FERNANDO LAPA
ENTREVISTA
Como começou a sua descoberta da arte dos sons?
Não tenho bem a noção. Porque isso não corresponde a um momento preciso ou a uma “conversão” súbita. Mas a minha convivência com a música vem da minha família. Enquanto crianças nós, os três irmãos mais velhos, cantávamos muito em casa com a nossa mãe, que cantava e canta muito bem. Ensinava-nos outras vozes e fazíamos todos um conjunto muito afinado. Mas ninguém sabia ou estudava música. Só gostávamos de cantar.
Nasceu em Vila Real. Como veio para o Porto, onde fez os estudos musicais?
O meu primeiro professor de Música foi o P.e Minhava, no Seminário de Vila Real. Foi ele o primeiro grande responsável por eu começar a estudar música e a perceber que talvez fosse esse o meu caminho. Mas tudo se encaminhou apenas quando vim para o Porto, anos mais tarde, para estudar no Conservatório. Nessa época não havia escolas de música ou conservatórios em Trás-os-Montes…
Qual foi o seu primeiro instrumento?
Acho que é, desde sempre, a voz. Ainda é. Embora nunca tenha sido cantor nem tenha estudado canto. Gosto muito de cantar. A seguir, veio o piano. Também a guitarra. Olhei para o violoncelo e seduz-me o clarinete. Mas não estudei nenhum destes instrumentos. Piano, sim, porque integrado no curso de Composição. Também gosto do coro e da orquestra (talvez os verdadeiros “instrumentos”, para mim, pela forma como me vejo).
Dos professores que andavam pelos corredores do Conservatório do Porto enquanto estudante, quem o impressionava de modo especial?
Cândido Lima, Teresa Macedo, Fernando Jorge Azevedo, Carlos Fontes, Fernanda Correia, Lucena, Isabel Rocha
Além de compositor, é também professor de Análise e Técnicas de Composição. É aliciante, ou preferia viver apenas da Composição?
Sempre gostei de dar aulas. Ser professor não foi apenas um recurso, foi também uma opção. Poder estar ao lado dos alunos, vê-los crescer a cada experiência, fazê-los pensar, saber raciocinar, ser curioso, saber fazer perguntas, ser autocrítico, respeitar o trabalho dos outros, ser tolerante, respeitar o tempo de cada um. Desde a primeira aula. E poder ter a liberdade de pensar que há na escola coisas muito mais importantes do que o programa. A música, por exemplo.
Qual foi o primeiro momento em que se lembra de ter tido consciência de que a música era fundamental para si?
Não sei bem. Quando era criança não pensava nisso nem ninguém imaginava que o meu futuro pudesse passar por aí, mais a mais nesse tempo. Provavelmente apenas quando decidi vir para o Porto e estudar no conservatório é que se começou a desenhar essa possibilidade.
Que professores foram mais marcantes na sua vida artística?
O primeiro foi o P.e Minhava, em Vila Real, quando eu era criança. Foi ele que me fez descobrir o fascinante mundo da música e convencer-me de que eu poderia fazer caminho por aí. Embora nunca me tenha dito isso, eu percebi. Como não havia conservatórios nem escolas de música em Vila Real ou Trás-os-Montes, só mais tarde, quando fui para o Conservatório de Música do Porto, pude regularizar e completar os meus estudos musicais. Aí fui aluno principalmente de Maria Teresa de Macedo e de Cândido Lima. Com ela exercitei o rigor, o método, a competência, a exigência. Cândido Lima trouxe-me muita informação e reflexão sobre a música do nosso tempo: técnicas, estéticas, linguagens, correntes. E sobretudo a experiência de contacto com um exemplo vivo de um compositor de hoje, de referência. Foi meu professor durante cinco anos. Mas fui aprendendo sempre com muitas outras pessoas, de maneira menos formal. E sobretudo com as partituras e os concertos.
Que música ouvia na juventude? Como evoluíram os seus gostos musicais?
Ouvia de tudo, como qualquer outro. De Jaques Brel a Cat Stevens, dos Beatles a J. M. Serrat, de Jethro Tull a Chico Buarque, do Zeca Afonso aos Genesis, do Sérgio Godinho aos U2, do Zé Mário Branco ao Sinatra… e por aí fora. Tudo isto convivia com a grande música de Mozart, Bach, Schumann, Mendelssohn, Debussy, Bartok e tanto mais. A polifonia portuguesa, também. À medida que fui avançando nos estudos fui alargando os conhecimentos, experiências e gostos. Como não tinha dinheiro para partituras, fotocopiava tudo e gravava muitas dezenas de cassetes. Os LPs, as partituras e os livros eram raros e muito caros. À medida que fui progredindo nos estudos da composição foram aparecendo os nomes e as obras que conservo como referências fundamentais do meu percurso. Sobretudo os compositores centrais de todo o séc. XX.
Quando começou a notar a sua faceta de compositor?
Quando comecei a fazer umas canções à guitarra, sobre poemas do Eugénio de Andrade (poesia que eu sabia praticamente de cor) ou do João Rui de Sousa, do Jorge de Sena, do José Augusto Mourão e tantos outros. Ainda não estudava música formalmente, mas já escrevia tudo o que compunha. E diziam-me os amigos que fazia umas coisas engraçadas…
Como nascem geralmente as suas composições? A composição é para si um impulso?
Nasce de muitas maneiras. De todas as maneiras. Na maioria dos casos por pedidos, sugestões de amigos, encomendas formais… Por isso, alguns dos meus projetos pessoais têm ficado à espera, anos a fio. E tenho muito pouca música na gaveta à espera da estreia. Quanto ao processo, é bom que se perceba que eu preciso de compor, mas não costumo ficar à espera da hora favorável ou da inspiração. Eu sei que isso acontecerá. Não tenho a angústia da página em branco.
Que entidades destaca pelo seu contributo musical nas últimas décadas em Portugal?
A Fundação Gulbenkian, a Casa da Música mais recentemente; certamente os conservatórios, as escolas profissionais; as escolas superiores; as orquestras nacionais e as regionais; algumas câmaras municipais (Matosinhos, por exemplo) ou festivais (o da Póvoa, por exemplo); alguns governantes (poucos e excepcionais) das áreas da educação e da cultura; alguns prémios e concursos; algumas personalidades, pelo seu carisma pessoal e pela sua visão projectada no futuro. Mas parecem-me muito poucos para o que há pela frente. Porque não basta uma estratégia de gestão corrente (que é o que mais há); é necessário ter visão e projeto. Senão para onde iremos? O que queremos ser?
Quais lhe parecem as maiores dificuldades e vantagens que se colocam hoje aos compositores portugueses na atualidade? Devem pensar a sua profissão no espaço global?
Não necessariamente. No espaço global estarão sempre, estamos praticamente todos. Mas eu acho precisamente o contrário: a nossa voz, a nossa maneira de ver, o nosso olhar, dependem cada vez mais da singularidade do que somos e da forma como a relacionamos com todos os outros. Repito muitas vezes (até para não me esquecer): “o universal é o local, sem paredes” (Miguel Torga). As vantagens, hoje em dia, são evidentes: temos muito mais meios, ferramentas, tecnologias, acesso a informação, possibilidade de partilha, maior pluralidade de vozes e perspectivas. Mas também há dificuldades: há muita coisa em circulação, há demasiado ruído, muitas vezes o que vale verdadeiramente não tem espaço nem lugar, os programadores riscam por onde querem ou podem, ou lhes mandam. E continua a haver falhas endémicas e graves no sistema: a edição de partituras, por exemplo…
Qual considera ter sido, até à data, o momento mais alto da sua carreira?
A minha música tem corrido de forma relativamente pacífica, como um rio plano e sereno, que não procura especialmente a revolução ou a ruptura. Embora se transforme, como tudo o que é vivo, pensa e quer. Não consigo dizer só um, mas posso alinhar alguns títulos mais significativos que sinalizam abordagens particulares:
In nomine – para um manifesto contra a violência (1996), peça para um quinteto de eleição (fl. cl. vli. vc. e piano) é um gesto cru e excessivo, contracenando com o seu oposto. Esta peça rima com uma outra mais singela, Quasi ostinato (1994), para coro e piano, escrita sobre um verso de E. Melo e Castro.
Tenebrae factae sunt (2001) – motete sobre texto de um dos responsórios da Semana Santa, escrito para coro de câmara a 8 partes e órgão: é uma obra muito dramática, e ao mesmo tempo muito interior, de uma expressividade sem disfarces.
Variações em oiro e azul (2006), para orquestra: é construída sobre algumas das minhas escolhas, normalmente não expressas, de pessoas, lugares, ambientes, atitudes, numa espécie de rapidíssimo caleidoscópio onde se articulam ambientes e escritas que ilustram diversas referências da obra.
Storyboard – 6 miniaturas para piano a 4 mãos (2003) foi o desafio da pequeníssima forma numa peça com poderes orquestrais, construída como uma sucessão de breves histórias sem solução de continuidade. Quase cinema, em tamanho pequenino.
Da primeira liberdade, sobre poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen – para grande coro de crianças, 5 grupos de improvisação e grande orquestra sinfónica, para projeto Sons livres do Serviço Educativo da Casa da Música. Na estreia da sala Suggia da Casa da Música
Variações sobre o nome da Paz (1999), para órgão: é um encontro com olhares luminosos e escritas de referência. Pela única vez na minha obra há duas citações: de uma passagem da Missa em Si menor de Bach “et in terra Pax”; e de uma breve frase de Trois Petites Liturgies… de Messiaen. Esta obra representa a primeira consciência clara, para mim, da prioridade da verdade, da bondade e da beleza. Que não estão na moda, bem o sei. Muito menos no mundo da arte contemporânea. Mas que são o resumo daquilo que me parece mais importante hoje e sempre. E que tem potencial para mudar ideias e corações. O outro caminho é o desastre. Que eu recuso. Quase palavras, quase cantos.
Estudos sobre a luz (2008), para piano: são a recusa do mundo das sombras e das trevas. Ou formas de poder desenhar a luz com maior intensidade. São também uma espécie de exercícios a preto e branco, focados num ângulo, numa linha, no contraste, no desenho, no percurso, no movimento. Têm por isso a ver com o espaço, com a textura, a dinâmica, o tempo. Quase quadros.
Quatro versos de olhar suspenso (2012) para flauta e piano: é uma peça que nasce do meu imenso amor às minhas terras e gentes, à realidade fantástica do Douro. Com nuances diversas, as quatro peças são reflexo do fascínio pela geometria das vinhas, pela paisagem iluminada e aberta, pela serenidade das águas, pela luz. Quase fotografias.
Então ficamos (2012), grande obra colectiva criada em parceria com diversos compositores de outras áreas da música actual não erudita e com um massivo efectivo coral, instrumental e de “actores” em palco (várias centenas de pessoas). Autor de cerca de um terço da música do espectáculo, orquestrador da quase totalidade da partitura e director musical do espectáculo, em parceria com José Mário Branco. Obra criada para o espectáculo de encerramento de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Quase ópera.
Teve alguma deceção relevante na sua vida? Os fracassos ajudam-nos a construir a carreira?
Não posso falar propriamente de fracassos, felizmente. Embora nem tudo tenha corrido bem. Nunca me aconteceu sentir que falhei redondamente. Mas a minha deficiente avaliação dos meios e das possibilidades de algumas formações, levou-me por vezes a colocar o acento tónico de algumas obras em perspetivas menos favoráveis. E como eu gosto sempre de escrever para alguém (intérprete ou formação)…
Que músicos portugueses influenciaram em algum momento a sua atividade?
Muitos, sobretudo os intérpretes que me pediram e para quem escrevi muitas obras. O António Saiote (clarinetista e maestro) e os Solistas do Porto; o Nuno Pinto e a Camerata senza misura; a Elsa Marques Silva e a Cláudia Pereira Pinto; o Luís Meireles e a Maria José Souza Guedes; o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa; a Orquestra Nacional do Porto; os guitarristas Paula Marques e Paulo Peres, (também o José Pina, o Artur Caldeira, o 5G5C, o Quarteto de Guitarras de Paris, o Quarteto Parnaso); o Coro da Sé Catedral do Porto, o Coro Ricercare, o Odyssea, o Anonymus; o José Luís Borges Coelho e o seu Coral de Letras da UP; o Serviço Educativo da Porto 2001 e da Casa da Música, em diversas ocasiões; Suzana Ralha e os Gambozinos; o Toy Ensemble, nomeadamente a Christina Margotto e o Jed Barahal, em diversos projetos, alguns deles em curso; a Magna Ferreira, na Rota do Românico e em tantas outras coisas; o Síntese, da Guarda; Manuel Dias da Fonseca, na Câmara Municipal de Matosinhos, e o Quarteto de Cordas de Matosinhos; o Dr. João Marques, no Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim, em diversas ocasiões; o Quarteto Contratempus, na minha obra mais recente; a OPGB e o seu director António Vieira; todos os compositores, intérpretes e amigos que comigo criaram e fizeram o espetáculo de encerramento de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, principalmente o José Mário Branco; muitos e muitos solistas e formações. Faltaria dizer tanta coisa e tantos nomes…
Qual das suas gravações foi mais marcante na sua carreira?
Apesar de ter várias dezenas de obras gravadas em CD (algumas em DVD), não me parece que seja essa a forma mais comum de o público contactar com a música que faço. Isso acontece principalmente através dos concertos (muitos e de variadíssimos tipos e circunstâncias, com muitas obras a serem apresentadas sucessivamente por intérpretes diferentes). Mas devo referir que as gravações de “Folhas soltas do Diário de Miguel Torga” (Camerata senza misura); “oito poemas breves de valter hugo mãe” (Grupo de Música Contemporânea de Lisboa); o ciclo “Estuário”, para soprano e piano, sobre poemas de J. M. Mendes; ou “Natal Português” sobre melodias tradicionais portuguesas, para coro e orquestra; foram alguns momentos assinaláveis.
A sua atividade pedagógica contempla de modo especial o Conservatório do Porto e a Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo? O que pensa do ensino da música em Portugal?
É consensual hoje a certeza de que fizemos muito nas últimas décadas nos domínios da música. Fui professor em todos os tipos de escolas do nosso sistema: públicas do ensino oficial (conservatórios de Braga e do Porto, esta última, a minha escola), particulares de música (Curso Silva Monteiro), do ensino preparatório (Colégio da Paz), cooperativas de ensino superior artístico (Árvore), profissionais de música (ARTAVE), superior (ESMAE). Posso dizer que conheço relativamente bem o sistema. E também eu acho que a revolução foi total. Com o apoio do estado, existem hoje escolas de música praticamente em todas as terras, em grande parte com professores habilitados. As escolas superiores vão desempenhando o seu papel de forma a meu ver muito focada, garantindo formação de qualidade, com resultados visíveis por todo o mundo. Esta primeira fase de generalização e qualificação vai ficando concluída. Os próximos passos serão certamente de afinação de práticas pedagógicas e programas, de partilha de projetos e experiências, de dinamização local da vida cultural e de envolvimento das comunidades, de aposta na especialização e na circulação de pessoas.
O que se alterou com a mudança do Conservatório do Palacete Pinto Leite para as novas instalações?
A matriz da escola não mudou, nem o seu perfil de exigência e competência. A escola continua a fazer o que sempre fez, sempre no seu lugar, mesmo quando não tinha condições físicas para o fazer. Mas nesta fase muito mudou, principalmente ao nível do espaço físico, da sua qualidade e funcionalidade, desde as salas de aula aos auditórios e todos os outros equipamentos e serviços. Com um espaço mais generoso veio a possibilidade de implementação do regime integrado de frequência da escola, certamente a alteração mais visível na vida diária da comunidade educativa. Mas a frequência em regime supletivo continua a marcar uma presença muito significativa. Como consequência, a escola serve hoje muito mais alunos. A actividade de todos, sejam coros, orquestras, grupos diversos, conjuntos de câmara, solistas, tem permitido uma grande presença da escola na vida cultural da cidade e da região, bem como um grande número de alunos premiados em concurso.
Qual o papel do Estado na promoção da música e das artes em geral? A DGArtes e as Direções Regionais de Cultura têm desempenhado o papel que seria de esperar na música portuguesa?
Ao nível dos princípios talvez não haja grande coisa a alterar. O mesmo se não dirá das práticas. Refiro-me sobretudo ao que respeita ao trabalho da DGArtes das Direções Regionais. O volume de pessoas envolvidas nas escolas e progressivamente “despejadas” no mundo da actividade musical e da profissão já exigiria muitas outras formas de coordenação, apoio, intervenção, programação, trabalho em rede, estimulação, presença no terreno, avaliação. E outros meios, claro. Pelo menos ao nível da música, trata-se da necessidade de articular ideias e propostas que ajudem a divulgar a música com letra maior, possibilitando a seu acesso a todos.
Acha que a Igreja em Portugal valoriza o repertório sacro e o património edificado enquanto espaço privilegiado para a audição de música sacra?
Alguns fazem-no, e bem, mas não me parece essa a regra, infelizmente. A moda anda sempre por outros lados e é sempre mais fácil, porque mais imediato, cortar a direito. Ao nível das práticas, das programações, da formação, da criação, parece-me tudo muito longe. Em grande parte, por omissão. Alguns passos se foram dando, é certo, mas há meios para fazer muito mais. Assim se queira. Não apenas nas cúpulas dos espaços de decisão, mas também na base, que é onde tudo se muda, ou não… Tantos órgãos restaurados ou construídos, tanto repertório criado, grupos corais, diretores, instrumentistas… Falta formação, critérios de qualidade, linhas de actuação.
Compôs numerosas obras sacras e litúrgicas. Até que ponto a tradição cristã influencia a sua vida e obra?
Não posso ser como Messiaen, além do mais, não conseguiria. Muitos menos a sua quase “dedicação exclusiva”. Eu sempre preferi que a matriz da minha formação pessoal e as minhas opções de vida pessoal e artística pudessem informar a minha visão da arte e do mundo e a minha forma de me relacionar com os outros. Mas não de uma forma tão militante. Nunca gostei de andar a agitar bandeiras. Prefiro que o que faço respire esses valores, sem compartimentos estanques entre profano e sagrado. Não sei separar isso. Mas os valores e as ideias estão lá sempre, pelo menos é o que procuro: a verdade, a bondade e a beleza.
O seu catálogo contém perto de 300 obras em quase todos os géneros musicais. Qual a obra que melhor o representa?
Não consigo ser assim tão redutor. Por muito diversas razões: da primeira liberdade (coros de crianças e orquestra), Natal Português (coro e orquestra), Variações sobre o nome da paz (órgão), Onze poemas de amor e de neblina (coro de câmara e orquestra de cordas), Imagem (soprano e piano), Destinos (soprano, clarinete, violoncelo e piano), suite mirandesa (violino, harpa e contrabaixo)…
Dirigiu o Coro Académico da Universidade do Minho entre 1994 e 2006 e com ele dirigiu mais de 300 concertos. Foi importante para divulgar a música portuguesa e especialmente as suas composições?
Sim, foi importante, a muitos níveis. Como espaço de prática musical plural, para quem não tinha nenhuma outra, na universidade. Foi também um espaço de divulgação da música portuguesa, do renascimento aos nossos dias, com uma presença significativa de harmonizações de Lopes-Graça. Nunca vi o coro como espaço privilegiado de divulgação da minha música, embora tenha escrito várias peças para o coro, muitas vezes como forma de levar um grupo que eu conhecia bem a experimentar algumas escritas musicais menos correntes. Mas muitas das peças corais que escrevi nunca foram ensaiadas ao coro (que nunca entendi como veículo privilegiado da música que faço).
Que influência tem a música tradicional na sua obra?
Tem tido muita, porque eu gosto da música tradicional, como expressão de maneiras locais de ver e sentir. Também fui entendendo que poderia ter alguma responsabilidade na divulgação da música de Trás-os-Montes. Nos últimos anos, sem qualquer propósito deliberado, tenho trabalhado diversas vezes em peças que partem desses repertórios: em obras corais (a capella, com piano, orquestra de cordas, sopros ou orquestra sinfónica), em peças para diversos ensembles de guitarras, de cordas (quarteto, orquestra), ensembles de violoncelos ou violas de arco; trios, quartetos e quintetos; entre outras. Em virtude da ampla circulação de algumas dessas peças, corro o riso de ser confundido com um compositor virado para a música tradicional, mas continuo a compor muitas outras coisas.
Quais as qualidades essenciais para alguém se tornar grande compositor?
Eu não sei dar nenhuma receita de felicidade, nem de sucesso no mundo da arte, apesar de ter sido professor grande parte da vida… Atrevo-me apenas a alinhavar alguns adjectivos que considero essenciais: ser simples (como as crianças); curioso por tudo (como elas, também); ser capaz de procurar e inventar o que não se sabe; ser humilde (como quem sabe que se aprende com toda a gente); ser organizado, paciente, rigoroso; ter capacidade de sofrimento; mas ser capaz de se iluminar com as obras que vão saindo das mãos. Ser competente. Gostar dos outros. Não ter medo.
Pensando só na história da música em Portugal, quem é para si “o compositor”?
Não consigo dizer só um. Mas refiro logo Fernando Lopes-Graça. E Claudio Carneiro, João de Freitas Branco ou Joly Braga Santos. Mas também os polifonistas todos, sobretudo Manuel Cardoso e Diogo Dias Melgaz. Ou João Rodrigues Esteves. Da geração dos meus mestres, Cândido Lima e Jorge Peixinho. E gosto de muitos dos meus contemporâneos.
Quem é para si “o maestro”?
Apreciei e aprecio vários, de Karajan a Dudamel, Abbado ou Haitink, Simon Rattle ou Gardiner, mas reconheço em Bernstein, Pierre Boulez ou Baremboim qualidades que vão muito para além da direção de orquestra.
Qual o seu repertório predileto na música portuguesa?
Não consigo dar uma resposta muito afunilada. Mas refiro os nossos extraordinários polifonistas da Renascença e a música dos nossos compositores da primeira metade do se XX, de matriz claramente francesa, destacando Cláudio Carneyro. E sublinho a música autêntica e pessoal de Lopes-Graça e o seu permanente balanço com a rica tradição cultural da nossa música tradicional ou da nossa herança literária. Revejo-me também nessas matrizes.
Se não tivesse fosse músico, em que profissão teria sucesso?
Certamente me dedicaria a outra área artística: pintura, arquitetura, literatura (poesia), que são tudo áreas de que gosto muito e para que tenho algumas aptidões. Também poderia seguir alguma outra disciplina das humanidades (história, filosofia ou estética). Ou das ciências sociais e humanas, sobretudo a sociologia ou as ciências da educação.
Há algum grande músico que gostaria especialmente que tocasse ou dirigisse uma obra sua?
Muitos. Mas quase nunca sou eu que faço a escolha. Na maior parte dos casos porque, para além do mais, nunca conseguiria. No entanto tenho tido interpretações da máxima qualidade, e tenho tido o privilégio de ser interpretado por grandes músicos, nacionais e estrangeiros (sobretudo os que trabalham em Portugal).
O que é a música para a sua vida?
É absolutamente essencial e insubstituível. Quase corria o risco de dizer que ela é tudo, porque sei que é a única coisa que faço que diz alguma coisita de divino naquele pedaço de barro que eu sou. Mas todos nós somos algo mais do que isso.
Tem livro de cabeceira?
Tenho vários, literalmente à cabeceira. À espera de vez. De Gonçalo M. Tavares, de Tolentino de Mendonça, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, António Pires Cabral.
Estou a reler alguns outros: Cem anos de solidão, Orgulho e preconceito, O som e a fúria… E também gostava de reler o Aquilino e o Camilo, ou o Eça, o António Cabral (lá no Douro)…
De sempre e para sempre são: Livro sexto, de Sophia (e todos os outros); Memórias de Adriano, de Yourcenar; os Passos em volta, do Herberto Helder; O velho e o mar, de Hemingway, o Pessoa (sobretudo o Caeiro), a poesia extraordinária de Eugénio de Andrade, o Torga todo…
Quais os seus passatempos não musicais?
Gosto muito de ler, jornais também. Gosto muito de desporto. De quase tudo. E gostava de jogar, sobretudo futebol: agora é mais na televisão… Gostava de poder jogar mais bridge (mas é preciso muito mais tempo para praticar e estudar). Para além disso, adoro paciências de cartas, com 2 baralhos, puzzles e outras inutilidades igualmente indispensáveis. E estar com a família e os amigos
Em três adjetivos, como se caracteriza a si mesmo?
Simples no relacionamento com todos, cuidadoso e perfecionista no trabalho, encantado com a arte e com as pessoas que andam mais perto de mim.
Mas as três palavras mais importantes para mim são as que definem a arte: a verdade, a bondade e a beleza. O meu programa. A minha utopia.
06 de agosto de 2018