro (1961) em 1962 e Aquela Nuvem e Outras (1986) em 1993. Ou seja, a poesia de Eugénio terá sido importante para Lopes-Graça, tanto como a música a partir dessa poesia e a sua difusão foi importante para o poeta. O caso de Aquela Nuvem e Outras é talvez o mais evidente por se tratar de música para ser cantada por crianças, o que leva a que seja, volta e meia, apresentada por escolas de música e gravada mais vezes. Mas também As Mãos e os Frutos e Mar de Setembro tiveram uma grande difusão pelo facto de terem sido postas em música, uma vez que circularam por recitais por toda a Europa, e também em gravações. E, não menos importante, foi através da composição e preparação de As Mãos e os Frutos que Fernando Lopes-Graça conheceu o tenor Fernando Serafim, com quem passou a trabalhar intensamente desde então.
Com a fundação da Artway em 2011, passou a dedicar uma parte significativa da sua vida à produção discográfica. Qual a edição mais marcante para si até à data?
A Artway foi fundada por mim e pela violoncelista e gestora cultural Vanessa Pires. Na verdade, a Artway subdivide-se em duas actividades principais: o agenciamento artístico na área da música erudita e a produção discográfica.
No que diz respeito à parte da produção, que é a parte que me toca, tenho tido o prazer de fazer discos muito interessantes, sejam eles edições da Artway, seja para outras editoras nacionais e internacionais. Do ponto de vista da aceitação do público e da crítica há discos que marcaram, claro. O do Filipe Quaresma a solo, com uma crítica fantástica em Portugal e no estrangeiro. O disco da pianista Sofia Lourenço com música de Daddi e Viana da Mota, para a etiqueta Grand Piano (grupo Naxos) que tem tido uma crítica internacional muito boa, ou o CD Tempo de Outono do clarinetista Nuno Pinto e da pianista Elsa Silva, que foi considerado um dos melhores 10 do ano na música erudita pelo Público/Ípsilon.
Mas mais marcante a título pessoal foi sem dúvida o último, Joaquim Simões da Hora In Concert para a etiqueta Portugaler, por ser uma edição diferente, histórica, e que reúne atributos que me parecem fantásticos a todos os níveis. Além disso também teve uma crítica muito boa e é um projecto pessoal realizado.
Quais os estímulos e problemas da edição discográfica na atualidade?
O estimulo é o gosto pela música, pela interpretação e pela produção do produto discográfico como uma obra editorial em si mesma. Tal como acontece com o livro, por exemplo. É esse o meu grande estimulo. E tentar com isso responder precisamente a muitos dos problemas, que começam como dizia atrás na formação. Se não se formar público corremos o risco de dentro de algumas gerações perder-se o hábito de ouvir música erudita. Não está em causa o formato em si. Se o CD colapsar completamente é porque irão surgir outros formatos de transporte e leitura de música gravada que o ultrapassam. No entanto, a gravação, essa num futuro a curto, médio prazo irá continuar a ser essencial. É preciso é ter público para escutá-la. E para isso, além da disponibilização da música durante a formação, é preciso que a música, tal como os livros, chegue a todos. Nesse aspecto a distribuição é um problema grande em Portugal. Mas há outro problema que ainda não se levantou e que aproveito para chamar a atenção. Uma edição discográfica tem um papel igualmente educativo, lúdico e cultural, quanto aquele que o livro tem. Porque razão continuamos a ter um IVA de 23% para uma edição fonográfica, em vez de a equiparar ao patamar do livro que é de 6%? Essa pequena medida teria reflexo inclusivamente na distribuição, não tenhamos dúvida. Por outro lado, o desafio estará em criar edições aliciantes, que façam valer a pena adquirir um exemplar original e não apenas ter uma cópia ou um acesso ao conteúdo áudio. Tal como a bom tempo o fizeram os editores literários, que meteram mãos à obra e reagiram de forma eficaz quando se viram ameaçados pelos formatos digitais. Estas são só algumas das questões mais elementares que acabam por servir de estimulo para uma resposta, mas que ao mesmo tempo aniquilam gradualmente a indústria discográfica de música erudita. Se é que em Portugal essa indústria, por mais pequena que possa ser, ainda existe.
O que pensa da evolução do ensino da música em Portugal?
Poderia estar melhor do ponto de vista do apoio e do investimento por parte das entidades competentes, claro. Mas, com o que temos, creio que é consensual que há um desenvolvimento sem precedentes na formação. Em alguns casos isso pode não significar necessariamente que esteja melhor, mas na maior parte dos casos sim. A partir dos anos 90 houve uma evolução enorme, e hoje em dia conseguimos ver isso através da quantidade de músicos bem preparados que todos os anos saem das escolas e universidades para o mercado de trabalho, seja dentro de portas, seja no estrangeiro. Acho que o principal foco de melhoria deveria ser para o ensino nas escolas públicas primárias. Dotá-las de melhores equipamentos que estimulem o ensino e a aprendizagem. E da mesma forma, melhorar a legislação de contratação de forma a haver uma política mais eficaz e coerente no que toca ao ensino artístico nos mais diversos contextos e patamares do ensino público da música.
O que é que a música lhe dá?
Dá sentido à vida, realiza-me. Creio que é uma forma de alimentar a mente, o espírito. Talvez uma forma de amor, num sentido lato de sensação, produção e realização.
02 de setembro de 2017