compositor Cândido Lima

CÂNDIDO LIMA

ENTREVISTA

NOTA

Fazendo zapping sobre a minha memória, vagueando, saltitando e ziguezagueando pelos milhões de neurónios e suas vizinhanças, num distanciamento de tempo entre personagem real e actor-narrador, eis longas (na verdade, breves!) respostas sinuosas de um músico, desenhadas sem uma linha cronológica, como os tópicos propostos, como um puzzle improvisado de vidas mistas, confluentes e divergentes, de histórias com humor, de histórias com ironia, de histórias com paixão, de fait-divers e de casos quase banais se não fossem, mesmo assim, insólitos (para usar um eufemismo…), ao sabor das perguntas inéditas e ecléticas aqui formuladas, ao sabor das divagações inéditas e ecléticas aqui libertadas…

ENTREVISTA

1. A música acompanhou-o sempre, mesmo nos seminários de Braga e no serviço militar. Qual a noção que tem dessa importância da música na sua vida?

Vai ser longa a resposta, vão ser imprevisíveis os caminhos: como uma fantasia ao piano!…

A primeira tomada de consciência pessoal de alguma predominância, interesse ou atracção de uma coisa sobre a outra, nos meus tempos de estudante, tempos de adolescência, foi a paixão pelas línguas, não a música: francês, latim, português e uns quatro anos mais tarde, inglês e grego, e mais tarde outras línguas. Da comunicação e da compreensão dos outros como objectivo tinha já consciência, isso tinha, e sentia fascínio, como hoje ainda tenho, pela comunicação com o mundo que me rodeia, sendo ou não poliglota, longe disso. A música é anterior e alheia a essa tomada de consciência, já que está no meu ADN, ou DNA (como estudei em Filosofia das Ciências Biológicas, por Luís Archer, especialista em genética molecular, recém-chegado dos EUA, após doutoramento), já que está na minha herança genética é, digamos, intrínseca à minha natureza. Essa natureza manifestava-se nos resultados escolares, mensais e anuais, da disciplina de solfejo, em que ao longo de quatro anos de estudo não me lembro de errar, nem de hesitar, um momento que fosse, nas melodias de solfejo, que cantava quando era chamado à lição para avaliação. Mas o cantar bem e afinado, não era meu, não vinha de mim, vinha da família, onde havia vozes de cantadores de fado e vozes inesquecíveis que já lá vão, de cantoras e cantadeiras inesquecíveis dos campos, das estradas e dos coros da igreja (de que são herdeiras as Cantadeiras do Neiva, grupo minhoto), vozes ensaiadas pelo baixinho, rubicundo, irascível e inimitável maestro padre Alberto Brás (Esposende), de quem eu iria ser organista, a seu convite, anos mais tarde, na Sé Catedral de Braga.

Este amador e intuitivo homem de coros dizia, um dia, ao entrar para o ensaio no salão da casa, já nos meus tempos de organista seu: ”ai, bagatelas!”, após ter acabado de ouvir, na rádio, alguma(s) das Bagatela(s) para piano de Beethoven; mencionou ainda, com enlevo, a sugestiva Dança de Anitra de Peer Gynt, de Grieg. Ficou-me na memória o seu olhar em direcção a mim, antes dos ensaios, vendo-me ler à primeira vista a partitura de uma nova obra que acabava de me colocar na estante do harmónio. Esta confiança ilimitada em mim estimulou-me, não como professor, que ele não era, mas muito mais do que professor. Como maestro, meu cúmplice nas responsabilidades públicas, sacras e profanas, sem ter noção disso, marcou o meu desenvolvimento em “técnicas ao teclado”, em improvisação, em composição, num processo que decorreu, durante anos, em silêncio. Pediu-me, um dia, (“encomendou-me”, diríamos hoje…) para escrever uma obra para a sessão solene que todos os anos ocorria no dia dedicado a Santa Cecília. Surpreendido com tal aventura) o compositor-mor da casa, Manuela Faria, nunca fez um gesto para fazer música minha, nem mais tarde no orfeão de Braga de que ele era o maestro e eu, elemento do coro, a seu pedido, nem depois!). Compus, então, música para a Dança do Vento, poema de Afonso Lopes Vieira, para coro a 5 vozes e solistas, com piano e harmónio (simulando orquestra…). As harmonias e as homofonias densas, a 5 vozes, dificultavam, sobretudo, o solfejo das vozes interiores. Essas agruras originaram contestação de amigos e desconhecidos (começo cedo, esta situação de atrito e conflito, mesmo amigável…), tendo ouvido frases que ouviria mais tarde nos grandes salões da música: “fizeste um aborto!” (era hábito, naquela gente, “superiores” e “inferiores”, ouvirem-se termos como “parir” uma obra, “um bom parto”, para outra obra, e termos afins ditos em tom brejeiro, que sempre me chocou, particularmente por vir de sensibilidades distorcidas de educandos religiosos!).

Voltando ao inesquecível padre Brás (cuja voz a minha mãe adorava quando, nas cerimónias da aldeia para que ele era convidado, ele a misturava às cantoras da terra, duas delas, irmãs da minha mãe, duas outras, minhas irmãs!), nunca surgiu ocasião para falarmos ambos desta linhagem, entre as minhas tias e irmãs, suas “cantoras divinas” (as tias e as irmãs Netas”) de Vila de Punhe e eu, irmão e sobrinho, criança nessa época, músico urbano e monástico da cidade de Braga anos mais tarde, futuro profissional no mundo pós-estudos liceais, religiosos e artísticos no Conservatório de Braga e, depois, nos conservatórios de Música de Lisboa e Porto. Lembro, de Braga, a bondosa e religiosa senhora Teodora Howell, organista, professora de piano e de solfejo que me ajudou na transição daquela primeira vida “militar” para a vida civil artística! Soube, recentemente, por uma irmã, que o Padre Brás, enquanto capelão de Santa Luzia (coisa estranha vê-lo fora daquele Coro de Santa Margarida e da Sé Catedral, a que estava umbilicalmente ligado, e que ele dominava magistralmente!), que quis levar estas cantoras para o seu Coro do Monte de Santa Luzia! A estas vozes dediquei-lhes a obra, pela voz da Laura, que Deus levou, de que fazia parte com a sua voz límpida de soprano dos campos e das liturgias da paróquia, Monda-coro a oito vozes, para um grupo instrumental do clarinetista Nuno Pinto e a obra “fadista” OS CANTOS DAS FRAGAS-bandolins, violas e violões, para violino (travestido de bandolim), violoncelo, guitarra e piano (travestido de guitarras e de bandolins), editado em CD pelo PERFORMA Ensemble, da Universidade de Aveiro), este para os fadistas e os guitarristas da família. Ainda da minha infância evoquei a natureza que me rodeava com a peça para flauta de bisel, em homenagem ao pássaro da minha janela, Serezina-le chanteur du val, que está gravado em CD-Grupo Música Nova, com o título Para além da árvores-Música e Artes em espelho.

Voltando à pergunta, pessoalmente nunca tive, nem na infância, no mundo rural, de mar e de montanha, nem na idade adolescente, como estudante, consciência da relevância que a minha natureza musical e a minha função futura de organista e de pianista das “academias de estudo” de sessões semanais interdisciplinares ou de efemérides anuais começou a ter no meio estudantil e nos meios hierárquicos. Pensar música e vivê-la como sempre a senti, era uma forma paralela de respirar, uma forma de sobrevivência mental e fisiológica. Essa vida interior e exterior iria, num futuro próximo, causar-me dissabores disciplinares (fui expulso, readmitido depois) e curriculares (reprovado no 6º ano; destituído, por isso, das funções de organista, reconduzido logo de seguida em face das limitações do substituto). Muito menos pensava no futuro incerto e no futuro de músico, como forma de subsistência.

Paradoxalmente fui expulso do coro de crianças logo no 1º ano do ciclo preparatório. O maestro olhou na minha direcção e viu-me a falar (lembro-me bem que apenas disse qualquer coisa para o colega do lado!). Curiosamente, nunca me assaltou o mínimo sentimento de crítica ou de revolta, e esqueci o caso. Por incrível que pareça, foi uma observação “a sangue frio”, ou “à queima-roupa”, durante um almoço em Guimarães, em 2014, feita por um condiscípulo, do Curso um ano mais novo do que o meu, o poeta e advogado Dr. Branco de Matos (Barcelos e Guimarães), que me despertou a memória. Voltando-se ostensivamente para mim, faz esta revelação bombástica para mim: “Eu fiz parte do coro durante quatro anos e nunca te vi lá!”-“Fui expulso”, respondi também “a sangue frio”, como se tivesse recuando instantaneamente a esse “aquele menino vai para o salão!”. Foi um clarão após mais de meio século de ausência deste episódio na minha memória! Tinham passado seis décadas de silêncio entre esse período de quatro anos de exclusão do coro, em Braga, e este reavivamento da memória, em Guimarães! Nunca antes alguém tinha aludido à possibilidade de eu ter feito. ou não, parte do coro do seminário (com os coros seguintes eu era organista…)! Foi como se um relâmpago me iluminasse a memória de quase uma meia vida em silêncio (experiência real, vivida, num dos caminhos da minha aldeia, durante as férias, aí pelos 17 anos de idade, quando um raio explodiu a um metro de mim (assim pareceu a distância…!): caí, instantaneamente, de joelhos, encandeado, quase fulminado; acordei e segui para casa). Despertado de longa letargia sobre o coro da adolescência estudantil, prosseguimos o diálogo, esclarecendo-o que foi logo no logo no 1º ano que essa expulsão se deu, e que nunca mais fui readmitido. Esta interpelação deixou-me ao mesmo tempo atónito (o porquê da lembrança) e em êxtase (o prazer da memória), diria, porque fez disparar a minha propensão detectivesca, passe a expressão, para percorrer, analisar e compreender, em todas as direcções, as causas das coisas, neste caso, os personagens e os aspectos que a história encerra. Esta pequena história passou-se em 1952, e só me fizeram disso tomar dela consciência em 2014!

Aceitei, como uma cena normal do sistema em que vivia, a expulsão que, por isso mesmo me desapareceu dos registos cerebrais, como pertencendo à ordem natural das coisas, sem nunca olhar para trás, numa atitude genuína de obediência e inocência angelicais…Os colegas eram chamados para ensaios, e eu ficava no salão de estudo com os “deficientes” de ouvido. Durante quatro anos estive excluído do coro, mas nunca tive consciência dessa aberração da natureza, melhor, desse comportamento in-humano, insólito, no mínimo, perante os excessos da ordem e da disciplina. Por estranho que pareça, o mesmo professor deu-me sempre a nota máxima, na disciplina de música (Solfejo). Por que motivo nunca mais me terá readmitido no coro? Nunca mo perguntei, nem nunca ousaria perguntar-lhe! E só agora olho para trás, décadas depois, nesta interpelação, à mesa de um restaurante! Guardei, antes, na minha memória, como ouvinte anónimo, sons daquele ECO de Orlando di Lassus, ecos maravilhosos que nunca mais ouvi senão por aquelas vozes de adolescentes. Essas vozes eram dirigidas por este excelente músico, maestro do coro e professor de solfejo (disciplina Música, no curriculum), que dava pelo nome de Manuel Faria Borda. Excelente músico, excelentíssimo maestro deste coro de jovens, com preparação técnica ajustada à composição de música litúrgica não genial, mas com qualidade. Este homem de figura imponente tornou-se mais tarde meu admirador (não direi amigo), e passei a ser convidado como seu organista privativo, passe a expressão, das inúmeras manifestações religiosas para que ele era convidado (que pagava generosamente, pelo menos é esta memória simpática que guardo dele…). Um episódio curioso (de composição clássica…) a que assisti, no corredor, fora da capela: Amadeu Torres/Castro Gil, meu conterrâneo, poeta e ilustríssimo intelectual, em pequeno encontro fortuito com o Padre Borda, comenta, voltado para ele: “parece que utilizou um acorde de 9ª!”- “É…”, respondeu, com um ar orgulhoso de assentimento, num esgar delicado de rosto. Fixei isto, teria os meus 15 anos. Sabia eu lá o que era harmonia funcional (de que faz parte este acorde “perigoso” da harmonia romântica, sobretudo), mas percebi que tinha sido uma “façanha” cometida em algo que tinha composto dentro da música litúrgica! Era o despertar, em mim, do compositor futuro?

Não obstante essa expulsão do “coral” (do coro de adolescentes), durante esses quatro anos do “curso de preparatórios”, mais precisamente no 3º ano, comecei a estudar harmónio com o organista da casa, e por ele comecei a ser chamado para o ir substituindo nas cerimónias da capela: era o padre Manuel Gonçalves Jorge, pessoa anónima, amável, cheio de humor e sentido comunicativo com os rapazes. Ainda recordo música que ele, e eu depois, tocávamos, de que destaco fugas de Bach, muito faladas na época pelos rapazes, com música de clássicos e de românticos adaptada em colecções estrangeiras, que fui copiando à mão, fazendo intercâmbio com colegas (guardo às centenas dessas músicas manuscritas!). Nem nestas funções precoces aí tive sinais ou intervenções do Padre Borda. Eu, organista nos primeiros passos, e o coro éramos dois entes a anos-luz um do outro. Trouxe-me de Paris, a meu pedido, um livro de harmónio dessas colecções, pago com dinheiro obtido por subscrição de família, das tias e irmãs mais pobres a irmãs e a irmãos menos pobres. Custou 95$00! Era caro, como foram sempre caros os livros franceses (o piano de aldeia, de que falarei noutro momento da entrevista, foi também comprado às Senhoras Macambira por subscrição familiar!). Um dia, na Casa dos Pianos, na Rua do Souto, o padre Borda entra, abeira-se de mim, sentado ao piano, experimentando-o, diz-me: “não pensava que chegasses tão longe…”. Não percebi de onde vinha tal comentário, não sei em que período da minha actividade musical isso aconteceu, mas foi nos tempos ainda de estudante, mesmo até, penso, antes de ir estudar para Lisboa e antes de ser mobilizado para África, para a guerra colonial. Mas conservador como era (que compreendo, sem dificuldade!), anos mais tarde, tendo-me visto na televisão apresentando a obra Projecções, para piano e electrónica simulada (harmónio) espécie de , a convite de Francisco d’Orey, assistente musical, cruzando-se comigo numa rua de Braga, contígua ao Liceu Sá de Miranda, lança-me do outro lado da rua, esta espécie de imprecação: “Oh Cândido, tu estás tolo?” (comparar a rudeza desta voz, com a voz, mais adiante, do Professor Jorge Croner de Vasconcellos, sobre a mesma obra, na mesma época (1973)).

Na mesma rua e no mesmo local ouvira, na mesma época, dois amigos, jovens, logo de manhã, cruzando-se em marcha acelerada, cada um no seu passeio, em direcções opostas, saudando-se, genialmente, assim: um: “Eh, c…rão!”, o outro: ” Eh, fdp!” (dizem que o calão no Norte é uma vírgula…). E lá seguiram, cada um o seu caminho, amigos como dantes! Se o padre Borda usasse o mesmo vernáculo, certamente que juntaria ambas as saudações, ou ainda imprecações como as daqueles dois espectadores no Grande Auditório Gulbenkian, aquando da estreia da obra A-MÈR-ES, desejando-me a morte:” o senhor devia ser morto!” (em 1979, no Grande Auditório). No Porto, nos Cursos Silva Monteiro, uma aluna revelou-me que o pai de uma colega, tendo visto também aquela mesma obra, Projecções, na televisão (1973), garantiu que se eu fosse seu professor de composição ele a retiraria imediatamente da minha classe. Soube disso pelas minhas alunas nos dias seguintes ao programa de televisão (em directo!). Sorrimo-nos todos com o pai “protector”. Uma colega voltou-se um dia para mim, zangada, no gabinete de direcção do Conservatório de Música do Porto: “o Cândido é um provocador!”. O pai daquela aluna podia chamar-me “contaminador”!. É que de facto, sem dar por isso, e candidamente, fui contaminando o sistema e injectando vírus, se não no sistema, pelo menos nos organismos de alunos e alunas. Só eles e elas à distância poderão testemunhar se foram inoculados de matéria subversiva e desagregadora das suas estruturas mentais. Alguma coisa aconteceu? Sei lá!…

Como se verá ao longo desta entrevista, andei sempre ameaçado, em vários sentidos e direcções, o que não deixa de ser interessante do ponto de vista da psicanálise…Fui condenado à morte ou ao extermínio muitas vezes (ver-se-á quando vier à baila África!)! Usando, talvez abusivamente, da linguagem filosófica, sofri diversos “cortes epistemológicos” vindos de fora da minha natural evolução artística e científica.

Haveria de voltar a ser excluído de organista no 5º ano por um futuro capelão militar (!), sem saber porquê, e voltaria a ser expulso da Instituição, anos mais tarde, durante o Curso de Filosofia, por colocar em causa o poder hierárquico de um “prefeito” da casa, durante uma discussão entre ele, jogador de cartas (“um superior”) e eu, um músico (”um inferior”…): ele jogava cartas com colegas meus, eu tocava harmónio no mesmo recinto, isto é, no ginásio, em tempo de férias, à sombra dos festejos de S. Pedro e S. Paulo, padroeiros da casa: como não largava o harmónio ali colocado para estudo, obedecendo repetidamente à sua ordem (arbitrária…) para o calar, gerou-se um burburinho entre ambos e o silêncio cúmplice de solidariedade dos colegas (um, o Dinis, que não se calou). “O Cândido não é humilde” (termo “cliché” e motor da ordem entre a multidão e os costumes), censura-me ele: “Humildade de parte a parte”, replicou o Dinis. “O quê? Um superior humilhar-se a um inferior?”-Quando não tem razão, sim!”, retorqui eu: “Dou-lhe na cara!”, disse, irado, e saiu abruptamente do ginásio, porta fora. Reunidas de emergência as autoridades, veio o veredicto à noite. Solenemente, foi lida a sentença, perante a plateia: “medíocre” em comportamento e expulsão da Instituição (o Dinis, solidário, também foi expulso!)…Senti, porém, nas conversas que mantive com o reitor da casa, um conflito entre a postura deste homem, as posturas dos outros jurados e o acusador (com quem, de resto. Jogava futebol!). Mas tiveram de seguir o poder. O poder hierárquico imperou. A ordem foi restabelecida. Este mesmo homem, prefeito da casa, chegou um dia ao piano em que eu estava a estudar, fechou-me, lentamente, as mãos entre a tampa e o teclado. Baixou a tampa (para não me magoar…), e fiquei com as mãos presas e entaladas. Situação bizarra aquela. Perguntei-lhe porque me fazia aquilo. Não respondeu. Informei-o que estava no meu horário (menos de meia hora!), portanto dentro das regras. Nada disse e mandou-me embora.

Regressei, após as férias (nunca ninguém na família soube que eu estive “condenado” durante uns meses!), mas como condição teria de ter o seu assentimento, definiu o reitor da casa. Durante encontros de reconciliação, entre outras incriminações, que não recordo, dirige-me esta acusação ou este comentário: “pois é: os seus colegas adoram-no!”. Fiquei surpreendido com tal dito. Tinha três ou quatro amigos concretos, mais próximos, mas não sabia que o meu destaque, como músico e como futebolista, ia mais além, e que iria da ”adoração” desse grupo restrito até à “adoração” da comunidade…E se uma reprovação nos exames é uma “expulsão”, também fui expulso do meus curso de origem no 6º ano de filosofia (de facto, deixei de existir para esse grupo (!); fui, naturalmente, acolhido pelo seguinte!), começando nesse ano, a perseguição ao músico, “perseguição” que iria durar pelos tempos fora, da adolescência e juventude até às ideologias e aos sistemas de pensamento artístico e social, na criação propriamente dita e nos vários níveis de ensino em Portugal. Ao olhar para trás, acho graça que, tendo-me como um homem pacífico e pacifista (até se serviram de mim na tropa para dirimir litígios e apaziguar confrontos hierárquicos e institucionais, em Bolama, por exemplo), como é que tenho uma tão bela colecção de expulsões e de confrontações! Um dia ironizei com a Direcção da ESMAE que me apontou um erro qualquer (não me lembro qual). Achei estranho, pois não tinha ideia de ter incorrido em qualquer falha. Fui averiguar a origem desse caso transmitido pela DIrecção (tempos de gente de trato elegante e civilizado: Maria Teresa de Macedo, Fernando Jorge Azevedo, Luís Filipe Pires). Feita a averiguação, vim esclarecer o mal entendido. Reposta a verdade do que terá, ou não, acontecido, com sorriso, também elegante e civilizado, antes de sair do gabinete, despedi-me com um: “não sou perfeito, mas quase!”…). Sorriram, sem palavra. A reunião prosseguiu.

Eu sei mais ou menos de onde vêm estes desencontros entre os juízos que as pessoas fazem sobre os outros com grande leviandade: vêm da natureza humana, das suas manifestações mais insondáveis, de comportamentos sociais terra a terra. Foi duro, nessas ocasiões de equívocos e de confrontos, perplexo perante o inverosímil. Passei por entre tornados, sorrindo-me neles. É que foi mesmo, com serenidade, que rodopiei no meio de tufões!

Restam-me, deste período de vida de juventude, dramas e façanhas organísticas (e futebolísticas). A única “obra” à revelia, que se perdeu (como tentativas diversas) de que pouco me lembro, para violino e piano (tinha algo a ver com pulsações rítmicas de Schubert modernizado), com o título de Dança da Abelha. Título absolutamente inócuo, parolinho mesmo (assim mesmo!) porque o original dizia algo referente a ninfas do Lima (rio), e tudo o que aludisse ao feminino causava tremores de terra. Tinha um colega, poeta na altura, que foi chamado à ordem pelas metáforas femininas na sua poesia, e ainda um outro grande amigo e conterrâneo que foi expulso por ter sido encontrado debaixo do travesseiro o romance Dama das Camélias (era o que se dizia!). Este título é um título de emergência (não sei se inocente, se irónico…). E é desse tempo que o reitor me proibiu de tocar a habitual peça final, após as cerimónias. A parte de baixo da igreja era ocupada pelo povo, e por lá havia moças que eram um perigo de contaminação para a população da parte da frente. Mas eu só queria tocar órgão (este estava no altar-mor), nunca olhava para mais nada, senão para o teclado e para os foleiros que às vezes se divertiam a arrancar flautas e a tirar-me sons da música, enquanto eu protestava, ao mesmo tempo que tocava!…”Éramos todos bons rapazes!”…

Mais um episódio revelador do espírito bizarro desses sítios monacais: um dia, o Coro, dirigido pelo Padre Bompastor, foi convidado a fazer um concerto em Viana do Castelo, no Teatro Sá de Miranda. O programa terminava com o coro masculino “Evviva! Beviam!”, da ópera Ernani, de Verdi. Eu acompanhei o coro ao piano, lembro-me bem do nervosismo, com o teatro cheio (a minha mãe estava presente, e havia de falar várias vezes do quanto gostou desse coro de Verdi!). Passados tempos, um simpático prefeito (Pe. Fernando da Silva, talvez…) veio ao meu quarto oferecer-me o jornal de Viana, onde, na crónica do concerto, é feito um elogio ao pianista (sem o nomear), falando dele como “um profissional perfeito” (eu profissional? Lembro-me de me ter espantado com isso!). Feliz com o que li, sabendo do orgulho que o meu pai tinha nos 9 filhos, e em mim também, enviei-lhe o jornal. Fui chamado ao reitor. O que me disse? “Não deixo seguir o jornal, porque isso é vaidade tua”. Pode-se imaginar o efeito dessa censura em mim dessa (toda a correspondência era lida, prática, aliás, do regime político da época, a prática do lápis azul da PIDE!). Nunca mais vi o jornal! Só o voltei a ver em 2015, quando o fui procurar e tentar localizar na Biblioteca Pública do Porto (entre outras crónicas da época). Encontrei-o e sorri-me. Texto amável e inofensivo sob todos os ângulos. Está no meu arquivo “vaidoso”!

Não resisto a outra história, esta sobre o “fim do mundo” previsto para 1960. Esta história permite-me tirar dúvidas sobre a data exacta em que eu ia estudar piano (um Bechstein na aldeia!) à casa das Senhoras Macambiras, gente “fidalga”, como diz na aldeia a gente pobre, vizinha da minha família (onde foi comprado o piano que iria viajar para a Guiné). Nessa casa havia empregadas de serviço interno, senhoras de boa memória pela sua gentileza e delicadeza de trato para com toda a gente (lembro-me da distribuição, na estrada, por essas senhoras, da “sopa dos pobres”). Uma delas, a Ritinha, de roupas impecavelmente brancas (que ia levar o Comércio do Porto ao meu pai, onde eu procurava os programas musicais difundidos pelo Programa 2 da Emissora Nacional, que eu ia ouvir nas tabernas da aldeia! ), senhora piedosa e “temente a Deus”, vem um dia ter comigo, enquanto estudava piano, e pergunta-me: “Oh senhor Cândido, acha que o mundo vai mesmo acabar em 1960?”. Supôs que eu, como seminarista, estava em contacto com o decisor do destino do Universo! Não me desmanchei, apaguei o pânico da senhora, tranquilizei-a e, com a minha serena autoridade divina, privilegiado pelos segredos dos deuses, sosseguei-a: “Não, Ritinha, não vai acabar! Esteja descansada! Não! Não dê importância a isso!”. Lá foi insistindo que tinha ouvido falar aqui e acolá, e parecia, de facto, segundo ela, que estava previsto ir tudo ao ar. Insisti que nada ia acontecer, e que não se preocupasse. E lá foi à sua vida, a Ritinha, talvez mais serena por dentro, pareceu.

Em 2016, nas férias de Verão, fui visitar os descendentes dessas Senhoras (casal, actuais Directora de Serviços e Director do Instituto de Oncologia de Coimbra). Essa senhora (neta do Director do Liceu de Guimarães, Dr. Américo Guerreiro, se não me falha a memória), quando adolescente costumava ir com a família ali passar férias. De vez em quando entrava na sala, e ficava ali alguns minutos a ver-me tocar piano. Falei-lhe, neste encontro, em Vila de Punhe, dessas visitas que ela me fazia (recordo-me da sua beleza natural de adolescente, e logo na frente de um rapaz vestido de de negro), e falei-lhe da fascinante memória de um canário que decorou a música do folhetim radiofónico do Tide. Só errava (sempre!) a última nota! Do canário não se lembrava, lembrava-se era de um seminarista de negro, como lembrou, que via lá a tocar piano. “Era eu!”, revelei, com natural sinceridade muita curiosidade, neste encontro de idades e de looks meus (nossos…), longínquos, um e outro! Acompanhado da Ângela, jovem mulher, com ar e vestir de Verão (parecendo mais jovem ainda, ali), o cérebro da Cristininha de outrora, o cérbero, agora adulto da Doutora Cristina, deve ter tido um curto-circuito, pois não reagiu, como se o que lhe acabei de contar fosse inventado, ou como se o que lhe acabei de revelar fosse algo de inverosímil, porque lho contei após conversa preliminar ao longo do exterior, e já dentro de casa, dentro de um mundo completamente fora destas duas realidades do encontro da adolescência e da juventuda. Conversámos. Tentei encontrar, em vão, fotografias das senhoras Macambiras. Fotografei o Bechstein onde fui feliz, apesar da sua situação precária, apenas semi-operacional. Ao seu encontro ia eu, na hora da sesta obrigatória (sempre contra a vontade da minha mãe, que o mostrava bem) tocar durante horas e horas, com o encantamento recíproco que trespassava as paredes da sala de visitas em direcção à sala de jantar, onde aquelas senhoras, a D. Isilda e a D. Adelaide (tratada por “menina”, não obstante a volumetria…) passavam a maior parte do seu tempo. Lembranças felizes, estas, de leituras musicais incrivelmente heteróclitas que as senhoras, elas pianistas também, ali deixavam ao meu dispor! Foi um belo contacto com músicas de salão, com as músicas dos salões da alta burguesia, com os eruditos sobretudo românticos, sobretudo Chopin e óperas reduzidas para piano, músicas dos repertórios das “velhas” senhoras que “sabiam tocar piano e falar francês”, e que confiaram em mim, abrindo-me, de par em par, as portas da sala do piano. Foi um belíssimo retrato, vivido em concreto, por dentro, do séc. XIX e do séc. XX romântico (havia mais pianos de outras famílias abastadas da aldeia). Quis um dia fazer um teste de resistência: toquei (estudei) durante 9 horas, repartida pela manhã e pela tarde, até ao sol-pôr. Ainda hoje fico surpreendido por aquelas senhoras não terem perdido a paciência e não me virem dizer, gentilmente, à sala, que seriam horas de me ir embora! Belíssimas memórias!

E vem aqui, a propósito deste espisódio que evoca a minha condição de estudante de seminário, uma referência a essa paródia genial, num texto de humor académico corrosivo, escrito e posto em música pelo compositor russo Mussorgsky (o da deslumbrante ópera “Boris Goudounov”, esse mesmo, militar, primeiro (!), músico, depois (!)). Em 1867 escreveu “O seminarista”, obra burlesca e electrizante para barítono e piano, cujas palavras, do próprio compositor, como disse acima, nos remetem para esta experiência do Seminário de Santiago e para historietas mais ou menos secretas, mais ou menos implícitas nessa microsociedade de natureza religiosa. Essa música foi interdita pela Igreja Ortodoxa Russa, como teria sido interdita pela Igreja Católica-Apostólica-Romana (ou não…), e dependeria do espírito de humor de quem a julgasse… Por volta do ano de 1972 preparei, ao piano, ainda no Conservatório de Música da Travessa do Carregal, esta obra (entre outras obras de Mussorgsky e de Mahler) com o barítono Mário Mateus, a seu convite. Possuidor de uma voz única que não mais ouvi em nenhum lugar, ecoam, ainda em mim, memórias marcantes dessas páginas e desses ensaios com Mussorgsky e Mahler (ciclo Rucker-Lieder), como cúmplices de horas de exaltação musical e de efervescência dramática. Excepcional exemplo musical que simboliza o lado burlesco das relações humanas e o non-sens de estruturas e sistemas próprios incompatíveis com a liberdade e com a vida artística como um eixo da existência de um indivíduo.

É de forma sucinta que evoco, distanciado, com fair-play e com humor, uma viagem aos anos da adolescência, musical e liceal. Pode encontrar-se maior desenvolvimento sobre este período de família e de colégios musicais, espaços mistos de formação musical funcional, de “pompa e de circunstância”, com música clandestina de autodidata, livre, e na entrevista on line “Em Foco” da Miso Music, no ensaio da pianista e Professora Ana Telles sobre a minha música para piano, e ainda na longa Evocação-Depoimento (inédita…) sobre a minha família e a sua importância na minha natureza, herança e no meu percurso como músico. Se isto fosse uma autobiografia, com certeza que estes episódios podiam ser adornados por outros episódios de cariz semelhante ou diferente. O tirocínio (da terminologia castrense) naquela casa preparou-me para as encruzilhadas e os antagonismos da vida militar obrigatória, de que falarei a seguir, onde encontrei personagens semelhantes aos anteriores, anjos e demónios em várias vidas: de estudante, de militar obrigatório, de músico. Em todas elas a música foi a âncora que manteve o navio seguro, foi o eixo de material indestrutível, como se pode constatar pelas minhas declarações nesta conversa escrita em estilo coloquial, mais de carácter humorístico do que dramático ou melodramático, como se se tratasse de “lendas e narrativas” em “serões da província” e de contos de fábulas que eu ouvia, com paciência infantil, da minha avó Balbina, fábulas de Esopo ou de La Fontaine de que ela nunca terá ouvido falar.

A primeira vez que vi de fora aquele mundo, foi em “Aparição”, filme de Lauro António sobre o romance de Virgílio Ferreira. Por ser negro, por ser uma visão deprimente, ou por me ver lá dentro daquela atmosfera medieval, não consegui olhar além de um minuto. Passados anos olhei de novo para o écran e o sentimento foi o mesmo. Mas acho que em ambas as ocasiões não foi o sentir-me dentro do filme, já não como figura ficcionada, também não como figura real, foi antes pela ausência de qualquer sentido estético ou de elementos que me atraíssem do ponto de vista artístico. O humano era o que era.

Em 2014 eu e mais dois amigos, fizemos um périplo pelas casas (seminários) de S. Domingos, Santiago, Santa Margarida, e ainda pela Sé Catedral, locais de ouro da minha vivência de organista. Órgãos em ruínas e órgãos desaparecidos, senti-o como se um tsunami tivesse passado por lá, por aqueles quatro templos dos meus tempos liceais, humanísticos, filosóficos e religiosos. À parte não me ter encontrado com o universo que formou e informou a minha sensibilidade e implacável atracção musical, foram encontros de uma serenidade infinita, de boas memórias, porque tenho tendência para guardar apenas as boas memórias. Foi um tempo perdido, ou esquecido, agora revisitado e reencontrado (já o tinha reencontrado em 2002, no Seminário dos rapazinhos do ciclo preparatório, assim se chamaria hoje…Fiz uma viagem semelhante a Mafra, no regresso ao Porto vindo de Lisboa. O sentimento de prazer nessa revistação e da mesma natureza. Há mesmo afinidades entre ambas as vidas! E a minha irmã pergunta: “porque vais a esses lugares que te fizeram tanto sofrer, e a nós também?”. Ela, que sentiu, diariamente na pele, o sofrimento e as reacções naturais dos pais, vê apenas o sofrimento, não vê as minhas armas mentais que não via, localmente esse sofrimento dos outros, e o meu, sempre o vi como sublimação, como se esse sofrimento nunca tivesse existido. Mas como dizia o já citado Professor Fernando Jorge Azevedo, num depoimento sobre mim para o programa “Ora Bem…”, que me era dedicado, e a que aludirei mais tarde, dizia ele para a televisão que eu era um “adiantado mental”. Nada há a fazer, juntaria eu…E cá me armei, desde muito cedo, para suportar os embates.

Continuando a responder à dupla pergunta, indo agora ao segundo tópico, “o serviço militar”, posso dizer, como qualquer cidadão pode dizer da sua vida, a minha passagem pela “tropa”, tomada com gémea da tropa real, descrita atrás, podia dar um filme, talvez intitulado “Um músico em chamas”, ou aludindo a títulos mais conhecidos: “Um músico em tempo de guerra”, ou títulos semelhantes. Era tropa com todos os ingredientes de coabitação, pacífica e não pacífica de massas de crianças, de massas de adolescentes, de massas de jovens, de massas de adultos!) da tropa seguinte (semanticamente, a única oficialmente reconhecida como tropa…).

Podia estabelecer já uma ponte entre ambas as tropas. Naquela casa da rua de S. Domingos, em Braga, durante o Curso de Preparatórios (Ensino Básico de hoje), sonhava com uma música de carácter mordaz e irónico, ideia que haveria de por em prática anos mais tarde. Dizia com os meus botões: “se soubesse fazer música, fazia uma música para fazer pouco (sic) deste cornetim” que me irritava ao acordar-me durante a madrugada. Essa obra BURLESCA, para piano, foi escrita em 1963, e cumpre esse desejo que exprime a irritação do triste acordar cedo naquelas noites da rua de S. Domingos, na imediações do Quartel de Infantaria 8, e do seu clarim madrugador.

Era o quartel onde haveria, anos mais tarde, de participar em jogos de futebol interinstitucional, perante centenas de soldados do quartel (onde ouvi um dia, lá do meio da multidão de magalas, uma voz da minha terra a incitar-me: “anda, Figueiras! (alcunha de família por parte do meu pai, de Mujães e freguesias limítrofes do concelho de Viana do Castelo!). Mal ele adivinhava que os incitamentos me perturbavam a concentração! (anormal, isto…). Prosseguindo, no meu primeiro embate com a poética militar, durante as inspecções, um elegantíssimo capitão, de nome Figueira, no meu vizinho Hospital Militar do Porto, divertiu-se a humilhar aqueles mancebinhos, todos nus, coitadinhos, um dos quais, eu (apurado para os serviços auxiliares, como perigoso míope de guerra…); um, tinha vindo de Itália e essa figura, alta e rude, médico ou não, passando a inspecção a humilhar os rapazes, com gestos histriónicos ridículos, zurzia neste pobre, vindo de Itália: ”ai! este esteve com a Gina Lollobrígida!…”. Porque foi que os que o acompanhavam se mantiveram calados, coniventes com estes desmandos, sem um sinal que fosse durante aquele tempo todo, até à saída da sala de “deficientes” até àquele inenarrável “juramento” de uma série de “militares” de elite? Esta foi a primeira manifestação da poética militar, além do tal clarim.

Passei pelos quartéis de Mafra, Campo Grande/Lumiar, Estremoz, Rotunda da Encarnação, Bissau, Bolama, ou seja, quartéis de Infantaria, Administração Militar, Engenharia, Cavalaria, Artilharia, Comando de Agrupamento, enfim, um percurso completo para um militar completo…Pouco antes de entrar em Mafra, em Maio de 1965, escrevi a obra MAGNIFICAT sobre poema de Fernando Pessoa, para trompas, trompetes, trombone e timbales (fiz da obra duas reduções para voz e piano, em 1970 e 2017), poema e música premonitórios dos tempos que se lhes seguiriam, com o espectro da viagem para as colónias. Nesse tempo nada compus, e face a isso, perguntava aos meus botões: “o que escrevi até agora foi por acaso, ou é a tropa que não me deixa nem espaço mental, nem força física?”.

Ouvi lá dizer que o Jorge Peixinho, na Incorporação anterior, se sentava nas árvores para compor. O Álvaro Salazar (com experiência também de seminário), foi lá meu contemporâneo, mas à distância, em pelotões e mentes diferentes (humilhado com 100 flexões à frente de todos, por não ter a arma limpa), De Eusébio se contava que, tendo sido chamado ao comandante, por ter chegar atrasado ao quartel, o seu estatuto permitiu-lhe responder: “Oh meu comandante, não me f…..!”). Se se soube tal resposta, foi porque o comandante gostou…Não constou que tivesse sido desterrado, ou ameaçado “pró mato” como eu iria ser ameaçado em África…

A música impôs, contudo, a sua lei, e fui praticando consoante as circunstâncias. Aí, em Mafra, fui aos órgãos existentes no convento, fui ao carrilhão (prenúncio de anos mais tarde ao subir Notre Dame, em Paris, e tocar no grande sino que dava pelo nome de “bourdon”); no carrilhão de Mafra não esqueço aquelas teclas imensas e pesadas; toquei ainda numa sessão final, num surreal encontro de alguns, num piano do tempo dos australopitecos. O grande amigo, médico, Dr. Rui Sequeira fala-me de vez em quando nesse encontro “sui generis”. Havíamos de nos encontrar em Bolama e, anos mais tarde, ao longo da vida, até hoje. Os soldados ficavam em delírio por atirar com dois ou três acordes sobre o teclado, em pulsação rock : “à Elvis Presley”, “à Polnaref”, “à Johnny Holiday”…Além destes, o twist estava na moda (o meu irmão Daniel, exímio bailarino e grande homem, grande jogar de futebol, que os deuses têm, trouxe-me de Paris a partitura, como o meu irmão Luís me traria mais tarde outras partituras de Paris). O Zeca do Rock também reunia gente à sua volta, atentíssima àquela ingenuidade e fragilidade de voz, ao seu cantar coisas “à portuguesa”. E o canto alentejano fazia lei no serviço militar. Nunca ouvi música do Minho!

Um dia, na Tapada da Mafra o comandante da Companhia, capitão Faria, procurava alguém que dirigisse canções ou slogans de regresso ao quartel. Ninguém se ofereceu, e então lançou esta pergunta inesquecível: “onde está esse gajo da Gulbenkian que me anda sempre a chatear?”. Os meus vizinhos empurraram-me logo para campo aberto, e senti-me confrontado, ali, com ele e com centenas de homens. Música e arte são uma coisa, aquilo era outra. Não o pensei, mas era enfrentar o impossível. Era óbvio que não podia fazê-lo, nem tinha preparação, nem espírito para tal coisa. E lá marchámos sem música até ao quartel.

Era tal a minha ligação à Fundação Gulbenkian (também era bolseiro), que um dia, ao balcão de um dos cafés vizinhos do quartel de Mafra, um soldado-cadete abeira-se de mim e pergunta-me em voz baixa: “Tu és mesmo filho do Gulbenkian?”. E no campo de tiro, na mata de Mafra eu, um dos últimos a atirar “ao boneco” com uma walter, e com dificuldade em apontar ao alvo (pois: era míope, e usava óculos…), o comandante aproxima-se e ameaça-me: “se não fizer o mínimo, não o deixo ir mais à Gulbenkian”. Vivi bastante sob a capa do nome Gulbenkian, tendo-se gerado, só porque eu era bolseiro da Fundação Gulbenkian e sendo elemento do Coro Gulbenkian, uma psicose colectiva com um nome misterioso que os militares conheciam como um fantasma dominador! Sem sabermos, aquele nome foi um “manto protector” (com esta expressão, do mundo da bola, moderna, “vocês sabem do que estou a fala…..r!”).

Encontrei recentemente o contrato do empréstimo de um piano pela Fundação Gulbenkian (representada pela Directora do Serviço de Música, Dra. Madalena Perdigão) para a casa do tenor Fernando Serafim, na Avenida Almirante Reis, onde residia. Já em Braga, no Lar Beato Nuno, casa de estudantes e de trabalhadores, da rua dos Capelistas, a Fundação Gulbenkian me disponibilizou um piano para o meu estudo (onde um dia ouvi o dia inteiro claques: “O Braga é nosso, o Braga é nosso e há-de ser!/O Braga é nosso, o Braga é nosso até morrer”: era jogo de subida à 1º divisão, a que assisti com amigos: 4 golos do Teixeira!…).

Voltando ao piano, tentei levá-lo da casa do Fernando Serafim para a Guiné. Contactada a Fundação Gulbenkian nesse sentido, os directores foram sensíveis ao pedido mas, apesar da boa vontade, tiveram de recuar (recusar). Não foi possível tal viagem, porque o piano teria de ser “tropicalizado”, assim me foi dito. Mas foram feitos esforços que nunca pude esquecer (eu chamava, naqueles tempos de penúria, entre os íntimos e família, e com motivos para isso, à Gulbenkian a “Mãe Gulbenkian” (era masculino, o senhor da Arménia, mas como quem geria Serviços de Música e atribuía as bolsas era uma senhora, tem sentido!). Afinal, foi deslocado um piano de uma aldeia minhota que se autotropicalizou em África! (ver história noutro local desta entrevista). O clima africano adoptou-o! Trópicos!

Já com a patente de aspirante a oficial miliciano (antes era um pobre soldado-cadete), em Estremoz, o comandante do Quartel de Cavalaria 3, a quem fui pedir autorização para me deslocar a Lisboa, atravessando Tejo e Alentejo, para ir às aulas no Conservatório e aos ensaios do Coro Gulbenkian (argent de poche…), pôs-me uma condição para me autorizar: “compor um hino para o batalhão” que ia em breve para o Ultramar. Mas, como em Mafra, encomendas militares ou de hinos para instituições não eram comigo, quaisquer que elas fossem. Das Canções para a Juventude, compostas na Guiné, há uma canção que tem o sentido de hino: Minha Terra, poesia de João de Deus, mas só é simbolicamente lindo se cantado por crianças de escola, não por gentes de guerra! E o tenente que tinha de levar o passaporte para me deslocar a Lisboa não era boa rês e criou entraves, mesmo com a autorização para as viagens de Estremoz a Lisboa (na continuação das minhas viagens de Mafra a Lisboa, para poder frequentar aquelas duas instituições).

Foi nestas situações que aprendi que não havia outro caminho que não fosse ir directamente ao vértice da pirâmide, às hierarquias superiores, porque por aí abaixo da escala do poder encontraria obstáculos intransponíveis, um mundo destruidor de sonhos e de irreverências, de submissão absoluta à ordem militar e ao medo de represálias se ousassem, até, tal autorização de contacto. Podia aplicar aqui o adágio popular que um dia o colega de Direcção do Conservatório de Música do Porto, a seguir ao 25 de Abril de 1974, Frenando Jorge Azevedo, lançou a propósito de assaltos ao poder, mesmo no Conservatório: “se quereis ver o vilão, ponde-lhe o cajado na mão”. Esse tenente de Estremoz foi um desses casos. Convenhamos, em sua defesa, que os meus pedidos eram utópicos naqueles contextos…Mas ele só tinha que obedecer…ao comandante. Transgredi as normas, mas foi a única forma de superar os impossíveis. Não o conseguiria se me submetesse a percorrer os canais da cadeia do poder militar.

Foi também em Estremoz que procurei casa onde houvesse um piano para trabalhar, enquanto me fosse mantendo pela cidade. A propósito de “trabalhar o piano, ou trabalhar a música”, a minha inesquecível “tia” lisboeta (homenagem à sua memória), a tia Maria, atalhava-me, com ironia, por eu falar em “trabalhar” a música e em trabalhar o piano! E falava, com grande espírito de humor, desde os meus tempos de estudante e de grande hospitalidade da sua parte e da família, na Travessa da Condessa do Rio, da minha ” música a metro”! Para ela, tudo o que não fosse trabalho manual, não era trabalho! Ideia bem arreigada que defendia estoicamente. Voltando ao piano que procurava, encontrei uma família com um piano de rolos que nunca tinha visto antes. Aí fui algumas vezes “trabalhar” o piano.

Neste quartel de Estremoz ouvi a informação fatídica que eu já esperava, lida por colega (camarada…): “olha, estás mobilizado”, isto é, vais para África. Ouvi em silêncio.

Seguir-se-ia a unidade mobilizadora, RAL1, Regimento de Infantaria, na Rotunda da Encarnação. Aí encontrei, no meu mundo da arte e da música, o inimaginável Tenente-Coronel Cunha Rodrigues, autor de um enigma dos enigmas, o da sua autorização para que pudesse sair do quartel para ir às aulas ao Conservatório Nacional, na rua dos Caetanos. Entrei no Gabinete, e a reacção foi gritar-me para sair e reentrar como devia ser (os passos no ritmo e na direcção certos, porque devo ter entrado à civil…). Lá saí e voltei a entrar, contando bem os passos e tendo em atenção a sua direcção em ângulos euclidianos, segundo a geometria clássica. “O que é que o nosso aspirante quer?”-Comecei a expor, titubeante, o que queria, mas entaramelavam-se-me as palavras e a ordem do discurso! Não sabia por onde. Grita de novo, o comandante, e diz-me: “fale depressa, que tenho mais que fazer!”, e faz-me a pergunta mais perigosa da vida militar: “Pediu ao nosso capitão para vir falar comigo?”-”Não, meu comandante”. Se fosse a uma patente inferior pedir autorização para o fim a que se destinava a minha ida ao comandante, por todos os motivos, chamava-me maluco e não autorizaria, era inevitável. Sem qualquer gesto incriminatório (espantosa reacção!), prosseguiu-“O que é que o senhor quer?”-Queria pedir autorização para poder ir às aulas ao Conservatório”-“Qual é o seu Serviço?”-“Sou chefe de secretaria”–“Então tenho de o mudar de Serviço!”-”Pois é…”-Então vai para os Serviços de Justiça”.-“Pode ser, meu comandante!”.

Incrédulo, gloriosamente vitorioso, saí. Deu ordens de imediato para adaptações e mudanças, e lá fui eu promovido a oficial de justiça. E fiquei com tempo todo que Deus me deu por esta alma do outro mundo que só Ele sabe explicar!…”Como é que conseguiu autorização para sair do quartel?”, perguntou depois o capitão-“Pedi ao nosso comandante”- “Mas não me pediu autorização!”-“Se eu lhe tivesse vindo pedir autorização, o meu capitão não ma daria!”. E era este capitão quem tinha de ir pedir autorização ao comandante, levando ao próprio comandante o “passaporte” para eu sair do quartel. Perversa situação esta para o capitão, que não reagiu, como poderia reagir, militarmente; ficou num dilema entre a espada e a parede, e assim aconteceu sem qualquer atrito. Perguntavam-me os camaradas (assim me tenho de exprimir em semântica militar…), como conseguia sair constantemente do quartel. A uns, que perguntavam, com curiosidade e em tom amigável, respondia que não sabia; a outros, que faziam a pergunta com algum acinte, animosidade e despeito “como é que consegues estar sempre a sair do quartel?”, a esses eu respondia em tom, como dizer…? “Eu sou bom…”.

Do único processo de que me lembro deste Serviço de Justiça, eis um episódio apenas. O sargento, no meu gabinete: ”ele é culpado, meu aspirante, só pode ser, não tem explicação o que aconteceu com a caixa de velocidades danificadas na parada!”. Após esta acusação do sargento, ao chegar à parada, vem o soldado, o réu, o acusado (“inocente até….etc…”, segundo a lei…) ao meu encontro: “Meu aspirante, queria falar com o meu aspirante!”-Então?”- “Eu sou culpado, mas não escreva nada no processo!”, declara ele numa atitude de submissão, de medo (surpreendente e arriscada atitude). Claro que disse que sim: “podes ir descansado que não escrevo nada”. Não sei o que viu ele em mim para ousar enfrentar, confiante, uma situação altamente desfavorável perante a evidência da culpabilidade, segundo a análise técnica e experiente do sargento. Deixei-o ir em paz! O que se passou depois, não soube mais.

Este comandante Cunha Rodrigues, que me colocou neste Serviço dir-me-ia, numa segunda-feira, após ter ido eu gozar o fim de semana, após eu ter ido ao barbeiro, por ordem dele, quando me fui apresentar, com ar de homem de cultura, tranquilamente, seraficamente,: “Sabe, eu compreendo os artistas, mas se eu o autorizo a andar com o cabelo comprido, os outros também querem” (!). Veja-se a relatividade das coisas, sobretudo nas normas militares: o meu cabelo comprido teria um milímetro a mais do que os outros, sei lá… Nem eu tinha consciência de que o cabelo fosse além da urbanidade militar, nem me passou pela cabeça dar um sinal exterior de “artista” através do cabelo, nem na tropa nem em outro tempo ou lugar! Clichés românticos de “artista” vistos pelo público anónimo. Ele pensou assim e comentou, orgulhoso, a sua linhagem: “Sabe, eu sou de família de fundadores da Sociedade Portuguesa de Autores”.

A antítese de comportamento pelo modo como conduziu o caso anterior e pelo modo como me ameaçou na messe dos oficiais, no fim do almoço, na mesa das hierarquias do quartel, revela um comportamento a que os psicólogos dão um nome de “geometria cerebral variável” (eufemismo para um termo da psicologia ou da psicanálise…): “Nosso aspirante, corte-me esse cabelo! Olhe que não me apanha uma porradinha, apanha uma porradona”. Linguagem poética e altamente sofisticada. Ou ainda, ao irromper pelo meu gabinete de chefe de secretaria, antes de ser transferido para os Serviços de Justiça, me pergunta com quem estou a telefonar. “Com o meu irmão, meu comandante”. “Desligue o telefone! Isto não é de Joana!…”. E lá interrompi eu uma brevíssima conversa telefónica que iria ter com meu irmão Artur, enfermeiro e marinheiro, que morava no bairro de Santa Catarina.

Este homem, de trato insuportável para com todos, até para com os de patente próxima, com acessos de verdadeira histeria, de olhares e de reacções medonhos, viria a ser punido (ironia das ironias e coisas do destino!) pelo General Spínola, por erros graves cometidos de coordenação numa operação no sul da Guiné (ouvi, ainda lá, não sei). Encontrei-o um dia no quartel general de Bissau; sentámo-nos num banco do exterior, debaixo de árvores, numa conversa amena de cordeiro inofensivo, que me deixou boquiaberto. Inimaginável ser este o mesmo homem da Rotunda da Encarnação, comandante do RAL1, ainda não o RALIS (ao lado, em Moscavide, também joguei futebol). Após a saída desta figura de humores invulgares e perturbadores, veio outro comandante (cujo nome não recordo, mais tratável), que um dia chamou os oficiais ao gabinete e, voltando-se para eles (nós), atirou esta memorável declaração: “Há alguns oficiais que estão na tropa há já um ano e ainda não sabem, como ali o nosso aspirante Lima!”.

De facto, visto à distância, nunca me deixei submergir por esta aberração que é a guerra, seus cultores, incentivadores e…destruidores, e a aberração de um compositor andar misturado com armas e com estes espaços in-humanos! O meu corpo andou lá como um objecto físico, mas a minha mente, como homem e como músico, pairou acima, sublimando o dia a dia através da simulação de equilíbrios que o cérebro ia assegurando e controlando.

A história teria graça em ser contada, pelo modo como eu subvertia as hierarquias (sem o fazer como fim, mas como meio, e de boa fé!), cujas forças intermédias se questionavam, impotentes perante estas ousadias inabituais de um militar mais romântico ou idealista do que um militar, ainda que miliciano, num tal regime. Estas, alguma das mini-historietas vividas por um músico na vida militar em tempo de guerra colonial, com homens que até me chamavam, musical e ingenuamente “o Paganini”, (sobretudo à mesa do bilhar, que não tendo técnica nenhuma, conseguia jogadas que deixavam a assistência de boca aberta, e eu ria-me, com ironia, autoelogiando-me). No Lar Beato Nuno, na rua dos Capelistas, em Braga, casa de estudantes e trabalhadores, bons amigos chamavam-me “o Bitóben”, “o Schkaganovsky” (a minha fama começava!).

Não fui eu que ultrapassei estas barreiras impossíveis, foi a música e um íman invisível, algures entre mim e o mundo exterior.

Voltando a situações de relações perigosas entre mim e as hierarquias, já tinha sido ameaçado em Mafra, logo nos primeiros dias (alferes Sanches, bom dia, que teria eu dito ou feito?) e algumas vezes na Guiné (ver casos concretos noutra passagem desta entrevista). Ao receber fardamento, fiz um comentário qualquer de que o alferes Sanches não gostou e aproximou-se, em pose ameaçadora, instou-me a repetir. Calei-me, obviamente. Começou cedo, aí, a minha odisseia, como nos anos de adolescência e juventude entre o meu espírito antimilitarista e a disciplina militar.

A disciplina e o rigor de comportamento ético já me tinha sido inculcado na família, não precisava de mais, nem de religiões, nem de forças armadas, mas tive marinheiros na família, amigos em marinheiros e oficias da armada, nos fuzileiros, em transmissões, em artilharia, em infantaria, nos comandos, em cavalaria, e recebi de todos os melhores ensinamentos e gentilezas. Como as cumplicidades na Guiné, como revela este episódio passado com o tenente-coronel Cruz Azevedo, homem do hipismo que um dia avisei que ia aparecer na televisão. um dia, de uma obra minha ouvida na televisão (Impressões do Crepúsculo/Fernando Pessoa), para voz, violino e piano, escrita em Bolama) me disse, no dia seguinte, no seu gabinete, no Terreiro do Paço: “ gostei de te ver e ouvir na televisão, mas o cantor estragou a tua música”. Coitado do Fernando Serafim que cantou com a qualidade e a técnica que lhe eram reconhecidas. Interveio na obra o ilustre violinista americano, que vivia em Cascais, Jack Glazer, que também “estragou a música”! Mas era uma música em diagonal. Torcida, de facto, como é toda a música oblíqua da Escola de Viena e seus descendentes…Não nos riamos no “nosso” tenente-coronel, porque músicos clássicos, profissionais, a maior parte deles, e as escolas, fogem desta música “como o diabo da cruz!”. Não usam a expressão inocente daquele militar, mas usam expressões bem piores, insultando a Deus não ajoelharem perante obras como Moisés e Aarão ou a Escada de Jacob, de Schoenberg, do Concerto de Câmara ou de Lulu, de Alban Berg, do Concerto ou das Cantatas de Anton Webern. Deus existe porque os criou (e não são os favoritos do meu DNA, imagine-se se fossem!).

O inigualavelmente gentil e discreto Tenente Simões, meu comandante de pelotão (6º), teve gestos inesquecíveis de humanidade: um deles, ficando eu para trás por falta de forças, vem atrás com respeitoso e sereno “vamos, Lima!”, e esperou até que eu recobrasse forças e o acompanhasse. Outro desses gestos, este de ordem musical (também humana…) foi de, tendo eu nota negativa no teste de sábado que me impedia de ir gozar o fim de semana (fora do quartel, claro!), neste caso, ir a Lisboa às aulas do Conservatório (Maria Cristina Lino Pimentel, minha professora de piano (presença apenas…), e Jorge Croner de Vasconcellos (composição), pedi-lhe excepcionalmente autorização para me ausentar do quartel. Respondeu-me que não podia autorizar mas, salomonicamente, disse-me: “Vá, Lima, mas eu não sei…”. A minha natureza militar imberbe fez-me, um dia, na parada, incorrer num disparate cómico pelo desconhecimento da terminologia do tratamento entre militares. Querendo fazer uma pergunta ao sargento em serviço neste pelotão, chamei-o desta forma surreal: ”Oh, meu cabo!”. Fleumaticamente, sem um gesto de incomodidade ou de reprovação, deslocou-se até mim, ouviu-me, respondeu e lá regressou ao seu lugar. Tempo de anjos e demónios, como nas casas de natureza religiosa.

Foi desta parada, campo de futebol também, onde uma vez, ingenuamente, deixei os livros num banco enquanto fui ao bar ao lado. Regressado, já lá não estavam, como seria fácil de adivinhar. Desses livros constava o Manual do Oficial Miliciano, que recuperei cinquenta anos depois (livros idênticos) no Museu Militar do Porto, após contactos em diversas instituições do exército, no quadro de uma obra evocadora das viagens atlânticas euro-africanas, no Uíge, para uma obra encomendada pela Casa da Música, para o Remix Ensemble, obra que tem por título HÉAMAÓAMAÉH.sulcos.silêncios, estreada em Fevereiro de 2017, dirigida pelo maestro Diego Masson (CD com o título de Oceânides, editado pelo MPMP em 2016). NO Museu Militar, perante uma biblioteca de milhares de livros, a funcionária pergunta-me: “tem ideia onde os livros poderão estar?”. Olhei para aquela imensidão de livros, fixei-me num ponto e respondi: “devem ser aqueles”. Fomos naquela direcção e… eram eles. O resto é outra história, a história da composição e difusão da obra.

A partida para África ocultei-a a todo o mundo. Essa viagem dava para ir, mas não se sabia se dava para voltar. E quis pensar nisso sozinho, sem a multiplicação “n vezes” da dor. Ninguém chorou por mim, porque ninguém soube, senão duas pessoas: uma, o pai, por causa do piano, que ele trataria de mandar embalar e enviar; outra, a namorada, mãe futura da minha filha Lígia, porque era o contacto quotidiano (por telefone…). Na véspera da partida, à noite, em convívio habitual de família, irmãos, tios, primos e primas, em Santa Catarina, o meu irmão Manuel (Necas) pergunta-me: “vens cá amanhã?”-”Venho”, respondi. Na manhã seguinte, às 08h00 da manhã, embarcaria para a Guiné.

Da partida para esta viagem evoco aqueles minutos dramáticos no Cais da Rocha de Conde de Óbidos em que, no meio do pranto ululante das centenas de mulheres e homens no cais, acenando ao milhar de homens no transatlântico Uíge (de cruzeiros!), um major a meu lado, debruçado a chorar, enquanto eu deambulo entre este cenário dantesco e o piano no salão de festas! Olhava, indiferente, para aqueles dois mares de gente, como que narcotizado, à margem de tudo. Sabia que só eu sabia daquele destino. Habituei-me cedo a gerir o interior e o exterior, numa capacidade rara de autodomínio. Apenas o piano me interessava como ponte entre a realidade e sonho. E ouviam-me, em silêncio, aqueles homens ao lado!

Música real e imaginária funcionaram sempre como uma terapia, como sublimação, daí que nunca tivesse necessidade de psiquiatras. O cérebro funcionou sempre até hoje, com todas as luzes abertas e as tempestades cerebrais dominando o mundo exterior. Pela minha natureza musical (e humana…). Já em África, em Bolama, até dei aulas de música e de ginástica (!) na Escola de Regentes de Posto (Magistério Primário), fora das horas de serviço: a Fátima, guineense, a Ana Peralta, cabo-verdiana (que vi há muitos anos por Lisboa e me ligou para a televisão após me ter visto no programa “Ora Bem!”, em que era eu o “centro da festa”!), e algumas lições a duas crianças, uma das quais é professora hoje no Algarve. Dei lições particulares a fuzileiros, à noite, para fazerem o exames de 2ª ciclo. Encontrava-me no hotel com uma professora primária, que mostrou muita vontade de ter umas noções de música, mas não tinha dinheiro para as explicações, porque mandava o dinheiro para a família, em Trás-os-Montes; não foi impedimento, é claro, e encontrávamo-nos no átrio do hotel (à vista de todos…).

Deste período africano, numa visão de música a que chamaria realista, nasceu, em 2004, desenvolvida em 2012, a obra que evoca, num descritivismo simbólico e metafórico os ambientes da África Negra: MTA M BOR-sons do corubal (nome de rio e de barco), para marimba (editada em CD com o título Para Além da Árvores-Música e Artes em Espelho, pelo Grupo Música Nova). Boa memória de batuques em que um dia me envolvi, numa tabanca, com os autóctones, comigo o Dr. Rui Sequeira, médico de civis e de militares (cirurgião de décadas no Hospital de Santo António, no Porto), e ambos nos envolvemos naquelas danças de transe tão africano. Retenho ainda o “concerto” de memórias rítmicas de um grupo de três percussionistas, no quartel, a meu convite, a troco de arroz, oferecido pelo comandante do CIM (Centro de Instrução Militar), ritmos que parcialmente transcrevi, e onde encontrei aquilo a que Ligeti chamou de “velocidades”, encontradas em passagens de românticos como Chopin, Brahms, entre outros.

E ainda no Campo Grande, Curso de Administração Militar, Quartel de Engenharia, em que um tenente (Pessanha, de origem aristocrática, ao que se dizia…) chegava à sala de aula e desabafava: “esta vida não está nada fácil! Quem quer dar a aula?”. E lá ia o Morais e Castro, comediante e advogado, tomar a vez do professor. Presente na sala um ex-condiscípulo dos tempos de Braga, sem contactos ali, reencontrámo-nos num diálogo quase diário desde 2014, e por aqui soube dessa sua presença simultânea, reencontro pela intervenção de outro ex-combatente em Angola, ex-condiscípulo em Braga, João Costa Gomes, bancário, de Lomar, aquém eu chamo de “meu taxista”! Após um primeiro encontro no Porto, os diálogos mistos, entre música e agricultura, entre Ruilhe e Porto, são animados por essa figura de eleição (sobrinho do Cónego Martins Gonçalves, do Cabido da Sé de Braga), Dr. Domingos Gonçalves, ex-combatente em Moçambique, com “histórias de pasmar”.

Ainda neste tempo, no Campo Grande/Administração Militar, com Quartel de Engenharia emprestado para estes Cursos de Administração Militar, foi um dia punida toda a gente por algo de grave que aconteceu, que eu sempre desconheci, e todos os militares ficaram retidos no quartel, privados do gozo do fim de semana. Mais uma vez a música me salvou. Quando se deu o incidente de indisciplina ou insubordinação anónima ou o que fosse, eu estava ausente, pois tinha sido autorizado, pelo comandante, a frequentar os Cursos Internacionais de Música da Costa do Sol, de Cascais/Estoril, como bolseiro da Organização (à memória do meu amigo maestro Manuel Ivo Cruz, filho do Dr. Ivo Cruz, director do Conservatório Nacional, que me chamou um dia ao gabinete por não ter posto gravata, e às meninas impunha a norma do uso de saia abaixo do joelho, moral materna minhota da religiosidade medieval…). Voltando ao episódio do Campo Grande, Informei o oficial, o “punisher” (citando o filme de acção) dessa minha ausência, portanto do meu desconhecimento do caso. Aceitou a explicação, libertou-me desse castigo colectivo e pude ir, então, gozar o meu fim de semana a Viana (família), Braga (namorada), e aos Cursos de Cascais.

Musicalmente falando, durante essa vida académica musical, em vésperas de nela ver a intromissão do serviço militar, mistura irracional, recordo desse tempo uma longa reportagem no Diário Popular sobre a música portuguesa. Colegas de turma ou do Coro Gulbenkian participaram nessa entrevista colectiva, realizada num dos espaços do Conservatório Nacional: Adriano Jordão, Manuel Morais, entre vários. Eram colegas e amigos desse tempo Jorge Moyano, Maria Guinot, Jennifer Smith…

Nem a guerra me submeteu às suas leis, nem como homem, nem como músico. Sabendo que seria mobilizado, tratei de ver como resolver o problema musical, designadamente da minha actividade pianística, impensável ser interrompida. Ao Comandante do Agrupamento 1975, coronel Sequeira Braga, o alferes Mora, de Carnaxide, casado, pergunta: “Posso levar a minha mulher, meu comandante?”-Não sei. Não sei ainda para onde vamos” (para onde, dentro da Guiné, claro, que era o nosso destino). Eu, ao lado: “ Meu comandante, posso levar o piano?”-“Também não sei…”. Ninguém se riu, pelo menos por fora (como se sorririam em Bolama (“E há piano cá?!”, exclamava quem passava pela ilha. ”Não, é do alferes Lima!”).

Pouco tempo antes de partir, tive de informar disso alguém, e apenas por causa do piano, que tinha sido adquirido a família vizinha, por subscrição familiar! Deixei combinado com o alferes amigo para vigiar o piano, no Quartel da Ajuda, no caso de ele embarcar. Combinei com o meu pai, a quem tive de informar que ia para África, que lhe mandaria um telegrama quando chegasse, no caso de não haver piano onde eu fosse prestar serviço. Esse “camarada” reencontrei-o há anos no comboio, mas não me recordo o nome; era também da “arma” de Serviços de Administração, neste caso, do Comando de Agrupamento 1976, que iria para a Guiné, para Mansoa, quinze dias depois, no mesmo “barco de cruzeiro” Uíge.

Cheguei a Bolama, e a resposta à minha pergunta de uma ingenuidade infinita “há piano cá?”, foi que não (com a cara escondida pelo jornal, “no gozo”, na sala de oficiais). A par deste informação prioritária (!), arrumando a bagagem e recebendo o testemunho do oficial que eu ia substituir, o primeiro gesto de guerra que pratiquei foi pegar na arma que o meu antecessor me passou e metê-la dentro da mala, no cimo do guarda-fatos. Até ao fim. Houvesse, ou não, ataque à ilha.

Romântico, idealista, inconsciente? Tudo, com certeza. Mas a minha alma pairou acima de guerras, de quartéis e de militares, assim saí puro desse período inimaginável para um compositor (homenagem a Messiaen que, no campo de concentração nazi, compôs o celebérrimo “Quarteto para o Fim do Tempo”…). O único livro que esse oficial me deixou na estante foi um relatório sobre o “Julgamento de Nuremberga”. Li-o de fio a pavio, e marcou-me, para sempre, essa leitura lenta, serena, visual, impressionante visual.

Há dia entregou-me uma irmã alguns documentos antigos e papéis de actividades musicais minhas que o meu pai tinha o bom hábito de guardar. Nesses papéis encontrei uma crónica enviada de Bolama para o Notícias de Viana, dirigido pelo Padre Constantino de Sousa, da Casa dos Rapazes. Pensei ter-se perdido esse texto (que um dia o meu irmão Artur deu a ler ao nosso primo comum, Luís de Lima, com os elogios pelo “jeito para a escrita”). O título genérico do jornal era “Meditação”, e o título da crónica era “Strangers in the night”. Transcrevo uma parte dessa surpreendente crónica, escrita em 20 de Janeiro e publicada em 11 de Fevereiro de 1967. Monólogo à margem da guerra e das vidas dos que me rodeavam, gentes europeias, gentes cabo-verdianas e gentes africanas. Solilóquio com essas gentes à volta, ouvindo-me, talvez naquela ilha longínqua. Eis um pouco de lá:

“……….Quantas vezes na minha memória soa o maravilhoso verso de Fernando Pessoa: “meu passado de infância, boneco que me partiram”. Quantas vezes calcorreei os campos e montes da minha aldeia nos meus tempos de criança! Nas noites vividas neste canto oculto de África vivo esses mesmos tempos de infância: os caminhos, os atalhos, os campos, a lua…as estrelas…a escuridão…iguais aos da minha aldeia. Só as plantas, as árvores, os nativos, as aves dão um sabor exótico e a realidade da distância. Todo aquele tempo em silêncio nocturno (os fuzileiros, meus alunos de português, a quem mostrei este texto, contestavam este “c”: estavam a antecipar o acordo ortográfico!…), as trevas entrecortadas pela luz longínqua do carro, enquanto percorre os becos da ilha; todo o cenário imenso que me rodeia, desde as luzes da cidade de Bissau, vistas ao longe, lançadas na noite, até ao horizonte escuro onde se projectam silhuetas estranhas e ao infinito do céu estrelado, tudo me mergulha numa profunda contemplação e me cerca de um espectáculo maravilhoso e fantástico, eu próprio alheio aos companheiros silenciosos como a noite…….” (escrevi Ilha Apocalíptica, título em oposição aparente, apesar de tudo, aos sentimentos expressos, presentes, muito provavelmente, no título futuro, a dez anos de distância, da obra Oceanos Cósmicos (1978/79), editado, com o título definitivo de OCEANOS, pela Discoteca Básica do Ministério da Cultura, em 1986. e em LP- vinil, editado por Grama001, em 2016).

Voltando à história da viagem homérica do piano de uma aldeia minhota até a uma ilha de África, o telegrama combinado com o meu pai marinheiro foi enviado dos correios, contíguos ao cais e ao Café Augusto, onde me sentava para compor as Canções para a Juventude e as Impressões do Crepúsculo (Paúis), olhando o deslumbrante por do sol que via ali ao longe: “mandem piano”, dizia o telegrama. Fui buscá-lo a Bissau, e à chegada tinha militares soldados e oficiais no cais com um cartaz: “onde está o piano”. E eu, dentro barco Corubal, apontava para a embalagem perfeita do piano feita por vizinhos e por diligências de meu pai (marinheiro que não chorava, mas foi visto pela minha irmã mais velha a chorar, escondido, após eu ter partido para a Guiné. “O que foi?!”, perguntou-lhe, em pânico, ela).

Levado para o quartel, para a camarata dos oficiais, antes de ser deslocado para sala de oficiais. Aberto, cuidadosamente, com a ajuda dos soldados (“oh nosso “alfero” (sic…) (alferes), isto é “piss(ç)ado!” (sic); pesado, é a tradução…). Adorava aquele linguajar, e a minha música está cheia desses linguajares não europeus e não ocidentais! Aberta a embalagem (uma obra prima de carpintaria!), toquei o acorde de dó maior, e disse, com um sorriso interior: “este está certo! (sic…)”. E fui percorrendo, a medo, todo o teclado, e estava mais afinado em África do que no Minho de Portugal! Tropicalizado por obra e graça do clima da “mãe África”!

O piano entrou logo para os festejos (!) da noite de S. João desse ano, para acompanhamento das marchas clássicas de Santo António, do S. João do Porto e para as cantigas do cinema clássico português. Além de funcionar como um escape para todos, esteve em situações nos antípodas do entretenimento e do estudo erudito, por ter provocado algumas ameaças futuras de militares que deviam odiar a música, ou odiar a presença de um piano no teatro de guerra, o que se compreenderá. Estes militares não pertenciam, sequer, à minha unidade, fizeram intromissões abusivas e deslocadas na sua lógica de (i)moralização militar.

Logo nos primeiros dias, o coronel Roldão, de um batalhão a dias de regressar à Metrópole, homem farda amarela, de compleição física tosca e de carácter agressivo, passa pela minha secretária, para (desculpe, sr. acordo ortográfico…), abre um livro que eu tinha em cima da minha secretária. Era “O concerto”, das Edições Pelicano, de Ralph Hill, com 491 páginas, comprado em Março de 1964. Folheia-o uns segundos e lança-me esta ameaça: “olhe se quer ir pró mato!” . A que propósito esta ameaça? Como “retaliação” humorística, diria, mas não foi, durante um jantar, perguntei na minha mesa se sabiam como se chamava a esposa do coronel Roldão (na mesa, os amigos alferes Mora, alferes Oliveira, o médico, Dr. Rui Sequeira e mais alguns): “Não”, responderam, naturalmente-“É Roldana!”, disse eu com o ar mais sério deste mundo, com requintado e sádico sabor militarizante. Gargalhada espontânea que ecoou por toda a sala, despertando a atenção dos oficiais superiores que olharam todos na nossa direcção, também o coronel Roldão! Não foram além do olhar. Se perguntassem porque nos rimos, mandar-me-ia “pró mato”, o coronel Roldão, se soubesse o motivo da gargalhada?

As pragas das ameaças prosseguiram. Meses mais tarde, estava a tocar piano na sala de oficiais (para onde tinha deslocado, entretanto, o instrumento), e o major (ou capitão?) Matos, do CIM, dirige-se-me com a mesma ameaça: “olhe se quer ir pró mato!” e manda-me interromper o estudo. Obedeci, que remédio! Eu ia para o piano fora das horas de serviço. Fez ainda outra ameaça numa pequena altercação de corredor: aproximou-se ameaçadoramente (como o alferes Sanches em Mafra), e calei-me. Estes dois oficiais integravam outras estruturas (unidades) militares um, Roldão, coronel, a dias de regressar à Metrópole, o outro, comandante do CIM (Centro de Instrução Militar), que havia de entrar em conflito aberto com o coronel Sequeira Braga, Comandante do Agrupamento da Região Sul, a que eu pertencia.

Figuras rudes no trato e de carácter belicista, esse carácter manifestou-se em combates de hierarquias nos conflitos com esse comandante de Agrupamento (natural de Guimarães) este, sim, com moral e jurisdição para me “mandar pró mato…”, se infringisse gravemente o regulamento de disciplina militar, tão “grave” como estar a tocar piano fora das horas de serviço, ou por ter um livro de análise musical em cima da mesa. Homem de outra estirpe, civilizado e homem de cultura, nunca lhe passaria pela cabeça tais desmandos.

Noutra ocasião, ou por minha culpa, ou por culpa do furriel encarregado de entregar material para uma operação, houve um pequeno atraso: “Se eu fosse seu comandante mandava-o já pró mato”. Todos me queriam ver pelas costas, em viagens “pró mato”, isto é, para os corações da guerrilha, e ao folhear ainda hoje o Relatório a que tive direito no fim da “Comissão de Serviço”, penso nos homens europeus e nas populações nativas que sofreram ingloriamente naquelas terras desérticas e inóspitas esquecidas dos deuses e das terras férteis de outras paragens.

Este capitão que me ameaçou encontrei-o anos depois em Bruxelas (1988), numa cerimónia de inauguração da escultura de Fernando Pessoa, obra de Irene Vilar, de Matosinhos, e tentou esquivar-se ao encontro. Embora a minha memória de Bolama estivesse lá com ele, não me furtei ao cumprimento, como num gesto civilizado de tréguas ou de esquecimento (mandar “pró mato” significava mandar para lugares de uma morte (mais) possível!). Era o Capitão Garcia Leandro, hoje general. Esses locais terríveis para onde eles me ameaçavam têm nome cujas sonoridades provocam ainda arrepios, pois embora não tivesse andado lá, vivi-o, com os pedidos de férias que passavam pelos meus mapas de coordenação e com as operações militares que passavam pelos gabinetes: Enxudé, Tite, Buba, Empada, Bedanda, Cumbijã, Catió, Cabedu, Cacine, Guileje, Cufar, Cômo-ilha (Cacine), etc. Penso nos que andaram por lá! Nunca esqueci que dentro da desgraça da guerra colonial eu fui um privilegiado por acaso, não por mérito, e nunca deixei de pensar nos que estiveram no coração da guerra. O meu irmão Artur, fuzileiro, com a especialidade de “torpedeiro detector” (o ouvido musical de família…), também andou por terras da Guiné e de Cabo Verde. Homenagem a ele também. Histórias musicais trazidas de Cabo Verde (gravador National que me serviu para a música da obra Morte de um caixeiro viajante) e memórias de longas ausências de família, a moira (destino) de marinheiros da família.

Um concerto na Associação Comercial de Bissau traz-me memórias sui generis do meu relacionamento com a ”coisa” militar. O violinista Mário Rodrigues, da Orquestra Sinfónica do Porto e companheiro de Conservatório de Música dos tempos de Braga, convidou-me para uma participação musical em Bissau, numa noite organizada pelo Movimento Nacional Feminino. Aceitei, e ele veio, então, a Bolama, para ensaiarmos. No intervalo de ensaio (fora da hora de serviço!) perguntei ao comandante: “posso convidar o furriel Mário Rodrigues a almoçar comigo na sala de oficiais, meu comandante?-“nem pensar!”, respondeu Sequeira Braga (até ele!)!”. Mesmo sendo artista, não cedeu ao rigor das hierarquias. Fiquei com raiva interior, pois confesso que não esperava tal recusa. Ingenuamente pensei que a arte nos ia nivelar naquela circunstância! Até pela sensibilidade e pela religiosidade deste oficial superior. Claro que não almocei na sala de oficiais: fui à messe de sargentos. Nivelei-me a mim próprio e submeti a lei militar à lei da arte e do humano. Esqueci esta história, mas o violinista não, e foi-me falando neste gesto ao longo dos anos. Não hesitei um segundo! A vida seguiu o seu curso e el lá regressou a Bissau.

Antes do nosso pequeno concerto após o jantar há um “espectáculo” que vale a pena recordar. Seria um belo cenário para um surrealista do tipo do Salvador Dali que o representaria genialmente. Neste palco como cenário pianístico com outro cenário ruidoso à volta de altos poderes civis, religiosos e militares da “Província”, confrontei-me através do piano, durante o jantar, com a sua indiferença perante a música de Mozart, Beethoven. Chopin Brahms, e até com umas valsinhas, umas “melodias melodiosas” (como dizia um certo “maestro”), para os atrair. Era um ambiente musical de café-concerto ou de ambiente de hotel, em repertório misto que eu tinha aprendido em sessões de angariação de fundos do Conservatório de Música de Braga, no Campo Novo, e antes ainda nos carnavais do seminário de Santiago, com este violinista e com os irmãos, um com bandolim (mais tarde contrabaixista da Orquestra Sinfónica Nacional), outro com guitarra! Tinha faltado o pianista de bar, Hilário Sanches, para distrair os comensais desta organização do Movimento Nacional Feminino. Então, estas senhoras do Movimento Nacional Feminino pediram-me para o substituir. Respondi que ia pensar.

Desci, então, para a rua, hesitando entre a recusa perigosa e a aceitação diplomática da tarefa. Acedi, a muito custo, e já no palco, ao piano, após minutos de indiferença total e a tocar “pró boneco”, comecei a sentir-me extremamente desconfortável. Ia olhando para a sala, transformada em sala de jantar, e ia constatando que, ou queriam que eu me calasse, ou nem sequer sabiam que eu existia. Nem um olhar vinha na minha direcção, e eu olhava ostensivamente para os convivas. Passei, então, de autores clássicos e ligeiros para improvisações de lógica musical mas, perante a indiferença colectiva, essas improvisações passaram a ser aleatórias e, gradualmente, foram passando a absurdas, muito para além da música tonal bem sonante adaptável aos padrões auditivos daqueles públicos civil, religioso e militar. Nenhuma reacção. Teatralizei com saídas e entradas de palco, ostensivamente, com “clusters” (“cachos” de muitas notas em cada mão, ou em cada braço), em dinâmica fortíssima; olhava para a plateia-sala de jantar e nem um olhar na direcção do piano. Insensibilidade cósmica, desértica. Esperava reacções, fossem quais fossem, e nada. Saí, finalmente, ruidosamente, em atitude provocatória, e nem um bulício em direcção a mim.

Visto agora de longe, posso dizer que fui uma espécie de “Jorge Peixinho” em África, tal como o viram o grande público lisboeta, musical e não musical, nos anos 60, o provocador e o perturbador da ordem pública, da ordem social e da ordem musical, enfim, o protótipo músico de vanguarda, enfim paradigma do desordeiro. Foi uma espécie de happening, à maneira do teatro musical de Darmstadt de Kagel, Globokar ou das improvisações dos New Phonic Art. Desci do palco, anónimo e juntei-me a outros oficiais (da marinha e de outras ramos das Forças Armadas), na sala de jantar, indiferentes também, ao teatro e ao som, com o violinista (o furriel, que faria o pequeno concerto comigo; aqui, sim, nivelados, por estarmos todos à civil!). E lá regressei eu a Bolama, no dia seguinte, prosseguindo o meu estudo de piano, com repertório que ia de Mozart a Liszt, de Debussy a Bela Bartok (Estudos op.18!), de Bach a Brahms, naquele velhinho piano armado em madeira, vindo dos confins de uma aldeia minhota, à espera que me ameaçassem com o “mato”…

Fomos, Comando de Agrupamento, permanecendo em Bolama (onde havia, apesar da guerra, a praia Ofir!!), com o meu piano quietinho, pairando, durante meses, sobre as nossas cabeças, a espada de Tântalo, que era a possibilidade de sermos deslocados da ilha para o continente, zona de guerra (estava previsto ser em Catió). Essa deslocação nunca aconteceu, possivelmente (quem sabe…) devido às boas relações do coronel Sequeira Braga (de boa memória), comandante do Agrupamento, com as hierarquias militares de Bissau.

Alargando a minha resposta para mundos paralelos aos meus interesses artísticos, que fizeram parte importante da minha vida de estudante e de militar miliciano, serviço militar obrigatório, de entre outros interesses culturais e recreativos, destaca-se, no desporto, o futebol (heresia, para uns, mancha na credibilidade de intelectual, para outros, para os meus amigos, compositores ou instrumentistas, para as minhas amigas, compositoras, cantoras ou instrumentistas que desprezam, detestam ou simplesmente ignoram, o que, de resto, aceito como algo de normalíssimo…

Praticante “acima da média”, como costumam dizer os “filósofos da bola”, a bola foi um objecto de relaxe no mundo de disciplina em que sempre vivi, ou em comunidades ou em sistemas de tipo social e académico (o meu primeiro golo foi no campo do Neves, da minha aldeia, com dezenas e dezenas de colegas de Escola Primária, aos 9 anos…”foi só encostar”, como faz o “nosso”…Um jogo promovido pelo clube escocês Dundee, com 100 crianças contra 11 profissionalis foi um claro flashback desse jogo no campo do Neves, nas Neves.! Maravilha para o olhar, esta multidão de miniaturas escocesas!). Em Mafra, na Parada, também, se jogou, e a abundantemente, futebol. No RALIS (Regimento de Artilharia Ligeira Nº 1) e em Moscavide. organizou-se, uma dia, um torneio. O cachet, prémio ou penalização, era uma grade de cervejas para cada um, a ser paga pelos derrotados. Eleito o melhor do torneio, e tendo vencido o torneio, ofereci a minha grade de cerveja aos adversários. Como era abstémio e nem sequer bebia cerveja (não havia ainda cerveja “sem álcool”, ou bebidas “zero”), a saída mais elegante, desportivamente falando, com fair-play, seria oferecer o prémio ao adversário, que recebeu e agradeceu a grade de cerveja entregue directamente por mim…no bar do quartel. Também em Bolama, no quartel e fora do quartel, jogos de grande impacto internacional (!), como já em Braga, em estudante, internacionais no Quartel de Infantaria 8 da cidade ou nos atléticos estudantes do Seminário de Fraião, com outra compleição física e outra envergadura técnico-atlética que eram a nossa vergonha. Ali ensinava um primo meu, muito mais velho, o Padre Avelino Barreto, anjo da família das Netas, enciclopedista, ao que dizem os que o conheceram, adepto fervoroso do seu “xporting” (assim o dizia!) que, em tempos de estudante me enviava de Espanha, de Valladolid, onde permaneceu durante uns anos, partituras de clássicos que comprava em alfarrabistas, e a quem pagava cá com “dinheiro de bolso”, pedindo, por vezes, empréstimos a prefeitos, que depois não aceitavam o dinheiro de volta, quando lhes ia saldar a dívida (Padres Cachadinha (de Viana) e Mariz (de Barcelos), da classe dos anjos de que falo noutro ponto da entrevista). Desses confrontos saíamos derrotados, mais pela força física dos adversários do que por estratégias ou qualidades técnicas de jogadores. Muitos anos mais tarde, nos anos 80, professor no Conservatório de Música do Porto, organizaram-se jogos com estudantes e professores, masculino e feminino (podemos dizer que fomos pioneiros do futebol misto em Portugal!), jogo “a doer” em ginásios do Porto e de Gaia.

Alternei sempre uma grande paixão pela música e pela bola, aparentemente incompatíveis, não vendo nos meus colegas do tempo, como Luí Filipe Pires, Álvaro Salazar ou Jorge Peixinho (já não falo de Emmanuel Nunes…) alguma simpatia por isso. Era aí também um solitário, como nos grupos lisboetas em circuito fechado. “O quê, o Cândido joga futebol?”, perguntavam ilustres senhores e ilustres senhoras da ESMAE e do Conservatório, e lá respondiam do lado: “e grande jogador!”- E eu sorria-me…Tinha como excelentes cúmplices, ainda alunos meus no Conservatório de Música do Porto, a seguir, ilustres compositores e instrumentistas bem conhecidos: António Pinho Vargas, Fernando Lapa, Jaime Mota, José Pina e meninas estudantes que se batiam como verdadeiros astros da bola! Ainda em futebol, destaco um jogo de “grande impacto”, celebrando o fim do Programa da Manhã, de Júlio Montenegro, em 1977, com a presença de Álvaro Costa e Herman Manuel, meus interlocutores, com o próprio Júlio Montenegro (sportinguista do outro mundo!), nessa rubrica musical bissemanal “De toda a música”, integrada nesse Programa da Manhã. Confraternização com almoço e futebol em Vila do Conde, entre profissionais da RDP da Rua Cândido dos Reis, Porto e profissionais da RDP da Rua do Quelhas, Lisboa. O que fiz nesse jogo na segunda parte, talvez me aproximasse do Messi…(sorrindo, de novo, em uníssono, entre a arte da música e a arte da bola).

De leitores das minhas crónicas de sextas-feiras no Jornal de Notícias, na década dos anos 90, destaco Fernando Lapa e Pedro Burmester, que um dia, ao chegar ao Conservatório, confessou: “hoje gostei particularmente”. Nesse texto fiz associações de nomes de compositores a grandes figuras de desporto, como Baresi e Varèse, Paganini e Panagini (do hóquei em patins), entre outros. Outra crónica onde associo o futebol à música pop, escrevi-a aquando do Campeonato do Mundo de 1984 (com Maradona) e da ida a Roma de Madonna (com o lançamento do seu “Like a virgin”), que colocou em alvoroço o Vaticano. Intitulei essa crónica, ao jeito de títulos das minhas obras: “As curvas de Ma(ra)dona”.

(Um segredo aqui revelado: durante alguns anos, após o ano de 2004, escrevi centenas de páginas sobre os temas mais em foco nos meios futebolísticos do país, e tendo reunido essas centenas de páginas dei-lhes, até hoje, o título de “Vuvuzelas”. Aí são abordados temas sobre arte, técnica, estética e ética. Inéditos. Ou não…Se um dia o mundo do futebol, de outras artes e disciplinas os quiser conhecer, talvez saiam do esconderijo…em papel).

Viajando, nesta entrevista, até Bolama, a bela história de um harmónio (mais tarde ouviria, assim, em recordações próximas, as harmónicas de boca de Bob Dylan, de Stevie Wonder, de Rui Veloso…). Convivendo com o missionário da ilha, o Padre Manel, como lhe chamávamos, carinhosamente, o alferes Oliveira , de Azaruja, o Carlos Alberto Mora, de Carnaxide, além do o Dr. Rui Sequeira, médico de militares e de civis (nunca mais encontrei os maravilhosos mangos da Índia que ele nos trazia!), destacavam-se pela presença nos actos litúrgicos…do hotel (“donde tira o dinheiro para nos pagar as cervejas, Padre Manel?” (quando lhe tocava a ele pagar…)-“é da “Varia…”-leia-se “Vária”, que, em latim, se traduz por “diversos”, ou em gíria política, “saco azul”…), enquanto os principais clientes da capelinha do Padre Manel eram o comandante Coronel Sequeira Braga e esposa.

Um dia, propus a este afável e cúmplice sacerdote missionário comprar um harmónio para aquela igrejinha. Ele aceitou de imediato e com entusiasmo. Combinámos que ele faria os seus contactos na Europa, enquanto eu iniciaria recolha de fundos, uma colecta, contactando as pessoas nos caminhos ou nas casas. A população aceitou sem qualquer reserva. “E quando o senhor alferes for embora?”, perguntou um habitante mais avisado. Lá ia respondendo que tentaria que alguém pudesse aprender alguma coisa antes de eu regressar à “Metrópole”. Conseguido o dinheiro necessário, fez-se a encomenda. Passados meses lá chegou um harmónio, vindo de Itália, ainda antes da Páscoa desse ano. Compus uma missa em português estreada no dia de Páscoa de 1967. Os ensaios faziam-se com meia dúzia de rapazes e raparigas de pés descalços.

Uma ocasião, estávamos a ensaiar, perdi-me nas minhas divagações organísticas, improvisando, inadvertidamente, interrompendo o ensaio. A dado momento acordo dessa ausência sonora, tiro os olhos do teclado e não vejo ninguém. Estou só naquela minúscula capela. Imóvel, pergunto: o que aconteceu? Desço, lentamente, até à porta, e vejo pessoas ao longe a correr. Ouço, ao longe, rajadas de metralhadora. É na ilha, ou no Destacamento de S. João, do outro lado do canal? Fico petrificado, entre a saída da capela e o vazio, sem saber o que fazer. Decido, a dado momento, agir, e corro até ao quartel numa distância de uns intermináveis 100 metros, esperando a todo o instante a possibilidade de algo de estranho e sonoro (eufemismo de granada…) me cair na cabeça. Cheguei são e salvo ao quartel e dou com os rostos dos presentes, soldados e oficiais, homens brancos e homens pretos, lívidos e brancos como a cal (nem todos, alguns só assustados!…o Dandam, o Bubakar, o Frederico, homens bons, homens afáveis, e este Bubakar salvou-me a vida, uma noite, após uma intoxicação!). Era do outro lado do canal, ataque ao aquartelamento de S.João (escrevo isto no dia de S.João, no Porto de 2017). Aqueles rapazes e raparigas da igreja aperceberam-se, ouviram e, “pernas para que te quero!”, desapareceram num ápice. Ainda hoje me pergunto como foi isso possível eu não ter dado conta da sua saída, eles que estavam à frente do harmónio e à minha volta? Os ensaios prosseguiram nos dias seguintes, nunca conversámos sobre isto, aprenderam e cantaram a missa com sucesso absoluto.

Não tendo composto muito durante esses dois anos, mesmo assim compus as Canções para a Juventude sobre poesia saudosista dos fins do séc.XIX, para a Escola de Regentes Posto, onde dei aulas de música (formação musical) e de…ginástica, de 1966 até Fevereiro de 1968, mês de regresso de África. Essas poesias estavam contidas no livro da minha 3ª classe que um africano tinha na mão, e lia, na secretaria. Pedi-lhe o livro para ver que livro era, e tive a fascinante surpresa do regresso à minha infância. Pedi-lho emprestado por alguns dias. Assim nasceram, rapidamente, as melodias.

Após o verão de 1967, após um mês de férias na Metrópole, compus a parte de piano para um guitarrista da minha aldeia, António Manso, emigrante em França, cantor, guitarrista de que era professor particular. Era acompanhado por cidadão francês, que o acompanhava, compositor, crítico e professor de canto, vindo de Paris, Maxime Bélliard. Era amigo de Messiaen, e interveio junto do compositor para me receber no Conservatório Nacional de Paris, que aceitou receber-me; porém, só anos mais tarde pude sair do país Fui com uma bolsa da Secretaria de Estado da Cultura, pela mão de João de Freitas Branco, admirador de Xenakis, com quem iria “estudar”, seguindo os seus seminários na Universidade e mantendo contactos regulares no seu Estúdio/Atelier!). Ambos em férias em Portugal, pediram-me música para as suas “galas” em Paris.

Quando regressei a Bolama logo me ocupei da parte de piano, que escrevi directamente em papel heliográfico, sem rasuras, durante uma semana apenas e fora das horas de serviço, claro…Fui fazer heliocópias dessa música ao Quartel de Engenharia de Bissau, onde fui recebido com grande simpatia pelos responsáveis desses Serviços (aí ouvi soldados entusiasmados a comunicaram entre si: “o Marco Paulo está cá!”). Voltando aos jovens da capela, alguns eles frequentavam a Escola de Regentes de Posto. As Canções para a Juventude foram gravadas por esses jovens para a Rádio Bissau que se deslocou a Bolama, gravando também a Missa Pascal, e destas páginas inesquecíveis conservo a gravação lá feita por esse também inesquecível grupo de jovens guineenses e cabo-verdianos. Documento inestimável que conservo como tesouro de África (“bobina sagrada”, escrevi!).

Compus ainda nos cais de Bolama, nas mesas do Café Augusto e durante as viagens de barco Bolama-Bissau-Bolama, e noutro registo da minha actividade de compositor, jã não música funcional, mas música pura, sem destinatário, senão o próprio poeta e o próprio compositor: Impressões do Crepúsculo/Paúis, poema de Fernando Pessoa, para voz, violino e piano. Esta obra seria estreada em 1968, no Salão Nobre da Faculdade de Belas Artes do Porto, por Fernando Serafim, tenor, Jack Glazer, violino, e por mim próprio, como pianista, num concerto organizado pela Juventude Musical do Porto sob tema “Novos Valores”, patrocinado pelo compositor Luís Filipe Pires e pela Presidente da JM do Porto, D. Ofélia Diogo Costa (como em tantas ocasiões, com jovens, o pianista e compositor não foi pago: ”não havia verba…”, “há que dizê-lo com frontalidade!”, onde foi que eu ouvi isto?).

Em 1993 a televisão começou a fazer pesquisas para uma série de programas intitulada “Adeus até ao meu regresso”, da autoria de Júlio Montenegro. Um dia, telefonam-me da televisão, pedindo-me para ir lá, para visionar umas imagens de uma bobina contendo mensagens de Natal, não me lembro em que termos o fizeram. Cheguei aos Estúdios do Monte da Virgem e o que me mostram? Uma mensagem de Natal de 1968, das dos “votos de muitas “prospriedades””. Era eu, de facto, no écran, com uma mensagem com a duração de 6 a 8 segundos, evocando a encíclica do Papa João XXIII “Mater et Magistra”, que abordava as temáticas das “independência dos povos” e “o direito à sua autodeterminação”. Revi esses segundos no fecho de um dos programas sobre a “GUERRA” de Joaquim Furtado, que viu nesses mensagem de Natal uma tomada de posição política, que o foi, na verdade, de forma veladamente profunda. Eu fui indigitado, por ter alguma experiência, com passagens pela rádio e pela televisão, para representar a Unidade Militar, e tive consciência que teria de marcar presença com algo de mais abrangente do que as habituais inocentes mensagens individuais. Assim me surgiu a ideia de uma tomada de posição mais humanística do que política, tive disso consciência, por interposta figura, figura mundial singular e simpática, que terá dito, um dia, a Kroutchev, que tinham, os dois, alguns pontos em comum. O dirigente soviético perguntou-lhe em quê: “ambos somos rubicundos!”. Li, algures, há muito tempo! E, já que se fala de Kroutchev, veja-se a sua emocionante entrada na sala para um dos concertos, em Moscovo, desse fenomenal pianista americano Van Cliburn (meu pianista de juventude, via rádio), a quem Kroutchov permitiu que fosse entregue o Prémio Tchaikovsky que ele, americano tinha, brilhantemente vencido e que, como americano, não poderia receber (tempos da Guerra Fria…).

Falei com Joaquim Furtado sobre a sua série de programas, felicitá-lo pelo incrível trabalho, identificando-me como autor dessa mensagem e aproveitando para apontar um erro na ficha técnica: Adácio Pestana(trompista) em vez de Duarte Pestana (compositor), irmãos, a propósito da autoria da marcante, mas caída com a colonização, “Angola é nossa” que ouvi, ainda, em 1961, no Seminário Menor, com um grande impacto no público e em mim também, pelo Coro dos Pequenos Cantores da Imaculada: era este o nome do Coro dirigido pelo padre Manuel Faria Borda, já evocado. Agradeceu, surpreendido, por ter sido um simples alferes, músico, não político de vocação ou de ”profissão”, acrescentando que pensou que tal mensagem não era de um militar, mesmo estando eu fardado de alferes miliciano. Curiosamente, dois anos mais tarde, após o regresso de África, escrevi um trabalho na Faculdade de Filosofia à volta de quatro encíclicas que abordam temáticas sociais (disciplina de Introdução à Sociologia), entre elas essa famosa encíclica Mater et Magistra” da minha mensagem de Natal.

A série televisiva “Adeus até ao meu regresso” (título de mensagens enviadas por militares nas colónias) não teve continuidade após diversas entrevistas já realizadas com militares, ex-militares e ex-combatentes. Nunca perguntei, nem mo disseram, mas é fácil adivinhar os motivos. Ainda localizei amigos da época para intervirem na série: Oliveira, de Azaruja, Mora, da Carnaxide, por exemplo. Mantenho ainda contacto com o ex-furriel Taveira, companheiro de hotel e de bar que se embrenhou em luta com um elemento da PIDE pela luta de uma bajuda (moça) de Bolama, contou-me ele durante as suas viagens de Vila Real até ao Porto, viagens que vem fazendo para reclamar junto dos poderes militares e civis direitos que pensa não serem respeitados como vítima da guerra colonial!

Assim o fez, com êxito (tardio…) um antigo condiscípulo, há três anos reencontrado, com quem mantenho diálogos em tertúlias internéticas em temas transversais que vão das minhas incursões vinícolas (de que nada percebo) às suas incursões xenakianas (de que começa a aperceber-se!). É o Dr. Domingos Gonçalves (príncipe de Ruilhe, Braga!), que cruza comigo mirabolantes histórias da música (pode fazer apresentações de Xenakis, como se tivesse conhecido o compositor, diz ele!), histórias mirabolantes também da sua guerra em Moçambique e no Quartel da Ajuda, e narra-me, como um poeta e sábio, a sua exaltante actividade de agricultor, de advogado, de comerciante, de empresário, de empreendedor e de investidor, e que, como filantropo também, marcou Ruilhe e as terras vizinhas.

Belo contador de histórias, sobrinho de cónego da Sé de Braga Martins Gonçalves foi, por isso mesmo, expulso na idade de 16 anos, do Seminário de Santiago, casa onde vivi anos penosos e gloriosos, tempos de encontros e de descobertas, tempos de silêncios e de explosões. Soa-me ainda aos ouvidos e ao olhar aquela explosão fantástica, espectacular, de uma lâmpada no tecto da grande igreja; dela jorrava, na vertical, fogo como se fossem os jorros de água de canais, de cascatas ou de gigantescos jactos invertidos de fogos de artifício, que provocou pânico e debandada caótica de centenas de estudantes e de dezenas de populares; ficou vazia a igreja durante largos minutos até ser restabelecida a ordem eléctrica!

Mas há lá coisa de mais belo que, após conversarmos sobre altas questões da música, da cultura ou da política, ele se despeça dizendo: ”agora vou sulfatar, porque na segunda-feira chovia e tive de interromper” (lembro, por ele, os homens sulfatadores da minha meninice!). Ou: “estou arrasado de cansaço, que andei com o arado todo o dia!”. Ou, que “passei a tarde toda a capinar (“roçar a erva com a capinadeira colocada na traseira do tractor, vocábulo agrícola demasiado moderno pois passou a usar-se para dizer o que faz a capinadeira; até parece derivar do capim africano: rapar o capim, deve ser capinar”, citando o próprio Dr. Domingos Gonçalves). À noite, conversamos, sempre por email, sobre “Fur Elise” de Beethoven, sobre o Fado Hilário (que os Antigos Orfeonistas de Coimbra me pediram para a inauguração do Convento de S. Francisco, e nunca mais o levaram à cena…e gosto do que fiz…e o Domingos mais ainda, porque foi estudante em Coimbra) ou sobre a minha música, ou sobre o personagem Xenakis (referiam-se a ele, professores universitários de Paris, seus colegas: “Ah! Xenakis? Un personnage!”…

Como síntese desta longa resposta-dissertação, há aqui transversalidades que se prestariam, além de a uma inútil mini-autobiografia, a um muito útil tema de tese universitária, versando, numa análise comparada entre sistemas de natureza oposta, mas de organização colectiva semelhante, convergências e divergências entre regime religioso e regime militar. Ficam aqui expostos, como um improviso musical, alguns tópicos da minha relação musical com a filosofia e a ordem militar, com a filosofia e a ordem religiosa pairando, romanticamente, “cantando e rindo”, como cantava na escola primária, sobre as realidades da terra e sobrevoando, livre, resgatando-me, numa atmosfera autoconstruída, como sobrevivente, de máquinas inexoráveis e implacáveis de destino incerto.

Uma última confissão: durante os últimos dias e últimas semanas de vida em África (contagem decrescente desde o princípio, na parede e nos calendários), que antecederam o meu regresso da Guiné, a expectativa do regresso era de tal maneira inundada por um sentimento de felicidade infinita, que me assaltou, mais de uma vez, a loucura de dizer: “quase valeu a pena vir para sentir esta felicidade”. Era indescritível aquela espera de momentos que se aproximavam inexoravelmente (o susto e o risco que corri de não ter podido viajar nessa ocasião fica para outras histórias). Trouxe o piano vendido ao Alferes Andrade ( de Gouveia (onde estará?), que me afastava as mãos do teclado para tocar, com um dedo, o “Alecrim, alecrim aos molhos….”). Encarreguei-me de o trazer e, pendurado no guindaste do Uíge, torceu-se todo, a uns bons metros do solo, e por um triz não se esmagou, com grande estrondo, no porão. Ver terra ao longe, ver o Tejo, ver a Cascais, e tudo o que vem a seguir só os deuses compreenderão a alma dos que chegam.

Queria ter regressado em silêncio à família, à aldeia, à cidade, mas fui recebido com fogo de artifício. Aturdido ainda, rezinguei (injustamente…) com o meu sobrinho que lançou os foguetes, mas compreendi, depois, a felicidade desmedida do outro lado, dos amigos e da família. E celebrou-se o Natal em Fevereiro de 1968, já que o de 1967 foi passado ainda na Guiné. Era guerra e estava vivo. O piano, diz a minha irmã que o viu sair de casa, da pequena sala, saiu como se fosse um caixão. Ia para a Guiné. Não é cómica, esta história dramática para quem a viveu na pele. Para mim é trágico-cómica e faz-me sorrir perante a força humana e a sua capacidade de sobrevivência. É humor do mais elevado, “Valha-me Deus!”, porque transfigura o horror em humor, para quem for capaz, e eu habituei-me a jogar com as forças do mal, dando-lhes a volta. Ela, que tudo testemunhou, nesses momentos e nos dias que o antecederam, não me deixa rir, mas eu rio-me!…Ai de mim se não o fizesse!
De regresso a casa, passei a ver pela televisão as chegadas de barcos com soldados regressados das colónias. Durante meses e anos tive de baixar os olhos e, por vezes soluçar, discretamente. Não conseguia olhar mais do que escasso segundos. Que “não voltem mais!”

Qual foi o primeiro momento em que se lembra de ter tido consciência de que a música era fundamental para si?

Não sei se era alguma tomada de consciência, mas por volta dos 15 anos comecei a perguntar-me como se fazia música, não cânticos litúrgicos ou melodias, que era o que ouvia, mas música. Com colega e amigo de sempre, José Barbosa, pedimos ao professor de canto coral e da disciplina curricular de música (solfejo), autor de música litúrgica, para nos dar aulas de composição. Era o padre Manuel Faria Borda, de Fão, Esposende, de quem já falei. Como não tinha formação para tal tarefa, não foi além de uma aula, e guardo dessa lição um pequeno manuscrito de uma escala em acordes paralelos. Também em férias procurei informação sobre como compor no pároco da freguesia de Mujães (Viana do Castelo), padre Manuel Vilaverde, que compunha cânticos religiosos. Fui ter com ele para me dar lições de composição, na convicção de que para escrever música devia conhecer as regras. Homens generosos, mas apenas intuitivos, e assim foram inglórios os meus esforços para aprender composição. Ia estudar harmónio para a igreja de Alvarães, atravessando estradas no pino do verão, porque o pároco da aldeia queria que eu pagasse 1$00 por hora para estudar na sua (nossa) igreja. Era o cónego Cepa, o pároco de Alvarães. a quem eu “pagava” essa generosidade com anedotas ou adivinhas para o seu pequeno jornal de paróquia. Mais tarde, por intervenção do meu pai, essa exigência de pagamento na minha aldeia desapareceu. “Os outros também querem…”, justificava-se o “senhor reitor”, assim era tratado, mas não havia interessados. Apesar de muitos, nenhum se interessava por estudar harmónio ou música nas férias! Maldade? Não acho. Um pouco rude, embora oriundo de família burguesa industrial dos lados de Guimarães, não era má pessoa. O pretexto era, de facto, de um pragmatismo e de um mercantilismo nada consentâneo com a moral cristã. O seu ouvido musical “era como o Senhor l’o deu”, como diria a minha mãe para os “toninhos” ou para os aleijadinhos, lá isso era: seria por isso? Gesto “freudiano” de “transfert” essa incapacidade de cantar, na verdade bem pior do que um “toninho”, sinónimo de simplório, ou de “pobre de Cristo”?

Apesar disso, “compus”, duas missas que deitei ao lixo, após uma inundação na casa, aí por 1990, além de ir garatujando o que ainda encontro em cópias de clássicos,. Era música neutral, inócua. Talvez não o devesse ter feito. Eram escritas a lápis, em pequenos cadernos. Ninguém soube, porque sendo tudo fora do sistema, mas era uma procura apaixonada, numa “atracção fatal” na clandestinidade…Era a idade da adolescência, a idade da inocência. Empreendi uma busca paralela em casas da burguesia local, e por lá encontrei alguns pianos, todos ao abandono, um deles piano de mesa, que nunca tinha visto, na freguesia ao lado de Vila Fria. Tinha passado a época do “tocar piano e falar francês…”

Por essa altura, em férias, a partir da aldeia, nas férias grandes, mandei vir, do Porto, um livro de Harmonia, sem identificar qual (não sabia…): enviaram-me da Biblioteca Musical, da Rua Cândido dos Reis, rua de grandes memórias (RDP) (onde gravei as Projecções com um harmónio emprestado, gentilmente pela família Peixoto daquela casa comercial), o livro de Harmonia de Tomás Borba, que folheava, folheava, lia, lia e nada daquilo eu percebia! Brilhante e hermético livro, que não compreendia, mas não era culpa do livro, era culpa de um jovem sem guia…( a rima é sem querer!). Mas ficaram desse livro raízes, até dos exemplos imensos e diversificados que não deixava de olhar com grande curiosidade: Scriabin, Stravinsky, Ravel, Dukas, Fauré, Debussy, Milhaud, Bela Bartok, Schoenberg, entre outros modernos e clássicos que os precederam, além de portugueses seus contemporâneos, de Ruy Coelho a Joly Braga Santos, de António Fragoso a fernando Lopes Graça.

No 5º ano do Curso, com o mesmo colega do 3º ano a que já me referi, José Barbosa, homem ilustre e pessoa de uma bondade infinita, iniciámos estudos de composição, desta vez com o compositor Manuel Faria, a quem fomos pedir aulas em regime livre. Este professor já dispunha de formação académica, embora alicerçada em modelos pré-novecentistas, que trazia de Roma, da Universidade Pontifícia. Também nomeado professor de piano, ele que não era pianista, segui-o, entre outros estudantes, durante alguns anos a partir do 6º ano, distinguindo-me, desde cedo, com a indicação do meu nome para representar a música clássica em sessões públicas da Instituição. Pianista orientado por um não-pianista (mas notável músico!), o que não deixou de ser interessante. Organista, convidado por um não profissional, o inimitável Padre Alberto Brás. Desenvencilhei-me…

Há um caso que corporiza bem, invisivelmente, esta questão do poder hipnótico que a música sempre exerceu em mim, desde as cantorias e festas da aldeia, desde os bandolins e órgão de tubos da igreja aos arraiais, aos zé pereiras e às bandas filarmónicas, sem esquecer a luxuriante música da natureza que me rodeava. Esses instantes hipnóticos, inéditos para mim, provinham dos sons de uma grafonola que um tio meu, regressado de França, emigrado, repatriado (sem dinheiro, proibido de regressar a França por isso mesmo, nos anos 30/40) trouxe para Portugal, jovem com tuberculose, “o menino de sua mãe”. Os discos em vinil (naturalmente…) continham (contêm…) músicas dos anos 30. Este património deixou-o aos afilhados, o meu irmão Artur e o meu primo Mário, sendo sua fiel depositária a Catarina, filha do primeiro, irmã do segundo.

Um dia apareceu lá em casa essa grafonola com dezenas de discos. Pu-la, timidamente, a tocar na mesa da nossa modesta cozinha. Os primeiros sons transportaram-me, num sopro instantâneo, a um qualquer recôndito paraíso. Era música que nunca tinha ouvido antes, era música vocal e instrumental que me provocou, de chofre, arrepios vindos de algo de mágico. “Senti pela espinha abaixo a mão de Deus”, mais uma vez o Poeta. Bandolins, banjos, vozes, saxofones, violinos, acordeões, coros. Reouvi algumas dessas músicas nos últimos anos, e senti-a como um retorno absoluto a esses instantes: pasodobles, valses-musettes, tangos e uma infinidade de formas musicais, danças ou outras dos anos 30. Melodias célebres sensuais de Franz Lehar, maravilhosas harmonias dos “Comedian Harmonists” (grupo desfeito com a chegada de Hitler ao poder), e tantas outras. Havia palavras que nunca consegui deslindar, a Internet mas deslindou, fornecendo-me, como que por milagre, os textos integrais! Mas algumas das música desses LP aparecem apenas no écran em grafonola; outras, porém, aparecem em versões diferentes.

Dos magníficos “Comedian Harmonists” fiz pesquisas, e descobri como foi fascinante e dramática a sua história (encontrei filmes sobre eles, eles próprios e actores que os evocam). Solistas, harmonias, melodias, acompanhamentos de piano, de acordeão, que emoção ouvi-los, ainda hoje, como nesse tempo de jovem! Mais do que palavras ou formas musicais, são as sonoridades e os timbres dos instrumentos que me regalavam os ouvidos!

Músicas de encantamento solitário, escola de formação auditiva e cultural às escondidas, foram estes discos inesquecíveis e esta grafonola, que resistem ao tempo, por revisão e update de amigos, de que destaco o último na sua regeneração, Paulo Vinhas e os técnicos que a revitalizaram, com acessórios genuínos às dezenas (agulhas!) da Gramophone! La Cumparsita ou o Les Gars de la Marine, Quand la brise Vagabonde ou Je t’ai donné mon coeur, Paganini ou Coucou continuam a fazer as minhas delícias, com todas as músicas e músicos de que falo aqui (e os de que não falo!). Poesia interdita naquele sistema de ensino, numa época marcada pelo misticismo, também pelo meu misticismo real e assumido! O que vale é que não sabia traduzir! E era em férias, que ninguém via, nem ouvia…E só leio as traduções desta poesia erótica e sensual, décadas depois. Sem perigo de censura e expulsão!

Que professores foram mais marcantes na sua vida?

Aprendi com tanta gente, aprendi tanto na minha solidão, que é impossível dar uma resposta linear. Antes de responder mais especificamente à pergunta devo dizer que desde muito cedo conciliei e cultivei, por imperativo dos contextos em que estava inserido, autodidatismo com os estudos académicos dos diversos níveis (os contextos e as estruturas comunitárias em que vivi, uma família numerosa e instituições o impuseram). O autodidatismo tomou, em muitas ocasiões, o rumo nuclear do meu desenvolvimento interior, passado no silêncio da massa anónima de uma comunidade, solitariamente, com escassos cúmplices, sobretudo em situações de confronto entre as minhas intuições e curiosidades e os academismos de escola, ou de fora de escola, fossem os do curriculum institucional, liceal, fossem estudos musicais, com músicos como Manuel Ferreira de Faria, primeiro, ou Jorge Croner de Vascocellos, depois, cujo ensino se limitava à harmonia tonal e às cifras arrevesadas e anacrónicas da harmonia romântica artificial, vinda de livros de Roma, com geringonças de algarismos (cifras) que nem ao diabo lembrariam, o primeiro, contraponto académico e alguma harmonia tonal, o segundo, apesar de tudo, mais genuíno do que o contraponto tonal que invadiu as nossas escolas de música, via codificação escolástica anti-musical do célebre Fux (como os estimáveis, no seu propósito, “Elementos de contraponto e cânon” de Filipe Pires, com um “cantus firmus” num modo do Bali! Falei-lhe da aridez musical do pequeno livro durante as Jornadas de Música Electroacústica de Viana do Castelo e ele foi aberto na concordância comigo. Eu acabava de falar sobre esse(s) livro e o(s) inertes e os seus problemas para o ensino da composição, e designadamente da grande polifonia clássica. Concordou, em público, com a minha tese, mas pouco depois saiu uma nova edição do livro. Como Galileu, “eppure si muove”, isto é, estou de acordo contigo, mas o livro continua no apoio aos professores de composição, a apoiar os não compositores.

Por mais estranho que pareça, não foram músicos, professores de composição, senão em algumas bases de escola, que mais me marcaram: foram professores de filosofia e de disciplinas afins, pelo menos se pensarmos num período ainda obscuro ou tímido do ponto de vista ideológico, ainda presente quando regressei da guerra colonial. A entrada na Faculdade de Filosofia, enquanto esperava pela conclusão do processo para Professor de Canto Coral no Liceu Sá de Miranda, de Braga, para o qual fui nomeado, primeiro, “excluído” depois (mais uma exclusão!…) por ter regressado da Guiné apenas em Fevereiro de 1968, foi determinante. Essa importância senti-a no decurso dos estudos efectuados que conduziram a uma transformação geral das minhas estruturas mentais a vários níveis. Essa experiência universitária, que eu previa curta, até o encerramento do processo do Canto Coral, iria ter a duração de cinco anos (!), coexistindo com a actividade docente nos conservatórios de Música de Braga e do Porto, de que falo noutras passagens desta entrevista, e ainda nos Cursos Silva Monteiro e na Escola Nocturna do Campo Alegre.

Do Professor Jorge Croner de Vasconcellos, extremamente conservador e alheio a toda a modernidade, devo-lhe, por estranho que pareça, a ginástica opressora do contraponto estudado tim-tim-por-timtim (já o tinha estudado em Braga, com Vítor Macedo Pinto, que me deu a primeira e única lição de dodecafonismo, marcante, apesar de efémera), do mais básico àquela fase em que não vejo em nenhuma escola ninguém debruçar-se: contraponto a 5, 6, 7 e 8 vozes (além de contraponto a 2, 3 e 4 vozes, claro), em todas as “espécies” e “misturas”, seguindo-se o contraponto a dois coros, com as suas técnicas internas de rigor técnico ao serviço do resultado musical; isto, meses a fio, sem um desvio que fosse para a composição pessoal, para a criatividade individual, para a descoberta de si próprio, como eu viria a praticar na minha docência,pública e de escola. Retirando, por feitio, tudo o que de bom posso tirar de alguma coisa de mal, senti, mais tarde, que pelo menos este trabalho foi uma interessantissima introdução (inconsciente, minha e do mestre!)) à orquestração, pois esse rigor e lentidão (irritante!) levaram-me a ver a música pelo seu interior até aos encontros aparentemente impossíveis dos princípios e do seu resultado musical final.

Num simples exercício de 1ª espécie (como se diz em gíria académica), como professor, mais tarde, pude descortinar os níveis de abstracção e de possibilidades de um desértico e esotérico espaço a duas vozes isócronas. Falar-me das “fugas em espelho” da Arte da Fuga, que me desvendou, de ver o Orfeu de Gluck em cima do piano, onde corrigia os trabalhos dos alunos (dando a palavra aos presentes), do falar com admiração da modulação em Schubert, do fazer-nos ouvir, num disco em vinil (naturalmente…) que alguém lhe terá emprestado, não sei quem, música de Debussy, pelo próprio Debussy, tudo isso me marcou; falar de Fernando Pessoa, com quem se cruzava (“quando penso que passava ombro a ombro por um génio, e não me dava conta!”, lamentou-se ele, um dia na sala de aula), falar de como o poeta escreveu “O Guardador de Rebanhos” numa só noite, de pé, debruçado num toucador (aparador, cómoda…), marcou-me; perder tempo, irritantemente (para mim…), com enlevo, com senhoras intrusas e apaixonadas por ele, a falarem de gatos, marcou-me; homem de uma elegância de trato e de porte invulgares, também nas viagens que fazia, como membro de júris, aos conservatórios da província, esse homem, como homem de cultura e como modelo de grande elegância na convivência social marcou-me. Devo-lhe ainda as idas à Ópera, ao S. Carlos (Teatro Nacional de S. Carlos): “tenho aqui um convite para a ópera, posso oferecer-lho, o Sr. Lima quer ir?”. A minha resposta era evidente. E passou a ser uma das minhas casas musicais, pela mão do professor. Fez ainda parte do júri, o Professor Croner de Vasconcellos (com Olga Violante e Pierre Salzman), do Concurso de Admissão ao Coro Gulbenkian, a cujas provas me apresentei (até cantei Fauré, que vergonha!). Tendo sido admitido, lá ingressei eu nesse Coro de boa memória onde fui cantando até ir para África, conciliando ensaios e concertos com a vida dos quartéis e com as idas ao Conservatório da Rua dos Caetanos. É caso para sorrir, lembrando a expulsão, anos antes, do coro de crianças da Rua de Nossa Senhora da Conceição!…

Anos mais tarde, a fundadora e directora do Conservatório de Música Braga (Conservatório Regional e depois Escola Piloto Calouste Gulbenkian), D. Adelina Caravana (filha do brigadeiro Caravana, que ela tentou que me livrasse da tropa, pelo que me disse…), quis que o Professor Croner ouvisse a minha obra Projecções, apresentada, com grande êxito (foi bisada!) no Auditório do Conservatório. Esta audição, rodeada de quadros que envolviam o público, no anfiteatro e no palco, em baixo, teve a entusiástica contribuição e cumplicidade do inesquecível Dr. Manuel dos Santos (das artes plásticas, irrepreensível na sua elegância de trato e no seu porte de laço a condizer…), Director da Escola do Magistério Primário de Braga, ali destacado, como Subdirector da Escola Piloto. Ouvida a obra no gabinete, num gravador de bobinas, perguntou, o Professor Croner, após respeitosamente a ter ouvido, com a sua serenidade e delicadeza proverbiais: “É por este caminho que o Sr. Lima quer seguir?”. E de novo vi que estávamos a anos-luz um do outro. Sorri e disse (simplificando!) que sim. Por essa elegância me marcou também. Devido a essa distância de perspectiva do que é o “ensino” da composição, quando regressei da Guiné, fiquei pelo norte (também por família e futuro próximo), pois sabia que tinha alguém da nossa época que me receberia para além das imposições neoclássicas do sistema que ele nunca subverteu em definitivo: Filipe Pires, não obstante diferenças de pontos de vista, mas confluências no essencial, embora academicamente não saísse dos padrões, obedecendo com rigidez ao que o curriculum e os outros alunos impunham (constatei mais tarde, que era possível dar a volta ao sistema (em tudo!) de décadas dentro do próprio sistema). Entusiasmava-se com as minha obras, como os primeiros esboços de Projecções, Impressões do Crepúsculo, com a Sonata sobre temas medevais (canto gregoriano), entre outras, que o surpreendiam pela ausência de informação sobre as minhas fontes e origens, e por desconhecer por completo o meu trajecto musical e académico desde a adolescência, descrito nestas páginas, até aos bancos dos conservatórios, isto é a dimensão imensa de autodidacta.

Ainda no Conservatório da rua dos Caetanos, na aula do Professor Croner, houve um momento curioso protagonizado por um colega do Coro Gulbenkian, António Leitão, maestro de coros e bancário (disse-me ele, um dia: ”fui convidado para o Coro (não me lembro qual), e como o meu tempo se troca por dinheiro…”), poeta, editor das publicações Verbo, que um dia propôs a vários compositores e a discípulos do Professor Croner a composição de uma obra com voz e instrumentos à escolha. O Professor aceitou o projecto, a contragosto, e eu escrevi o Magnificat, poema de Fernando Pessoa, para metais (trompas, trompetes, trombones, tuba) e timbales. Foi uma obra que eu tratei como espécie de manifesto, de ultimatum (“à Fernando Pessoa…”), quer pelo poema, quer pelo modo como o tratei em música. Mais tarde, aí por 1970, fiz a redução para piano, e em 2017 compus uma versão original para a parte de piano, mantendo a parte da voz inalterável.

O Professor Croner leu a partitura como pode, mas não retenho nada de particular, senão o fim do projecto e o retorno às “espécies” de contraponto. A obra havia de ser apresentada pelo tenor Fernando Serafim, a partir dos anos 70. Este o verdadeiro mestre, como os já citados de Braga, maestros, que, sem quaisquer tabus ou exigências, se mostrou disponível, desde a primeira hora, para cantar a minha música, e tudo o que compus para canto e piano nessa época, para ele, constituiu um tubo de ensaio determinante para outras obras futuras.

A primeira obra que lhe mostrei, em sua casa, na Avenida Almirante Reis, foi Nevoeiro, poema de Sebastião da Gama, para voz e piano, e exclamou no fim de a ter ouvido: “Estupenda!”, termo que lhe era caro, como vim a constatar. Num tempo de solidão social e musical, houve alguns anjos (eles rir-se-ão, ou rir-se-iam se me lessem, ou se me lerem…), homens de carne e osso que me abriram as portas, antes fechadas, como compositor, do nível mais básico ao nível mais transcendente, como é a criação musical pura. Esses, os mestres ilustres! Xenakis, o grande, também me acolheu e me ouviu anos a fio! Até ao fim.

Numa idade em que tinha o hábito de procurar figuras que pudessem dizer-me algo sobre coisas que isoladamente tinha composto, levei um dia ao Professor Armando José Fernandes um poema sobre poesia de Sebastião da Gama (um pastiche de Debussy, sem dúvida), sentou-se ao piano e tocou os três motivos com que abre o poema. Comentário: “este material dava para três sinfonias” (o compositor Filipe Pires entusiasmou-se com esta sequência…). Encadeei aqueles três motivos bem contrastantes entre si, mas perfeitamente enquadráveis na técnica de montagem e colagem de Debussy e seus contemporâneos. O ilustre professor analisou aquilo à luz de uma visão clássica de motivo e seu desenvolvimento. Deslocada e desfocada, mas deliciosa e amável análise (ofereceu-me e autografou-me a partitura do seu Scherzino para piano, que incluí no meu programa de piano do Conservatório). Acrescentou algo de mistérios para a época, para mim, que antecipava o meu futuro como compositor: “o senhor tem muito para dizer!”. Senti essa observação como algo de indizível, mas profundo, e perguntei-me onde é que tinha eu esse “muito” para exprimir, e quando aconteceria isso, eu que pouco ou nada de relevante tinha feito ainda. Foi neste quadro, ao mesmo tempo de respeito e de simpatia, com a obediência escolar ao “magister dixit” da vida académica, de colégio ou de conservatório, que escrevi, à revelia, de mestres e de escolas algumas obras, sem ter qualquer contacto com figuras cimeiras da música moderna como Ravel, Debussy, Prokofiev, Stravinsky, Bela Bartok, Alban Berg, Boulez (!) (ver catálogo das obras dos anos 60).

Há a ideia de que eu fui discípulo de Xenakis. Xenakis não tinha discípulos. Vejam o que eu ouvi um dia: um ilustre melómano, após ter ouvido Manta, na Póvoa de Varzim, chamou-me, num gesto de espanto e de admiração pela obra, “o Ligeti português!”. Ora vejam lá o que eu havia de ouvir. Voltando a Xenakis, chame-se-lhes o que quiser aos que estudaram e estudam e aos que tomam a sua música do que de mais extraordinário a espécie humana tem gerado. Tenho vários deuses na minha vida, de Chopin a Debussy, de Bach a Stravinsky, de Beethoven a Messiaen, de Schubert a Pierre Boulez, mas Xenakis foi uma das maiores descobertas da minha vida de músico: não o matemático, não o arquitecto, não o engenheiro, não teorizador, mas o músico, aquele que, como ele dizia, está para além da linha que separa o explicável do inexplicável, a “revelação”, “o inexprimível” e essa linha é a que separa as suas teorias e a sua defesa acérrima das suas técnicas de sua música genial; não a de que alguns ouvem apenas sons dispersos de Metastasis, de PIthoprakta, de Achorripsis, mas a que é comparável às grandes obras de Monteverdi, Bach, Beethoven, Brahms ou Wagner.

E nem sequer estou de acordo com a posição extremista de Xenakis quando ele se demarca de Stravinsky para além do “Sacre”, como me dizia uma vez, quando me deu uma entrevista para a televisão “Pour moi, Sravinsky est le Sacre. Que le Sacre!”. Para ele toda a obra do compositor para além desta não lhe interessava. Tinha esse direito, lá isso tinha. Como Messiaen rejeitava Mahler, como Pierre Boulez detestava Schubert, como outros não suportavam Wagner (Manuel Faria, por exemplo). Como eu dizia muitas vezes, e ainda digo, acantonando todos os músicos e todas as músicas em diversos cantos deste infinito cérebro que Deus nos deu: “ tenho uma cabeça muito democrática…”. Isso não me impede de ter uma hierarquia, mas têm todos lugar neste espaço onde há mais neurónios do que estrelas há no universo (dizem os cientistas…), e são todos e todas meus mestres. Também a músicas portuguesa, a banal ou a de excelência, a “velhinha” clássica e a “troglodítica” das culturas ancestrais, moderna ou de há milénios ou milhões de anos, os outros sons desconhecidos.

Estudou no seminário. Essa experiência foi para si potenciadora ou limitadora enquanto músico?

Já desenvolvi longamente a resposta a esta pergunta, embora enquadrada no serviço militar obrigatório. Foi em Braga, de facto, vindo de uma aldeia de Viana do Castelo, que eu fiz os meus estudos liceais, integrados num sistema de vida religiosa voltados, sobretudo, para estudos de Humanidades. Para responder de imediato à peculiaridade desta pergunta, é preciso acrescentar uma terceira hipótese, a “experiência aniquiladora”, sem que isto queira significar algo para além da elasticidade deste tópico. Em poucas palavras, respondo que essa experiência foi tripartida, isto é, foi uma experiência de natureza e de efeitos potenciadores, limitadores e aniquiladores. As percentagens levariam a uma análise daquilo que provém do sistema e da natureza do próprio indivíduo. Há, certamente, predominância significativa de umas sobre as outras, consoante o ponto de partida. E isto é válido para todos os que conviveram e coabitaram com as diferenças naturais no interior de exércitos, religiosos ou civis, religiosos ou militares sem, contudo, terem chegado à “coincidência dos opostos” ou, ainda, à síntese nessa dialética de forças contrárias. Um músico nesse caos de conflitos e de objectivos diametralmente opostos, seria sempre um sobrevivente. Eu sou-o.

Ainda adolescente, fui expulso do coro de meninos da casa, de forma irracional (disciplinadoramente, passe o termo, disparatada e, mais grave, “aniquiladora”…), e essa exclusão manteve-se durante todo o curso básico de quatro anos (ver noutra passagem da entrevista); para sublinhar a experiência “aniquiladora” desses anos de estudos em Braga, quando saí, ao pedir conselho ao compositor, padre Manuel Faria, respondeu-me, sem hesitar: “Deves deixar a música, porque a música não dá nada. Vai para Coimbra tirar o Curso de Direito, como fez o meu sobrinho”. Foi durante uma viagem para Lisboa: eu ia para ensaios com Fernando Serafim, ele ia (em segredo, compreende-se) para encontros (aulas privadas) de orquestração com Frederico de Freitas. Isto responderia, em síntese, à pergunta. Mas declaro já que não tive consciência, nunca, da gravidade dos dois actos ocorridos de forma diferente, em circunstâncias diferentes e em idades diferentes. Mas sintetizam o modelo e a ideologia, a prática e a teoria.

Como digo noutro local, não guardei qualquer ressentimento ou rancor. Penso que isso se deve ao meu carácter e, instintivamente, a atracção pelo que virá a seguir no futuro, sem saber como ele será. Era o vazio na minha frente. “A música não dava nada, de facto”, mas era uma declaração à margem de uma força da natureza! Manuel Faria era, em Portugal, o maior compositor de música litúrgica em Portugal (recordo as suas melodias desde a aldeia de infância), talvez o único digno da demonstração da existência de Deus por música litúrgica ou religiosa, embora todos os compositores litúrgicos sejam, neste ponto, de um pragmatismo e de um egocentrismo nada condizente com o divino: só o que eles compõem serve para os seus coros cantarem as glórias do Senhor. Na esteira do grande, pragmático, egocêntrico, mas genial, o único: J.S.Bach! Assisti a uma discussão acesa entre dois indivíduos sobre se a música de Bach deveria ser tocada nas igrejas católicas por ele ser protestante. Teria os meus 16 anos , mas nunca esqueci. Um dos contendores era oriundo de uma ordem religiosa, outro, o organista, oriundo dos seminários de Braga (José de Sousa Marques). Foi em Gondarém, Caminha, numa celebração litúrgica de missa nova. Grata recordação de ensaios levados a cabo pelo multifacetado Professor Doutor Amadeu Rodrigues Torres (era apenas estudante nessa época, o mais velho da aldeia), Padre Freitas, capelão de Santa Luzia (de que me recordo, nos ensaios, e nós rapazes brincávamos com isso: “experimenta assim, verás, o efeito é outro!”, o padre Júlio Maia (eram três irmãos padres da minha aldeia, e no total seríamos uns vinte estudantes!); excelentes vozes e excelente cumplicidade nos preparativos de tal festa, aliciante para os mais novos também.

Concluindo, por agora: o tocar-se Bach, e não ser proibido (!) nesta casa, era, um bom exemplo de “experiência potenciadora”, e dela há motivos para falar noutras passagens.

Precisando um pouco mais esta questão a que já aludi acima e em outros momentos desta entrevista, abordá-la-ei de forma mais concreta e compreensível. Essa experiência foi ao mesmo tempo potenciadora e limitadora, por um lado, porque havia espaço para a prática da música enquanto manifestação colectiva funcional, por outro lado, não como actividade prioritária isolada do seu papel de mediador litúrgico e religioso, por isso limitadora para quem quisesse ir mais além, dada a natureza da instituição, onde a música ocupava lugar secundário. Paralisadora ou aniquiladora por ser um espaço, antítese de um compositor contemporâneo, num contexto de uma escola vocacionada para objectivos de “profissionalização” religiosa, num envolvência de técnicas com vistas aos objectivos em causa. O pensamento contemporâneo não é incompatível com uma ideia de aproximação ao divino, de Messiaen a Penderecky, entre tantos, esses são praticantes livres, por fora do sistema de postulados para o exercício do poder hierárquico em ligação directa, administrativamente falando, passe a expressão, com o “divino”. Parafraseando a expressão medieval da “filosofia, escrava da teologia” (“philosophia ancilla theologiae”), aqui também a música era escrava da sua função litúrgica e das funções do sagrado, dentro de sistema global vindo de Roma como centro tecnocrático de operações divinas. Quem quisesse ir para além do estipulado pelos regulamentos e pela ordem estabelecida tinha de o fazer solitariamente.

E aí nasce o dilema só ultrapassável com rupturas paralelas com a coexistência do continuum, utilizando conceitos da física e da música elctroacústica…. Assim, regressando à pergunta sobre experiência potenciadora, limitadora, inibidora ou paralisadora do desenvolvimento artístico, dos milhares e milhares de jovens que passaram por seminários, no interior ou no exterior do sistema de ensino laico-religioso, durante um século, quantos encontramos comprometidos e se sentiram potenciados, limitados, inibidos, paralisados pelos códigos do sistema?

Não podemos esquecer que esta realidade social da frequência de jovens num estabelecimento de ensino religioso, misto, uniforme ou integral, coincidia, pelo menos em Portugal, com a inexistência, nos meios mais pobres ou vulneráveis, de escolas e de liceus, sendo os seminários os espaços que permitiram a milhares de jovens fazerem os seus estudos. A frequentação destes estabelecimentos de ensino obedecia a motivações puramente religiosas de jovens que queriam seguir uma via religiosa, por um lado, de jovens que pretenderiam, eles ou as famílias, fazer os seus estudos que de outro modo não seria possível fazer, por outro. Não estou a ver um jovem que quisesse estudar música (uma utopia naquele tempo), escolher aquelas escolas. E aqui, em Portugal, e no Minho de onde eu sou originário, em particular, havia uma grande diferença entre os vários Minhos: o Minho rural, profundamente religioso, diria mesmo, o Minho do fundamentalismo religioso, idêntico a todos os fundamentalismos do mundo, e o Minho liberal marcado pela presença de estudantes oriundos de meios com uma grande actividade industrial. Música como forma de vida? Música como arte a ser praticada como tal? Nem eu pensava nesses termos!

A coabitação de milhares de jovens provenientes de regiões contrastantes, do ponto de vista sociológico dos mundos rural, proletário e burguês ou médio-burguês, misturas de famílias extremamente pobres e de famílias abastadas, do empresariado, das indústrias florescentes e das famílias simplesmente ricas por herança. Foi nesta conjuntura de assimetrias sociais niveladas pelo sistema de administração dos princípios religiosos e pela ordem comunitária que vivi esses tempos de adolescência e juventude, um tempo e um templo de anjos e demónios, de misticismos e de degradações, de boas intenções e de incredulidades. Naquela casa onde vivi quatro anos, anos de fome, como nos anos seguintes e no serviço militar (inadaptação fisiológica absoluta aos horários de regimes de vida colectivos ou comunitária, isto é, ao regime alimentar imposto à comunidade!) e de exaltações místicas e académicas coabitei, pacificamente, seraficamente, com autênticos labirintos da natureza humana, entre centenas de jovens e dezenas de adultos.

A música passou pela mesma dicotomias de exaltações e de frustrações: expulsão do coro, sucesso no solfejo, início da prática organística, sucesso escolar com distinções e prémios, “por mérito literário” e por “bom comportamento”. Senti ao de leve, ciúme e emulação de alguns, no 4º ano. No futuro repetir-se-á este anátema dos filósofos Plutarco e Hobbes: “homo, homini lupus”. Antes, como depois, sempre, em todos os períodos da minha vida musical, passei por cima de verdadeiras tempestades com uma tranquilidade e uma serenidade quase inexplicáveis. Sem azedume, como que pagando, pelo prazer lúdico e intelectual dos livros de estudo, além do prazer da descoberta da música, os imprevistos (mais um eufemismo…) das relações humanas.

Há músicos portugueses ilustres e compositores célebres de vários países que passaram por seminários ou por instituições iguais, semelhantes ou híbridas, onde práticas de índole religiosa faziam parte da vida dessas comunidades académicas, onde os estudos humanísticos e científicos se misturavam. Por cá, Borges Coelho, Mário Mateus, Álvaro Salazar, Fernando Lapa, Fernando Valente, Amílcar Vasques Dias, e outros que não andaram nessas escolas vocacionadas para o exercício “profissional” da transmissão do saber, do crer e do praticar religioso, mas defendem sólida e intransigentemente os princípios da sua religião de modo constante e avassalador, como os amigos, ilustres compositores Virgílio Melo, João Pedro Oliveira. Stockhausen, Boulez, Xenakis, por exemplo, estudaram em colégios com práticas religiosas, de práticas romanas, protestantes ou ortodoxas…Os colégios, femininos ou masculinos, sempre foram geridos por gentes de natureza e vocação religiosa, de formação institucional ou simplesmente praticantes dos ritos e princípios. Outros, entre uma infinidade deles, foram mais praticantes fiéis do que os que estudantes nessas escolas de índole religiosa: Stravinsky, Schoenberg, Messiaen, Penderecki, Arvo Part, Gorecki e falo de músicas contemporâneas, neorromânticas ou neomedievais, aparentemente em discordância com as práticas conservadoras daquilo que os próprios deuses deles ouvem dentro das suas igrejas, sem falar dos românticos ou dos pré-românticos. Em muitos imperam fanatismos, fundamentalismos e misticismos, coabitando, afinal, com os valores que dominam a sociedade civil não religiosa.

Andei na guerra de religiões de vária natureza, em instituições irmãs nas normas e nos regulamentos que se tocam e cruzam. Vida monástica e vida militar. Eu ria-me, para mim só, dos soldados-cadetes, vindos de famílias burguesas, com formação universitária, que se queixavam do “rancho” e da ordem, assim como de outros procedimentos, e ria-me por dentro, porque eu tinha acabado de chegar de outra vida militar…de índole religiosa. Curiosamente, antes, no tal serviço militar de feição religiosa, passei anos de fome. O que agravava a situação, era o meu organismo e a sua especificidade biológica e fisiológica serem incompatíveis e inadaptáveis a regimes colectivos, a regimes de vida comunitária onde tudo é uniformizado. Num e noutro casos encontrei pessoas de sinal contrário: gente bondosa e gente maléfica; anjos e demónios, é a melhor síntese que tenho (como metáfora…). Essa constatação de que a espécie humana é o que é, ajudou a criar autodefesas mentais (no mundo musical também!) o que concorreu para que em horas dramáticas essas horas dramáticas parecessem irrelevantes. Tudo é ultrapassável e sem importância ao que de aparentemente grave as pessoas lhe possam atribuir. Essas duas escolas ajudaram-me a relativizar tudo e a distanciar-me do lado mau e centrar-me no bom. A conhecer a natureza humana por dentro e filtrar até onde fosse possível fazê-lo!

Lembro-me de, quando mudei de vida, ter tido este desabafo de impotência: “eu não sei escrever, e se quiser escrever?”. De facto não me lembro de se praticar a escrita, até porque o centro desses estudos humanísticos e filosófico do ciclo liceal eram dados em latim, uma aberração medieval. Escrever, já o tinha feito antes a propósito de um recital do pianista Carl Seeman, no Teatro Circo, para o Diário do Minho, a convite do Dr. Manuel faria, o habitual crítico. E reli recentemente esse texto e não está nada mal. Mas não me recordo de nada significativo desses anos em termos de prosa. Lembro-me que escrevi um texto sobre a “Nona” de Beethoven (dei a ler ao Dr. Faria que disse: “considero a Missa em Ré Maior melhor obra do que que a 9ª sinfonia…”). Voltando à escrita, tive esse receio, e nem sei porque me veio esse pensamento. Lembro que me senti como um viajante que olha para trás após uma longa caminhada e pergunta o que viu e o que ficou dessa caminhada. Foi mesmo assim.

Serão invisíveis as origens “potenciadoras”, “limitadoras” e “castradoras” de milhares de páginas que tenho escrito ao longo da vida? Como libertação da opressão do espírito, ou como explosão de potencialidades ocultas? Mas “os nós e os laços” (Alçada Baptista) criados na idade jovem e isolados dos preceitos comunitários, foram cortados, suspensos, ignorados pela imagem que as comunidades religiosas e musicais fora criando, equivocamente, sobre mim, e das incontáveis ocasiões em que eu poderia regressar, como músico, em convívios ou em concertos, em manifestações culturais ou litúrgicas em que eu gostaria de ter participado, fez-se “tábua rasa” (do filme “Eraser”!) da minha existência, como artista, uma espécie de “persona non grata” para as ideologias religiosas, políticas ou musicais.

E eu não faço mal a ninguém! Como dizia aquele candidato do Ídolos da televisão. “”eles não gostam de mim!”. E como adorei esse desabafo, cito-o muitas vezes, com saborosa ironia.

A experiência como organista, na Sé de Braga e na igreja de São João de Deus em Lisboa, teve importância para si?

As primeiras pessoas a quem devo um papel decisivo na minha pesquisa e descoberta individual, musicalmente falando, e o facto de exercer de forma constante a função de organista num tempo de explosão emocional e de explosão do desejo de identificação com o música, como instrumentista e como compositor foram, por estranho que pareça, o padre José Maria Bompastor (Vila do Conde), maestro do Coro de Santiago, igreja mista frequentada pelo povo e pelos estudantes (as moças da parte de baixo da igreja eram um perigo para alguns…) e o padre Alberto Brás que, logo no 1º ano de filosofia (6º ano) me foi buscar para organista da Sé Catedral… Podem-se imaginar os rumores dos mais velhos com esta ultrapassagem de que não tive culpa. Além de actuar como organista, com funções específicas do teatro litúrgico, rituais litúrgicos, ou simplesmente liturgia, termo demasiado redutor para a diversidade de actos religiosos, a inclusão de obras clássicas, originais ou adaptadas, posso afirmar à distância que fazia desses actos litúrgicos verdadeiros actos mistos de sacro e de profano, em que a noção de concerto “laico” tinha todo o sentido nas obras que eram incluídas nas cerimónias religiosas.

Deste equívoco, em comportamento artístico-litúrgico de absoluta boa fé entre o sagrado e o profano, na minha função quotidiana de organista, desde os 16 aos 22 anos, aproximadamente, só tomei consciência em tempos recentes, devido a entrevistas para vários fins, que têm privilegiado os primórdios da minha experiência e consciência musicais. Das minhas actuações como organista na música instrumental e coral litúrgica, fazia dela espaços de ensaio, de pesquisa, de procura para além do acto em si, numa atitude puramente musical de aperfeiçoamento, de expansão e desenvolvimento mental em várias direções, visado técnicas instrumentais, de composição, de leitura, de improvisação, pelo prazer em si, nunca pensando que um dia seguiria a “carreira” musical. Corri riscos de provocar acidentes sonoros, “esborrachamento” de acordes, de falsos ritmos, de desorientação do coro ou de participantes dos actos litúrgicos, ao ler à primeira vista, sem estudo prévio, as peças de que me incumbiam os maestros, substituindo-o por exercícios autónomos, de técnicas pianísticas, de transposições à primeira vista, que fazia ou por iniciativa pessoal, ou a pedido dos maestros (padre Bompastor e padre Brás, já citados, por exemplo, estes, sim, sem darem por isso, impulsionaram o meu desenvolvimento), ou por exercício de técnica digital, isso com vozes e coro, em directo, o que era uma ousadia maior. Ninguém poderia nunca adivinhar o que se passaria na minha cabeça, entre o convencional e o anticonvencional, entre a rotina e a novidade, entre “repetição e diferença” (aplicação “deleuziana”) sem que o ouvinte desse conta desses malabarismos mentais, porque respeitava, por fora, a comunidade, fazendo coexistir dois mundos mentais em confronto. Todo este trabalho solitário foi transferido para o repertório de piano, em que era distinguido nas cerimónias de efemérides anuais da Instituição. Essa minha atitude aberta ao desconhecido provém, não do ensino ou das intervenções das hierarquias, mas duma inquietação interior, dos contactos com o exterior e dos diálogos com colegas com uma forte componente vocacional para a música, embora diferentes das minhas motivações.

Não há só música na minha vida. Há um mundo desconhecido que nunca foi abordado pelos jornalistas, pois é algo que, por tabus e ideias feitas, é incompatível com o mundo da arte: a paixão pelo futebol (como arte). A minha vida musical em coligação e em conflito com o curriculum era acompanhada por esta particularidade de ser, ao mesmo tempo, um praticante exímio de futebol, ao que dizem ainda hoje, quem me conheceu. Isto pareceu sempre paradoxal e absurdo a colegas meus de conservatórios e de Escolas Superiores de Música anos mais tarde. Numa dedicatória de um compositor catalão, escrita num livro com obras de compositores catalães, editado pela Sociedade de Compositores Catalães, que me ofereceu, escreveu ele, num pós-Curso Internacional, num pós-Darmstadt de 1972: “ao maior futeboleiro (futebolista) de Darmstadt”, onde joguei com grandes músicos, como Vinko Globokar (trombonista), Michel Portal (clarinetista), e músicos de muitos outros países (Jorge Peixinho, presente em todos os verões de Darmstadt, naqueles Cursos também, era avesso a tal “indignidade” de mistura de futebol com o sagrado da arte de compor!). Esta dupla paixão e dupla actividade parecem incompatíveis, mas foram essas ambas áreas os motores de sobrevivência em espaços fantásticos, ao mesmo tempo estranhamente sórdidos, espaços que deveriam ser ideal perfeito de relações humanas e estavam longe dessa perfeição (a minha procura em tudo). O genial Xenakis, marginal ao jogo da bola, irónico e indiferente (inimaginável outra coisa, ou não…) coabitava com uma senhora, escritora, apaixonada por futebol e pela selecção francesa de futebol: Françoise Xenakis, a esposa! Mas amaram-se até ao fim, mesmo com algumas modulações pelo meio, não obstante o mundo olímpico do compositor e o mundo prosaico e terra-a-terra da escritora….(Também nos Cursos de Darmstadt o Jorge Peixinho se escandalizou, um dia, ao ver Stockhausen, seu ídolo, dançar, num convívio…Não vi em directo, contou-mo o compositor Filipe Pires, que testemunhou a cena e a reacção do nosso compositor).

Fui contactado pelo SCBraga para integrar a equipa de juniores, após um jogo no campo pelado do Estádio 28 de Maio (relembrou-mo há anos, em Lisboa, o jornalista do Diário de Notícias, meu conterrâneo, José Rodrigues da Silva). O futebol praticado e discutido, consoante as preferências clubísticas dos estudantes, faziam parte da vida quotidiana, do “curriculum”, digamos assim, ou da marginalidade do “curriculum”, com os jogos de clandestinidade de jornais desportivos, comprados por enfermeiros (ou pelos mais velhos), e de “galenas“ das aulas de electricidade, esqueletos de rádios onde se podiam ouvir clássicos e relatos de hóquei em patins ou de futebol, ora às escondidas, ora com cumplicidades.

O escritor Mário Cláudio contava-me, há tempos, que de dentro do Estádio 28 de Maio, em Braga via, no monte em frente, um mar de rapazes vestidos de negro. Era no tempo de Imbelloni, Pinto Vieira, Teixeira, os irmãos Mendonça (Jorge Mendonça um dos maiores tecnicistas que alguma vez vi), e eu estaria lá no meio, embevecido com o que se passava no relvado, com as cores, com o alarido do público, enfim, parecido com o que via nos jogos do Neves, na Escola Primária, no Estádio Alferes Pinto Ribeiro, ou quando Pélé jogou no Jamor (contra o Vicente do Belenenses), ou no Parque dos Príncipes, na sua despedida do futebol, com música, nos pés de Mireille Mathieu, que deu o pontapé de saída (com o meu irmão Daniel, que Deus tem, grande tecnicista, jogador do Vianense, do Neves e das Hirondelles, equipa formada por emigrantes em França). Ou no estádio da Luz, com tios, primos e irmãos, para ver(mos) a desgraça do 1-5 do Benfica-Manchester United de Georges Best, Boby Charlton, entre outros, versus Eusébio, Águas, Simões, José Augusto, Germano e todos os outros (tudo grande e simpática gente, mas…).

Para colegas de profissão e público que tinham (e têm…) uma imagem do compositor como um músico difícil, complicado, intelectual, filósofo, tudo qualificativos que sei que me atribuem, “há-dem” (como se exprimiu um dia, na televisão, um ex-ministro!) sentir um curto-circuito mental ao lerem que fui futebolista, que sou apreciador de futebol como arte, que compus (mas não sabem), que componho (mas não sabem) música para crianças e jovens e que não tenho tabus no que leio, ouço e escrevo (televisão, jornais, contactos e diálogos com os públicos, etc). E que já troquei alguns breves diálogos com jornalistas sobre pequenos-grandes conflitos “futeboleiros” e de instituições.

Regressando à música e à pergunta, a entrada no Coro da Igreja de S. João de Deus, como organista, fi-la pela mão da soprano Elisete Bayan, amiga e colega no Coro Gulbenkian. Lembro o organista da Igreja do Italianos, funcionário da Emissora Nacional, António Duarte Silva, que me ofereceu várias colectâneas de obras para órgão de J.S.Bach. Da Igreja de S. João de Deus à Avenida Almirante Reis eram dois passos, pois estava hospedado (graciosamente!) na casa do tenor Fernando Serafim, e assim fazia um caminho curto até à Praça de Londres, para ensaios e para as liturgia dos domingos. Por lá me mantive até ir para a tropa em Mafra, e depois para a tragédia ou via-sacra dos jovens portugueses rumo à guerra colonial. Pessoas afectuosas e acolhedoras naquele tempo, neste também neste Coro da Igreja de S. João de Deus. Desta experiência como organista estruturou-se uma aprendizagem que viria a sentir em mundos inóspitos, a anos-luz dessa experiência concreta, materializados esses mundos em obras concretas que, ao escrevê-las, tinha a perfeita noção da importância que esse percurso solitário, clandestino, constante estava a desempenhar. Obras como Projecções (harmónio simulando a electrónica), Morte do caixeiro viajante de Arthur Miller (órgão da Capela da Universidade de Coimbra, simulando electrónica), obras com electroacústica, electrónica e computador (fontes originais reais): Oceanos, Lendas de Neptuno, entre outras. A música para A Ilha do Tempo para o Pé de Vento, de João Luís teve no órgão do Conservatório de Música do Porto um papel mediador, juntamente com sons de vibrafone. No órgão insuflei tudo o que havia de virtual no meu espírito dando-me, metaforicamente, as respostas que eu procurava. Ficava na simulação, até ao tempo em que a evolução das tecnologias me dariam as fontes reais que eu intuía, e que sabia um dia me virem às mãos, ou melhor, eu lhes iria ao interior arrancar-lhes a alma.

Que impacto teve a Igreja na sua vida musical?

Seria interessante ver essa pergunta feita a outros compositores: crentes, agnósticos, ateus, moderados, fanáticos, fundamentalistas, praticantes e adversários de religiões. Tive, no curso de filosofia da juventude (dado em latim!) uma disciplina chamada Apologética, que tinha como fim demonstrar que a única religião verdadeira era a católica-apostólica-romana (havia, ou há ainda, um cântico que reza: “fora da Igreja não há salvação”). Sempre achei isso esquisito, e tive colegas que sustentavam boas discussões com o professor da dita disciplina. Um deles era o Bártolo Paiva Campos, lembro-me bem, e eu achava estranho que ele não aceitasse o que era dito, pois “magister dixit”…Era a minha boa fé e ingenuidade. Todas a religiões têm uma “apologética”, pois defendem a sua como única. As guerras…

Para mim, o que está mais sintonizado comigo era o que respondia ao orfeonistas de antes do 25 de Abril sobre as minhas tendências políticas: “é social-democrata?”. “é comunistas?”. “é socialista?”, e isto no coração do regime que era o Oféon Académico de Coimbra. Sentado ao piano, ia improvisando e falando, e respondi lapidarmente em português pouco elegante, mas um termo com força: “sou independente; quero dar bordoada em todos!”. Não faz parte do meu vocabulário, mas foi o que me saiu, enquanto viajava, livremente, pelas teclas do piano, perante a curiosidade quase mórbida sobre o que eu pensava. Responderia como os anarcas de Maio de 1974, nas paredes da Academia: “Viva o cimbalino! Abaixo o café de saco!”, e mais de acordo com temas desta entrevista, e dando a volta ao mandamento de Cristo “ amai-vos uns aos outros” os anarcas escreveram em grandes parangonas de parede da Associação Académica: “amai-vos um sobre os outros”, ou ainda, no “Maio de 68”, nas paredes da Sorbonne: “A bas, Gounod! Vive Xenakis!” (de Gounod, toquei muitas vezes o hino papal, saboroso hino de tocar, e agradável de ouvir…).

Após este exórdio, confesso que estou tão distante dessa questão, passou tanta água debaixo da ponte, citando o filósofo clássico Heráclito (desde o período religioso da minha juventude citadina e aldeã, familiar e colegial), que esta seria uma temática que nunca me ocorreria ou interessaria discutir, não obstante os meus primeiros 20 anos de vida terem sido marcados por estudos do ensino secundário no espaço de práticas religiosas, de vida vivida com o profano e com o sagrado, ao mesmo tempo aceite, pela pureza do espírito e das utopias, imposta pelas perversidades humanas da lei e da vida real. Como, porém, a pergunta é feita e, partindo do princípio de que todas as perguntas merecem resposta, fá-lo-ei, como em toda esta entrevista, numa viagem à memória de memórias.

Do meu convívio com a prática colegial religiosa, ressaltam aquilo a que passei a chamar há alguns anos, “vidas paralelas”, uma delas integradas em estruturas e sistemas de vida comunitária, fosse de colégio, fosse da família, fosse de grupos estruturados, e a vida individual incompatível com essa educação uniforme e ditatorial imposta a todos da mesma maneira, sem se ter em conta a sensibilidade e a natureza de cada indivíduo (difícil, mas não impossível, essa distinção!).

A Igreja, enquanto tal, não teve papel nenhum determinante, se atendermos a que a evolução e o desaguar na música que escrevo, como artista contemporâneo (mais próximo do divino do que a música de igreja, assim o penso!), há anos, é incompatível com padrões académicos e fundamentalistas das religiões, sejam elas do mundo da arte, da política ou da vivência divina. Refiro-me também a movimentos estéticos que em Portugal e na Europa impuseram ditatorialmente, normas fundamentalistas de comportamento individual e escolar. Refiro-me à Escola de Viena, não as suas estéticas, mas as suas técnicas e os seus postulados como verdades absolutas­—dodecafonismo e serialismo— e aos seu divulgadores do pós-Guerra, em primeiro lugar, Pierre Boulez na Europa, Jorge Peixinho, Emanuel Nunes e Maria de Lurdes Martins, em Portugal, e mais tarde discípulos com João Pedro Oliveira, entre outros, grandes figuras da música e que conheci bem e com os quais dialoguei ( e dialogo com os vivos…) ao longo dos anos. Há tanta presença exercida, por tantos, na minha vida humana e na minha vida musical que não tem sentido falarmos dessa questão nesses termos, ou por ser demasiado concreto ou por ser demasiado abstracto, demasiado visível e demasiado invisível, até em sentido contrário do que a Igreja me impôs, não a mim sozinho, mas à família, às aldeias, às pessoas em geral. Deus, Pátria e Família foi o quadro em que a minha infância, adolescência e juventude se formaram, até à fatalidade dramática de uma viagem para as colónias portuguesas.

O que abalou este sistema sobre o qual eu me questionava profundamente? Perguntava-me em silêncio: “será que um dia esta estrutura de que sou informado mentalmente poderá ser um dia ser abalada?” Pensando eu que não o seria, foi-o. Por mais estranho que pareça, foi na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, dirigida por jesuítas. Foi após o meu regresso da Guiné. Todo o meus sistema mental foi reformatado, reformulado, reajustado, e esses cinco anos lá passados (casado, professor nos conservatórios do Porto e de Braga…) foram os mais importantes anos da minha vida, porque reencontrei a minha natureza tal qual era: digo-o noutra passagem desta entrevista, mas aqui cito os causadores da remodelação do meu cérebro e o seu funcionamento com a vida real: além dos clássicos da antiguidade greco-romana (heleno-latina) o estudo de filósofos modernos, como Nicolau de Cusa, Leibnitz, Pascal, Kant, Hegel, Nietzsche, Kierkegaard, Jaspers, Heidegger e um “rôr” deles, além de cientistas que inundavam as disciplinas como a Filosofia das Ciências Físicas, Filosofia das Ciências Matemáticas, Filosofia das Ciências Biológicas, Lógica Moderna, Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa, estudo de literatura Greco-Latina. Tudo estudado em português (!), não em latim. Júlio Fragata a João Mendes, Vitorino de Sousa Alves que falava como um poeta da matemática, deixando-nos perdidos, como iria um dia reviver com Xenakis, em Darmstadt, pela mesma época, início da década de 70. Mergulhado nos labirintos de equações matemáticas intermináveis, escritas no quadro, de costas para o público, na grande sala de Darmstadt, volta-se, de repente, com os seus mini-óculos caídos do nariz para a numerosa assistência internacional e pergunta, em tom afirmativo, sereno e olimpicamente ingénuo: “do you understand…”. Sonora gargalhada explodiu na sala entre aquelas dezenas e dezenas de músicos de tantos países, gargalhada que ainda hoje ressoa nos meus ouvidos, até porque o segui anos mais tarde!

Tudo o que estudei na Faculdade de Filosofia de Braga (onde mantive diálogos interessantíssimos com professores, incluindo a minha experiência de compositor em áreas do domínio científico e filosófico, me conduziu ao contacto deste compositor, um dos maiores compositores e criadores da história da música, com quem tive o privilégio de manter laços afectivos até ao fim: Iannis Xenakis. E ele, marxista, ex-comunista, não se cansava de dizer e de escrever que o cristianismo, falando sobre o sofrimento, sobre a resignação, teve origem nos estoicos gregos. Talvez esta “resignação” que me foi inculcada na juventude e em gerações, culturas e regiões por onde tem sido pregado o cristianismo, embora moldado pelo tempo e pela natureza do indivíduo, informou também o meu carácter, e tivesse passado a chamar àqueles termos outros menos escravizantes, como tolerância, compreensão, condescendência, paciência, racionalidade, humanidade, etc.

Um dia perguntou-me se eu era comunista. “Não, porque pergunta?”. “Porque faz muita autocrítica”. Sei que era uma época de ostracismo dos poderes centrais, de músicos lisboetas também e não me era dada qualquer relevância do Norte para baixo, do rio Douro para baixo (ainda hoje, salvos belíssimas excepções, bem visíveis, de novas gerações). Foi em Paris que recebi atenções de diversas individualidades. Daí que talvez eu próprio tivesse revelado algum cepticismo em relação a mim próprio, comportamento que poderia advir da formação religiosa do “exame de consciência” e da “confissão” em que foi formatada a minha infância, adolescência e juventude. Mais uns pontos de união entre cristianismo e comunismo! A mesma pergunta era feita por estudantes universitários (o 25 de Abril de 1974 fazia furor lá fora!) e eu respondia, disparando com um “sou “supra-comunista”, como podia dizer sobre religião…E assim se fechava a conversa e a especulação sobre as curiosidades das pessoas, sobretudo no capítulo das suas tendências políticas. Assim eu respondia, menos eufemisticamente, aos estudantes do orfeão Académico de Coimbra…

A profundidade da minha natureza musical, de que nunca tive consciência e da qual nunca fiz análise nem na adolescência, nem na juventude, nem na idade adulta, senão em algumas disciplinas da Faculdade de Filosofia: Filosofias das Ciências (Físicas, Matemática e Biológicas), Introdução à Pedagogia, Introdução à Sociologia, Psicologia, Filosofia Contemporânea, Clássicos, em que olhei pela primeira vez para dentro e o analisei à luz de alguns domínios do saber; também senão pela curiosidade jornalística em entrevistas para meios de comunicação, ou ainda em estudos universitários, de professores ou alunos, era incompatível com os objectivos procurados pelo sistema em que estava inserido. Não obstante a irreverência aberta da minha conduta como músico, nunca recebi a mínima reprimenda pelo repertório de organista do dia a dia, de mês a mês, de ano a ano. De cima do piano ( aí sim, havia censura!) roubaram-me um dia um caderno de corridinhos, para o Carnaval. Perguntei muito tempo depois ao Padre Manuel Faria, professor de piano se tinha sido ele a levar essa música, confessou que sim (“Só podia!…”). O reitor da casa, Luciano dos Santos levou-me um dia, do quarto, uma página de música pessoal, que nunca mais ma devolveu (perguntei-lhe mais tarde: “não sei, perdeu-se). Iriam fazer-me o mesmo em Mafra e ao longo dos anos no meio musical, académico e não académico, isto é, empréstimo e roubo de livros (roubo, claro: se não os devolvem…).

Corrompia inadvertidamente o sistema. O conflito era aberto e latente, mas ninguém se dava conta, por um lado, dos conteúdos que eu definia fora dos cânticos em uso, por outro, da transgressão inocente da prática ortodoxa no interior dos actos litúrgicos, dos mais simples aos mais solenes, sobretudo na Igreja de Santiago e na Sé Catedral de Braga. Já sem falar da traquinices de que fui autor, ou fazendo tuilage (termo de Boulez noutro contexto) entre melodias profanas da moda e cânticos com analogias de linha melódica, ou de provocar uma sonoríssima gargalhada do povo e dos estudantes por ter “dado um tom” que eu sabia ser demasiado agudo para um chantre nada propenso a cantar sons agudos. De um “Benedicamus……” entoou apenas “Be (bé)…” e soltou uma agudíssima e estridente gargalhada que se estendeu de forma electroacusticamente reverberante pela ampla igreja de Santiago. Fiz de conta, impávido, no órgão (de tubos) do altar-mor.

Fui chamado ao gabinete do “comandante” da casa. Defendi-me entre o “fizeste por querer!“-“não fiz por querer!”, “não foi, não foi por querer!” (mas foi, e ficou-me como uma das mais belas histórias da minha vida organística). Foi o Américo de Araújo Alves, um bom amigo de Vilar de Murteda, Viana do Castelo, a quem preguei a partida e Deus deve ter sorrido, também com um episódio protagonizado por ele: deu aos foles gigantescos do grande órgão do coro da igreja (eram precisos dois homens a pedalar, e não havia ainda accionamento automático). Decidiu ir para a beira do organista e olhar para o teclado, convencido que tinha deixado ar suficiente (do tipo do controle remoto, entre a distância do fole até à consola do órgão). A dado momento o coro cala-se e o órgão, que devia continuar, cala-se também. O maestro gesticula em direcção ao organista, e o organista, impotente faz gestos de não saber o que se passa. Nestes longos instantes, olha para o lado e o amigo que devia estar a dar aos foles, pergunta, encostado ao teclado: “Não chega?”. Eu esbracejo, ele dá uma corrida, os foles ressuscitam e a cerimónia segue entre os artistas e a assembleia dos fiéis.

Passando dos fait-divers, voltemos à pergunta, comemorando os 90 anos da sua existência, em Dezembro de 2016, as estatísticas dos estudiosos mostraram que frequentaram os seminários se Braga 9.000 jovens durante estes 90 anos. Somando aos milhares de jovens que frequentaram ordens religiosas e outras instituições análogas, pergunto quantos desses milhares e milhares de jovens praticaram a arte musical, como instrumentistas ou como compositores com obra representativa da modernidade e da contemporaneidade? Todos seguiram as profissões mais diversas que nada têm a ver com a música ou com as artes em geral, e os que praticam música fazem-no com fins litúrgicos, ou com fins pragmáticos de imediata recepção popular, laica ou religiosa, ou a praticam em actos de “pompa e circunstância” pouco dignos do divino, mas mais de natureza narcísica e egocêntrica. Assim o vejo, humildemente, infinitamente longe daquilo a que se chama música contemporânea, vulgo música de vanguarda. Há um caso ou outro, e há músicos notáveis que não passaram pelos seminários, mais defensores da sua religião do que os que a praticaram “profissionalmente”. Andei lá, transgredi, de boa fé, pairando, misticamente, acima das humanas arbitrariedades; subverti, em silêncio, irreverente, em espaços vocacionados para a ordem e a disciplina (até fui distinguido, pelo bom comportamento, também “por mérito literário”, com prémios anuais!) e para a exclusão da procura da identidade e da liberdade do indivíduo, comunidades militares e religiosas (talvez por isso se encontrem de mãos dadas, sempre, nas grandes cerimónias regionais e nacionais…).

Em 2016, a Comissão Coordenadora da Comemoração dos 90 anos do Seminário de Braga, como o evoquei antes, convidou-me, através de alguns dos seus elementos, a estar presente na sessão de Dezembro do mesmo ano, com uma pequena intervenção do tipo: “dás umas “pianadas””-“De quanto tempo disporia?”-“Aí uns 10 minutos!”. Mais tarde surgiram alargamentos, não para fazer música, mas falar, ou ambas as coisas. Hesitando durante meses, decidi estar presente. Preparado para falar e utilizar um belo piano de concerto. No Auditório, por razões práticas, o piano saiu do palco e, mais uma vez, a música (mesmo clássicos daqueles tempos de academias que iria evocar) foi silenciada.

Os valores morais, éticos e hereditários que me impeliram a estar presentes foram, assim, os valores de família cuja relação comigo manteve intactos desde a infância, passando por todas a etapas da vida “sob todas as suas formas” como Xenakis se exprimia sobre o amor a propósito da sua obra “Anaktoria” dedicada à poetisa Safo. A minha presença foi, de facto, uma homenagem à família,, com a particularidade de estar presente o Reverendíssimo Arcebispo de Braga que, humildemente, aceitou o meu repto para vir ao palco falar dos órgãos e das suas ruínas que eu tinha testemunhado há uns anos.

Aproveitei para desmontar a ideia errante e equívoca que se pode fazer de alguém, como alguém inacessível, esquivo, sobranceiro que não ligou aos antigos condiscípulos (apareci na televisão, logo sou importante…”Ess’é boa!”, como diria o meu pai, ou “Hom’essa?”, a minha mãe). Mas nunca mais os vi, e eles viam-me com certeza, face ao mundo que me rodeia, o de outrora que desapareceu, a nível liceal, ou de da minha vida de músico para quem tenho uma imagem de músico de vanguarda, isto é, marginal, irreverente, inacessível como é tradicional ver-se a arte moderna e os artistas modernos. Como num palimpsesto, os primeiros 5 anos de seminário desapareceram, submersos pelo fluir do tempo e das viagens. “Eu vim de longe, de muito longe, o que eu passei pr’aqui chegar”, canta o Mário Branco. Foram precisas algumas entrevistas dos últimos tempos para reconstituir algumas camadas desse palimpsesto, isto é, memórias submersas desse tempo de estudante. Escrevi algumas delas em 2015, pelo contacto feito para que eu interviesse nos 90 anos dessa Instituição.

E por que razão fui convidado? Por ter algum destaque na música entre os músicos portugueses? Ou para querer-se demonstrar que os seminários geram músicos e artistas, mesmo representativos do mundo contemporâneos? Cito o Jorge Palma: “Deixa-me rir!”. Além da amizade e da proximidade dos bancos de escola do Curso que me acolheu (os condiscípulos do seis primeiros anos sumiram-se completamente!). E por que razão nunca eu fui convidado ou contactado para manifestações musicais que se realizaram ao longo dos anos em Braga? E fui professor no Liceu Sá de Miranda e no Conservatório de Música cidade nos anos 70 e nos anos 80! Que relação viram em Braga, nas escolas por onde passei, entre um homem com alguma notoriedade pública e o mesmo homem despido desse rótulo, pessoa apenas, de trato e relacionamento normal do quotidiano com o meio em que vive, ou com os seus de sangue e de origem, família, amigos e condiscípulos de escola primária??

De 90 anos e de 8.500 jovens que por lá passaram, que artes cultivadas e artistas nascidos dali? De dezenas de instituições congéneres espalhadas pelo país por onde passaram milhares e milhares de jovens, quantos compositores e pianistas daí saíram, quantos representantes da arte clássica ou moderna? Quantas obras musicais saíram? Quantos saíram dali com percurso que os levou a um estádio de contemporaneidade ou de vanguardismo na criação musical? Não falo de notoriedade, embora também, por ser mais subjectivo. Não falo no plano qualitativo, mas no plano da representatividade e identidade com as transformações profundas da época. De milhares e milhares de jovens que por lá passaram, por que motivo não surgiu nenhum (contam-se pelos dedos de uma mão? Nem sequer!). Representante da modernidade e de cumplicidade com práticas contemporâneas da música: no ensino, nos meios de comunicação, na actividade concertística, na teorização, na criação propriamente dita?

Quantos destes milhares houve que se identificassem, por “pensamentos, palavras e obras”, isto é, com práticas e intervenções a diversos níveis na sociedade portuguesa e não só, com as grandes revoluções contemporâneas nas artes, identificando-se com as grandes transformações artísticas e estéticas operadas no séc. XX, designadamente em música, da Escola Viena e escolas suas contemporâneas, às escolas dos pós-primeira e segunda Guerra mundiais, das grandes experiências de vanguarda às conquistas tecnológicas pós-época industrial, como a música futurista, a música maquinista (“motorista”, vi há anos anotado, por um professor de Paris, numa partitura que comprei nos preços soldés (saldos…) da rua de Roma, do Allegro Bárbaro, para piano, de Bela Bartok), as música concreta, electrónica e electroacústica, por computador, multimédia, as músicas todas, europeias e não europeias? Quais são as profissões de ex-seminaristas? Professores de português, latim, história, empresários, bancários, juízes, advogados, funcionários administrativos, militares, mediadores de seguros, industriais, comerciantes, gestores, jornalistas, médicos, agricultores, aviadores civis, autarcas, políticos.

Durante décadas, certamente centenas de cada uma destas profissões foram exercidas. Em mais de 50 anos nunca ouvi ninguém falar-me da minha actividade artística, qualquer que seja o ângulo por que se avalie a situação. Escrevi durante décadas em jornais, fiz programas para a televisão durante uma década, faço concertos há décadas pelo país, pelo Minho, terras de origem minha, faço conferências há décadas, programas de rádio e emissão de obras de vária natureza nos meios audiovisuais e em concertos pelo país ou como pianista, ou como compositor, ou como comentador. Em mais de 50 desses anos, sobretudo do meu Curso de origem, o de 1952, nunca de algum dos condiscípulos desse tempo me dirigiu a palavra. Para esse Curso eu desapareci no ano em que me reprovaram no 6º ano, aliás o único estudante “adiado”, termo fatídico, escrito a vermelho, na pauta (“Não sabias a definição de “distinção”…disse-me no dia seguinte o “reprovador”. Foi a causa…Ainda hoje não sei…).

Nesse instante, e no ano que se seguiu, senti um terramoto que desabou sobre mim. Passado esse breve período de espanto e de desolação, misturados com a exaltação e a alegria de futebolista e de organista, esse episódio desapareceu da minha vida, memória submersa pela “atracção fatal” da música e pela perseguição de sonhos. Isto não são queixas, são “narrativas” (!) serenas de factos que, curiosamente, e sem dar por isso, desmistificam algumas verdades tidas como intocáveis. Esta ausência absoluta de representantes da modernidade e da universalidade da música para além das fronteiras das igrejas e das catedrais, responde à pergunta formulada pela inexistência de objecto…

Há um hiato de tipo antropológico nesta camada de espécie humana de estudantes anónimos que coabitaram durante um tempo, desapareceram. Os especialistas da história e da psicologia de massas poderão dissecar as causas e desvendar.

Acolheu-me, escolarmente, o Curso de 1953, também sem qualquer alusão às minhas actividades artísticas públicas, que ao longo dos anos tenta manter, em encontros anuais, a chama dos anos jovens. Também sou contactado, mas nunca houve o mínimo indício de quererem reouvir-me como músico ou ouvirem a minha música (até escrevi uma missa pro padre Manel de Bolama e dos Olivais, residente ali, segundo soube…), nunca se interessaram na minha presença senão como pessoa, como figura, ou como símbolo, talvez tudo, pelo que raras vezes compareci, mas nunca como compositor, pianista, organista. Serei um “perigo público” ou “persona non grata” pelos vírus sonoros de que sou portador? Haverá perigo de contaminação dos jovens que por lá andam? Valha-me Deus!

Esta análise é transportável para a minha vida académica de músico. O professor exerce a sua actividade docente no dia a dia da instituição escolar, mas a sua actividade artística e criadora, isto é, a sua individualidade como criativo, está à margem do sistema bem implantado nas estruturas mentais do ensino convencional, em geral inamovível. A obra do compositor é desconhecida, ninguém a inclui nos programas, salvo raras excepções, e todo o trabalho colectivo da escola que exige encontros regulares centra-se na dimensão administrativa propriamente dita e impropriamente dita, isto é, na administração da escola e os seus vários poderes de gestão, a administração pedagógica assente no “satus quo” curricular, nos seus conteúdos e nas suas linhas de orientação imutáveis. Houve mudanças significativas, mas no diálogo entre professores sobre arte e sobre o intercâmbio propriamente artístico dentro da escola e entre escolas é, em geral, inexistente: competição, concorrência, individualismo, por um lado, fronteiras estéticas e fronteiras de formação académica, por outro. Só é “permitido” falar da instituição, não do indivíduo enquanto motor espiritual da instituição. Portanto, vidas paralelas que, como linhas paralelas, nunca se encontram (há quem diga que matematicamente já se encontram…). E, como já fiz citações de vária ordem, diria aqui também que a situação é muito próxima do filme: “Dormindo (coabitando…) com o inimigo”.

Considera-se um pioneiro da música contemporânea na Televisão Portuguesa? Quem incluiria nesse grupo pioneiro?

Há divulgadores ilustres antes de mim e depois de mim, na televisão portuguesa, que toda a gente conhece. Mas aquilo que eu fiz na televisão após o regresso de três anos a estudar em Paris “nem ao diabo lembra”, diria o povo, e são do domínio da utopia. Era o início da era da Produção a partir do Monte da Virgem, e eu senti, mais tarde, que eu vim ajudar a preencher espaços abertos dentro da nova filosofia da RTP. A primeira série que apresentei na televisão tinha por título “Sons e Mitos”, entre 1978 e 1979, entrando “a pés juntos” com a chamada música de vanguarda, mas eu nunca utilizei essa expressão, convictamente e sem subterfúgios. Tratava-se simplesmente de nova música, de novas formas de expressão musical, de grande música como a música do passado, e a minha ânsia era de dar a conhecer coisas novas ao grande público. Era o meu lado de divulgador e a minha faceta de pedagogo e de comunicador. Apresentada e realizada nos Estúdios do Monte da Virgem, em Vila Nova de Gaia, a minha intenção era transportar para Portugal e para o público em geral aquilo de que eu beneficiei durante aqueles anos em França. Aliás, a maior parte das minhas iniciativas de divulgação e de animação cultural, em que a música contemporânea, mas não só, ocupava lugar privilegiado, nunca teve outros fins que não fossem fins pedagógicos: informar, comunicar, exprimir, nunca por razões de outra ordem, fossem de ordem financeira, de publicidade, de fama ou por razões de ordem política, muito menos partidária! Tinha um desejo irreprimível de falar, de dizer coisas, de transmitir, de partilhar aquilo que sabia e que gostava que os outros conhecessem. Livremente. Mas que me ouvissem!

Nesses programas cometi a incrível proeza de passar fragmentos de obras de Debussy, François Bayle, Cage, Boulez, Stockhausen, Kagel, Xenakis, Pousseur, Escola de Viena, Filipe Pires, Amílcar Vasques Dias, Cândido Lima, entre outros. Muitos mais, também jovens, nas séries seguintes. Os meios técnicos e a rede de comunicações entre os diversos Serviços e Departamentos falharam diversas vezes (“fundiu uma lâmpada!”, “não temos luz!”, “o realizador ainda não chegou!”, e por aí fora!), mas nunca ouvi de ninguém da televisão, pelo menos dirigido a mim, qualquer gesto de censura musical ou de atrito comigo como pessoa e como músico. Acreditavam no que fazia e tinha apoiantes no Lumiar, em Lisboa (Luís de Pina e Adriano Cerqueira eram alguns deles!), assim como apoios da crítica (Mário Castrim, Correia da Fonseca, entre outros) e do público. Conservo essas gravações por obra e graça de uma aluna da minha classe de Composição no Conservatório de Música do Porto, que morava na Trofa. A televisão apagava “tudo o que mexesse” para poder gravar outros programas nas mesmas bobinas. Ao visionar esta as gravações e outras das séries seguintes, que fenómeno ou milagre se operou (ou que eu operei!) num sistema audiovisual vocacionado para outros valores completamente fora dos padrões de escuta do grande público? No entanto, surpreendentemente, o aplauso foi global! Glórias de vida efémera.

Se isto é pioneirismo, então aceito essa referência. Ainda nos anos de juventude e da colaboração heroica do tenor Fernando Serafim (apresentava-me no meio musical lisboeta como “o novel compositor Cândido Lima!”), a quem só os deuses poderão pagar em meu nome, voltou-se um dia par mim e disse: ”o Cândido é um pioneiro!”. Eu limitei-me a sorrir, mas nunca compreendi a razão por que o disse. De Mário Castrim ficam referências entusiásticas à série de televisão, a que aludiu mais de uma vez, e o público telefonava para os estúdios do Monte da Virgem a perguntar: “quem é esse Cândido Lima?”. Isto, centrando na pergunta sobre “pioneirismo”, na qualidade de divulgador. Talvez…Nunca pensei nisso. Limitei-me sempre a respirar por música, só isso. Se sou pioneiro como compositor, como professor, ou como outra coisa qualquer, repito, nunca pensei nisso, nem pensarei nunca! Deixo isso para os analistas, musicólogos, ensaístas, filósofos… Volto a afirmar que me limitei (que me limito!…), sempre, a respirar e a amar a vida apenas, através do corpo e do espírito, da música e do desporto, da família aos mundos que me rodearam e rodeiam, com os quais tentei e tentarei, sempre, coexistir e coabitar pacificamente, construindo relações de aproximação e de cumplicidade, como combatente pacífico e íntegro, sem esmorecer nunca, no meio da minha irrequietude. Pioneiro, ou simplesmente comunicador incansável e optimista?

Claro que incluiria como pioneiro da música contemporânea na televisão, ainda que em aparições episódicas, e apenas como compositor e pianista, Jorge Peixinho que, no sul, enfrentou nos primeiros anos da sua vida artística, verdadeiros combates com a sociedade musical e política. Mas também teve a sua corte de adoradores, desde a Fundação Gulbenkian ao mundo das artes em geral, e sobretudo todos os contestatários do regime político de antes do 25 de Abril de 1974. Ao longo dos anos esse pioneirismo de origem foi-se desvanecendo para se tornar numa figura consensual, até a nível académico. Ele, como todos os que nas primeiras décadas da televisão criaram momentos de esperança na transformação de tão fantástico meio audiovisual, despareceram das suas grelhas. Se o pioneirismo deixa raízes, fui pioneiro; se não deixa raízes, chame-se-lhe outra coisa. Talvez…

Como diria um jovem compositor, ao ver-nos, durante um jantar na Gulbenkian, em honra, salvo erro, de Luciano Berio, ao ver o Jorge Peixinho com o vinho à volta e eu com água (ou noutras situações, leite), ele “via um erro de paralaxe”! (ângulo de paralaxe”).

De António Vitorino de Almeida, um pioneiro, à sua maneira, da televisão (como João de Freitas Branco, José Atalaya, entre outros), nos antípodas ideológicos e musicais de Jorge Peixinho (também “um erro de paralaxe”…), contemporâneos no Conservatório Nacional, dizia-me, um dia, sorrindo, com ironia, o Jorge Peixinho: “ele também só sabe tocar o concerto de Tchaikovsky!…”. “Já não é mau”, disse eu…

Como vê o serviço público na Rádio e Televisão, no que se refere à música erudita?

Retomando a resposta anterior, responderei, quer aludindo à parte inicial, quer à parte final, ou seja, a utopia tornada realidade, e a utopia contínua, isto é, imutável, ou ressuscitada. Tive o privilégio de, muito cedo, na minha vida de músico, aparecer na rádio e na televisão (1963 e em 1964!), a partir de Braga, onde conheci um homem de teatro e de poesia, César Augusto, que acompanhava o administrador de televisão, sobrinho e afilhado (dito por ele mesmo) de Fernando Pessoa, Dr. Eduardo Freitas da Costa. Para uma sessão no Salão Medieval da Biblioteca Pública de Braga fui convidado por ambos a fazer, ao piano, música de fundo para poesia declamada por César Augusto, e lembro-me, por exemplo, de “Deu-me Deus o seu Gládio” (da “Mensagem”, de Fernando Pessoa). Tornámo-nos amigos e, em Lisboa passei a ser visita regular da sua casa, na Avenida Estados Unidos da América, perto do Campo Grande. Filipe de Sousa era o assistente musical da RTP, e tinha um programa musical. Em 1963 esperei para entrar no ar, dependendo do fim das cerimónias da inauguração da Ponte da Arrábida, no Porto. Ficámos na expectativa, finalmente, apareci em directo. Toquei a Dança Exótica e o poema Cristo de Sebastião da Gama, para canto e piano, na voz de Fernando Serafim, com declamação de Yvette Centeno. No ano seguinte, na rubrica “Novos valores”, apareceram nesse programa, ainda em directo, o pianista Menéres Barbosa, acompanhando o violinista Moses Sequerra, o pianista Luís Tavares e eu próprio, como compositor e pianista, acompanhando o tenor Fernando Serafim, com os poemas de Sebastião da Gama, Nevoeiro e Caminho (dos 4 Poemas Impressionistas, editados pela FERMATA-Matosinhos). Na apresentação, Filipe de Sousa fez esta observação, que entendi dirigida a mim (vinha de Braga, os outros intérpretes iam do Porto e de Lisboa): “nem todos chegarão ao fim, mas aguardemos o futuro” .

A televisão portuguesa passou por vários períodos de atenção e ostracismo à música erudita. Falo da televisão pública; os canais privados têm os seus problemas com tudo o que é erudito, ainda que não seja despiciendo algum apoio esporádico a espectáculos clássicos. Mas não é essa a função, pela natureza do mercado, embora ache, ingenuamente, que também elas deveriam desempenhar um papel na elevação do nível cultural do grande público. Este agradeceria, não tenho dúvida.

Não tenho conhecimento suficiente, senão como espectador e como antigo colaborador da televisão do Estado, com emissões de programas no Canal 1 e Canal 2, para emitir uma opinião definitiva, crítica, construtiva. Claro que penso que devia haver mais abertura à música erudita no seu sentido mais amplo, alargando essa programação à música e aos músicos de hoje, à modernidade e à contemporaneidade musical, portuguesa e estrangeira, evocando séries de programas de grande qualidade e impacto popular (sem incluir os meus, desses falarão outros) de homens de grande qualidade no capítulo da divulgação de música e de músicos clássicos, como João de Freitas Branco, José Atalaya, António Vitorino de Almeida (que incorre, não poucas vezes, como outros, em asneiras colossais como chamar de “eunucos” a génios colossais como Iannis Xenakis, “atordoada”, como dizia o seu presidente benfiquista, para que me chamou a atenção o amigo Fernando Serafim, espantado e revoltado, com um texto de que me enviou, por carta, uma transcrição de uma página de história da música deste amigo perigoso, grande comunicador e grande demagogo! Somos colegas, mas foi isso muitas vezes…A desinformação no seu auge perante a ingenuidade do público em geral e das escolas em particular. Ouviu o quê de Xenakis? Quantos compassos? Afirmação de“eunuco”, meu caro António Vitorino!…Muitos críticos de jornais, e não só, cujos dislates a história documenta, chamaram “eunuco” a Beethoven, a Bach (“que “fazia tricot com música”), a Schubert, a Schumann, a Wagner, a Berlioz, a Brahms, a Debussy, a Schoenberg, a Stravinsky, a Ravel, a Varèse, a Cage, a Bela Bartok, a Messiaen, a Xenakis (também, claro…). A demagogia é muito feia, sobretudo se é acompanhada pela ignorância, pelo desconhecimento consciente e pelo escamoteamento de informação. Se for por opção, embora bem documentada, essa demagogia continua a ser “eunuca”, mas já passa melhor!

O que acha do contributo dado à música em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian?

Sempre se chamou à Fundação Gulbenkian em Portugal “um Estado dentro de um Estado”, tal foi o papel de catalisador e de salvador inimaginável na vida do país. Para responder a esta pergunta teria de considerar o meu caso pessoal, como bolseiro desde 1963, como professor, como compositor, como conferencista, como pianista, e fazer uma reflexão que vai para além da fulanização desta temática de inimaginável imensidão. É impossível responder a tal pergunta num contexto de uma entrevista que não comporta nem um instante do papel da Fundação Calouste Gulbenkian na história da cultura portuguesa do séc.XX. Nunca eu pagarei a dívida de gratidão que tenho para com a Fundação Gulbenkian e para com os seus directores, nunca Portugal pagará a dívida imensa que contraiu, desde há décadas, com a Fundação Gulbenkian, nunca portugueses e estrangeiros, cidadãos individuais e instituições pagarão a dívida contraída junto da Fundação Gulbenkian e eu, como compositor, nunca pagarei a dívida que contraí junto de personalidades dos Serviços de Música da Instituição, que foram a Dra. Maria Madalena Perdigão, os Drs. Luís Pereira Leal e Carlos Pontes Leça, e ainda a Dra. Fernanda Cidrais.

A história da cultura portuguesa sob todas as suas formas terá, para sempre, uma dívida “insaldável” para com a Fundação Calouste Gulbenkian. Eu, como indivíduo, também.

Tendo participado nas reformas do ensino nas décadas 70-90, o que lhe parece a situação atual do ensino da música?

A socialização e democratização do ensino criou um país de contrastes, entre o que há de belo e entusiasmante nessa transformação, e o que há de perverso no modo como essa transformação se fez até hoje. Tempos conturbados em que dos princípios da ética e da moral individuais se fez tábua rasa, tempos de desordem e de selva onde a integridade e a honestidade foram qualidades praticadas por alguns solitários em actos de heroicidade, diria, sobretudo nos tempos caóticos dos anos 1974 e 1975, embora perdurassem mais para além até ao longo dos anos 90, e também, já num outro nível curricular, na alteração de sistema do ensino da música, na Escola Superior de Música, integrada e criada no âmbito das estruturas do Instituto Politécnico do Porto. Lembro pessoas pacíficas de elevado estatuto social e profissional como os professores Helena Costa, Luís Filipe Pires, Maria Teresa Macedo e Jorge Azevedo se verem envoltos num imenso turbilhão, em tumultos impensáveis entre 1992 a 1996, numa desagregação absoluta e fatal de relações humanas.

Participei em reformas no plano institucional, no seu interior, e também no plano externo, no exercício da liberdade de expressão que os meios de comunicação me deram: televisão, rádio, jornais, instituições promotoras de concerto e de actividades paralelas. Dentro das instituições cedo estive em contacto com ilustres Senhoras como a compositora Constança Capdeville e com a Dra. Madalena Perdigão, a propósito da Reforma Veiga Simão, chamada de Experiência Pedagógica para a música. Foi nesse contexto que ambas as individualidades me convidaram, em 1973 (substituí a Constança, a seu pedido, autora do revolucionário programa do antigo “Solfejo”, agora com o título abrangente de “Formação Musical”) para ir orientar uma Acção de Formação sobre a nova reforma, à Academia de Música de Luanda, para professores de música de Angola. Ali apareceram dezenas de professores e alunos, cujos representantes não me reconheceram no aeroporto, nem depois, na rua, perdido por lá. Esperavam um ancião respeitável, viram o personagem, mas deram de frente com um rapaz de cabelo bem comprido (desculpe, meu comandante Cunha Rodrigues, como evoco noutra passagem desta entrevista). Um destes alunos, cujo pai tinha um restaurante na cidade, era um apaixonado pelo filme Trinitá, cowboy insolente; devia ter uns 12 anos. Qual não é o meu espanto quando, um dia, saindo para a rua na Casa de Portugal, Cidade Universitária de Paris, dou de frente com este engenheiro, o antigo fã do Trinitá. Foi uma sensação do outro mundo!

Uma das memórias que retenho das reformas posteriores, em relação à Experiência Pedagógica do início dos anos 70, de 1975 e sobretudo de 1984, do famigerado Dec. 310, foi a relação de supremacia dos grupos lisboetas de intervenção com as escolas do resto do país. Eu era quase o único que, em certo período, e com assento na discussão sobre os programas de composição, lutava como D. Quixote contra moinhos de vento. Durante uma fase avançada da redacção de documentos, constatei que eles começaram a ser divulgados, e eu a contestá-los: “mas você faz parte do grupo de reforma”, respondiam-me no Norte: “mas eu não sei de nada!”, retorquia eu. Havia reuniões clandestinas; ninguém me voltou a convocar! Fui saber o que se passava e recebi esta resposta sublime da compositora Maria de Lurdes Martins: “Sabe, nós somos vizinhos uns dos outros, na Parede, e vamo-nos reunindo lá. É mais prático”. A geografia foi sempre um dos critérios de avaliação dos méritos dos indivíduos, não só em música, como noutros domínios também. Ouvi-o a outros praticantes de artes e de literaturas.

E foi assim com intervenções sucessivas minhas, em vários locais do país, com numerosos textos que enviava para Ministério e grupos de reforma, mas sempre dando contra paredes e contra factos consumados de reuniões entre vizinhos geográficos. Numa época de transições, rupturas, recusas e revoluções, chegaram a estar em vigor três reformas ao mesmo tempo: a de 1960, a de 1970 e de 1984, e as particulares, e os alunos deslocavam-se, para exames do norte para o sul e do sul para o norte, consoante os locais mais propensos à aceitação de arbitrariedades e à convivência com o caos.

“Tempos de barbárie” foi uma expressão que lancei durante uma reunião do Conselho Científico da Escola Superior de Música do Porto, a propósito de convulsões havidas entre 1992 e 1996, aproximadamente, que conduziram a um clima de caos que se instalou. durante esses anos na escola, entre dois professores e alunos de composição e de electroacústica, mas é uma expressão que se podia aplicar a épocas de reforma da música em Portugal, mesmo que, do ponto de vista dos actos praticados no confronto dramático e no conflito aberto entre poderes e ideologias não houvesse comparação possível.

Em intervenções no interior da Instituição defendia a necessidade de intercâmbios com outras escolas do país, por razões óbvias que não é preciso fundamentar. Nunca se deu um passo nesse sentido, nem desta escola, nem das outras, e um dia, em reunião de escola com Professor Doutor Luís Soares, Presidente do Instituto Politécnico, ouço esta resposta: “sobreviverão as escolas mais competentes; não é preciso esse intercâmbio!”, disse-o em termos sóbrios e delicados, mas decisivos e aceites pela comunidade escolar. Prosseguia a época da competição, da emulação, da concorrência (mesmo sendo sinónimos, é bom dizê-los assim). Quem olhar por dentro cada uma das escolas, verá os frutos. E a situação actual será apreciada segundo os critérios de cada um, sujeitos, ou não, aos valores do mundo actual e aos valores que a sociedade defende, nas diversas manifestações ideológicas e as suas imensas ramificações.

Houve sempre pequenos nichos de gente desperta para a mudança, de professores, escolas e jovens nos quais se notam esforços de renovação e de rejuvenescimento de todas as variantes do ensino, mas a rotina, a recusa de mudança e a permanência no cliché cultural e pedagógico são tão avassaladores que esses nichos luminosos são gradualmente submersos pelas massas amorfas de professores, famílias e estruturas escolares. Gostaria de dar exemplos exaltantes e decepcionantes aqui, mas tenho medo de ser injusto. Mas há tantos contrastes no interior de uma mesma escola, em sentidos opostos de perspectivas e de práticas, que não é difícil o leitor conhecer através da presença, da observação e do diálogo.

A autonomia das escolas, uma espécie de regionalização em música, a que se chegou na ânsia colectiva de democratização e de socialização dos meios, trouxe consigo os germes de bondade e da maldade humanas, corroendo perversamente o que na sua génese é uma conquista social legítima de liberdade e de autodeterminação. Os prós e os contras de uma ideia de liberdade cívica por que tantos lutaram, conquistando-a, alimentam grande parte da população, anónima e expressa nas estruturas que a constituem, que se autorregulam segundo padrões e regras marcados por individualismos, egocentrismos, utilitarismos e imobilismos.

É difícil ser pianista em Portugal?

Esta pergunta não me deveria ser colocada a mim, embora seja também pianista. Se se perguntar a professores de conservatório com formação de clássicos eles dirão, como uma colega pianista já mo disse directamente a mim, os pianistas que fazem só música contemporânea não são pianistas. Confessava-me, um dia, o Professor Fernando Jorge Azevedo (que não era pianista, porque só fazia “piano de acompanhamento”…diria a mesma colega que só fazia clássicos…e era só professora), que reconheceu o Jorge Peixinho, como artista, quando o viu e ouviu tocar, e o modo como tocou no Quinteto de Brahms, no tempo em que foi professor no Conservatório de Música do Porto. Eu não sou pianista, subentendendo, tocando música do séc. XX. Mas todos os clássicos e românticos passaram pelas minhas mãos, no curriculum académico e na actividade como professor, reconstituindo-os até. Não sendo pianista solista profissional no sentido da realização de recitais ou concertos preenchidos com programas de clássicos e românticos da tradição novecentista (como nunca foi a maioria dos professores de conservatórios e de escolas de música!) não seria eu a pessoa mais indicada para dar uma resposta. Não me interessaria muito responder, porque nunca fiz da minha actividade pianística algo que fosse para além de um instrumento quotidiano de comunicação e de reconstituição, de improvisação e de análise prática e teórica dos clássicos, como técnica e como estratégia pedagógicas. Foi uma prática constante e vital, de um pragmatismo consentâneo com a conjuntura cultural do país, com a necessidade, ao mesmo tempo, de me ocupar das partes de piano, a solo ou em música de câmara, em repertório contemporâneo, em recitais individuais, quer na programação do Grupo Música Nova, que criei nos anos 70, quer fora das actividades do GMN. Lembro que nos anos 60 e 70 actuei em programas românticos e repertórios de canto com o tenor Fernando Serafim, e podemos adivinhar que compositores ele cantava do séc. XIX e princípios do séc. XX: Henry Purcell, Schubert, Brahms, Hugo Wolff, Fauré, Duparc, Debussy, Ravel, e com outros músicos, Alban Berg, Webern, Schoenberg, e com tantos outros músicos, de ambos os géneros. Foi num destes recitais que um dia, no Salão Nobre da Biblioteca Pública de Braga, se deu um caso que depois apresentei ao professor de Psicologia Experimental. A dado momento do concerto, “desapareci” do palco. Dei comigo, surpreendido, empleno concerto, a acompanhar o Fernando Serafim. Enquanto tocava, perguntava a mim mesmo: “já fiz estaa repetição, ou não?”, e enquanto tocava pensava no cantor, que cantava, e o público, em silêncio, e espantava-me que tudo deorresse sem acidentes. Repetia, à sorte, e acertei. Qual a explicação para que um qualquer mecanismo permitisse que eu estivesse presente, quando estive fora dali? Estive ausente, à margem da consciência e da realidade exterior, continuando a tocar, enquanto “dormi” por uns instantes! Foi-me respondido que a explicação só poderia ter sido dada pelas regiões subliminares. Não estava sozinho no palco!

Se na pergunta está a questão de se poder ou não viver exclusivamente do piano e de práticas afins, salvo raras excepções, não só é difícil, como impossível, ser instrumentista em Portugal, como é impossível alguém subsistir apenas como compositor. O ensino é, em última instância, o centro nevrálgico de subsistência dos músicos em geral, alargando as orquestras um pouco o espaço a profissionais, uma opção possível para alguns apenas. Paralelamente ao ensino, como actividade donde provêm os meios de subsistência para o indivíduo e para os que ele tem a seu cargo, família ou não, há aqueles músicos que têm outras competências que lhes permitem diversificar não só a sua actividade, por mera necessidade interior, remunerada ou não, e aqui distingo os pragmáticos (“e o meu tempo troca-se por dinheiro”, dizia-me um amigo há muitos anos já citado) e os românticos ou idealistas (não preciso que me encomendem obras para compor e escrever, nem para colaborar com quem quer que seja…).

Quais lhe parecem as maiores dificuldades e vantagens que se colocam hoje aos compositores portugueses na atualidade?

Ao compositor que espera encomendas para escrever, e que tem nessa atitude a conditio sine qua non para compor, não me parece que tenha grande sucesso a médio e longo prazo. Acho, aliás, estranha essa postura, que tenho constatado existir em alguns por cá, até em músicos de talento real, de talento duvidoso e sem talento. Mas o pragmatismo e a ausência de critérios de valoração de uma obra, tem conduzido a alguma leviandade no nosso mundo musical, conluiado com o mundo politicamente comprometido com valores de comercialização da arte, qualquer que seja a sua qualidade desde que venda. “Sou livre, logo…”. Há hoje em Portugal uma quantidade impensável de compositores, quantidade incompatível com as dimensões do país, dimensões geográficas, culturais e económicas. Pela minha parte, nunca esperei encomendas do exterior para compor, porque criar, ou me vem de uma força interior inelutável, ou me vem de fora, senão circunstancialmente: se não há talento, uma encomenda por si só não gerará grande obra de arte. Porque criar, para mim, resulta de uma força hipnótica da mente, de imperativo de tipo psicanalítico, talvez, e não de uma causa vinda do exterior de mim: pretexto, ocasião, estímulo, entre outros factores exógenos é outra coisa, e isso fará sempre parte do mundo de que se rodeia o compositor e que rodeia inapelavelmente o indivíduo.

O país não tem capacidade de encomendar obras aos compositores, senão a alguns que se adaptam melhor ao status quo auditivo dos poderes que dispõem dos meios para exercer essa função. Entre a procura e a oferta vai uma distância imensa. Tendo mesmo em conta as transformações culturais que conduziram à compreensão da necessidade de estimular a criação musical, há um enorme fosso entre o que as escolas lançam para a sociedade e a capacidade de resposta que as escolas geram como futuros profissionais da composição, uma verdadeira utopia, uma impossibilidade, se não ontológica, pelo menos prática. Entre “dificuldades”, de que fala a pergunta, que foram sempre permanentes na relação criador-instituição, e “vantagens” que a criação de um obra sempre trará, não há uma resposta linear sobre um e outro tópico, dada a complexidade de análise para cada um deles, na verdade interligados, interpenetráveis, mas inadequados postos assim lado a lado. Das “dificuldades” que um compositor encontra para a sua obra até às “vantagens” que outro compositor dispõe para apresentar a sua obra, podemos ir mais longe: das “vantagens” de se estar com os poderes, mesmo “vendendo a alma”, das “dificuldades” de quem não está com os poderes, “não vendendo a alma”. Era um caminho possível de discussão. E falo de poderes político, económico, cultural, estético, conservador, reformista, falo também daqueles a quem Gilberto Freire chamava de “intelectuários”. E por aí fora!

Qual foi a maior decepção musical na sua vida?

Estranha pergunta em que nunca pensei na vida. A vida está tão cheia de tantas coisas boas e más que é difícil destrinçar. O que me acompanha sempre é um espírito optimista e positivo e não tenho tendência para me deter nas partes negativas. Durante muito anos levei à letra o dito de Rousseau de que “todo o homem é bom”. A vida concreta levou-me para o lado contrário, só que que cada um é como é, e eu tenho dificuldade em reestruturar a minha mente do que penso de positivo em mim e nos outros, para o negativo, em mim e nos outros. Apetece dizer que “todo o homem é mau”. Fernando Pessoa afirmou que “o melhor do mundo são as crianças”! Não as conheceu…Como pessoa, as decepções pelos equívocos constantes entre o cérebro dos outros (na família e na escola) e o modo como foram informados (e deformados…) ao longo da vida, e o meu cérebro, e o modo como este meu cérebro foi informado, em moldes bem diferentes da maioria dos indivíduos que me rodearam (estruturado, pela educação familiar e pelas comunidades por onde passei), cobrem todas as decepções possíveis como artista. Mas posso enumerar algumas neste contexto de diálogo e de perguntas.

Como músico, como compositor, o modo arbitrário como eram tratadas em palco, em Portugal, as minhas obras, num certo período da nossa história, dos anos 70 a parte dos anos 80. E mesmo depois em casos de supostos profissionais mas amadores no pior sentido do termo. A crítica e o público ouviam obras que eu não tinha escrito, em atropelos inimagináveis. Eram de tal maneira deturpadas pela indigência profissional, que as músicas mais inócuas, dentro do sistema clássico da tonalidade, como canções para crianças, eram o espelho do cérebro que dirigia esta música, não através da música escrita, mas através daquele cérebro que eles achavam que só fazia “música estrambólica”, como dizia a minha filha em criança, isto é, música contemporânea. Houve uma caso em que, ou mandava parar tudo, ou não fazia escândalo e avisava quem estava ao meu lado: “Não escrevi esta música!”-“Compreendo..,”, ouvi do lado, a minha anfitriã. Era música para jovens, uma das Canções para a Juventude, do mais inocente que há. Com Canções sobre melodias de Timor, não longe destas, aconteceu a mesma coisa difícil de imaginar. Houve experiências bizarras nos Encontros de Música Contemporânea, antes do aparecimento do Grupo Música Nova. Da Orquestra Sinfónica do Porto guardo experiências contrastantes, de execuções miseráveis a execuções memoráveis. Dependia dos maestros…

Houve excepções, e desde muito cedo pude testemunhar isso, exemplo maior no tenor Fernando Serafim que se dedicava de corpo e alma a trabalhar e a interpretar as minhas obras, contrariando até os conselhos de colegas que lhe diziam que a música que ele cantava lhe podia destruir ou prejudicar a voz. Dizia numa reunião do Conselho Científico da ESMAE, o barítono José de Oliveira Lopes, contestando a música contemporânea na escola, que o Alfredo Kraus o desaconselhou a fazer música contemporânea por ser nociva para a voz. E deu logo como exemplo tal figura, mais conhecida pelo seu papel em Werter de Massenet…De Massenet, de quem toquei música kitsch com Mário Rodrigues para as senhoras angariadoras de fundos para o Conservatório de Música de Braga, na sua aurora. Meter o Massenet como referência, o que havia eu de dizer a tal intervenção?

A partir dos anos 80 houve uma profunda revolução de mentalidades, pela acção de alguns professores que transformaram a paisagem antiga da relação entre instrumentista de conservatório e os compositores de outras origens numa nova paisagem de são diálogo de resultados palpáveis em inúmeros documentos audiovisuais e em salas de concerto. Porém, as rupturas de mentalidade entre gerações na mesma escola perduram e vivem lado a lado. O conservadorismo, o reacionarismo, a imposição de padrões estéticos e artísticos de duvidosa qualidade, e até de claras consequências perniciosas para o futuro das crianças, invadiu as nossas escolas de todos os níveis etários e de todos os níveis curriculares e níveis de ensino. Impõem, como uma lei inalterável, em festivais e em espectáculos de grande público, a música que esteja mais em sintonia com valores de tradição, em que os ouvidos do público se sinta mais familiarizado. Assim, ou música de feição romântica ou neoclássica, pós-moderna, ou que nem se possa catalogar, mas que vá de encontro a um público indiferente ou obediente, em geral sem critérios de valoração de uma obra, nem se preocupa com reflexões que vão para além do imediatismo da escuta e do consumo.

Curiosamente, os compositores mais ouvidos e que se sintam dentro destes valores, com qualidade, muitos deles, passaram pelas minhas classes de composição no Conservatório de Música e na Escola Superior de Música do Porto. O pioneirismo de que se fala noutro lugar, se existe em mim, condiciona a integração regular das minha obras nos programas de concerto, o que não me incomoda particularmente, porque escrevo e ouço, e o que se passa depois, não entra no meu universo interior… A sorte minha é que antes de as obras serem apresentadas em publico eu já as conheço e as ouvi, e isso basta-me. É esta filosofia que me impede de me queixar, que é, em geral, a atitude contrária, legítima, dos artistas quando não se fazem ouvir. O que acontece, acontece. Não digo o mesmo em questões de defesa de princípios por que se deve reger o cidadão, o músico, e aí sou um combatente sem armas.

Qual foi, até à data, o momento mais alto da sua carreira?

Vou responder, mas antes, retiraria o termo “carreira”, no sentido tradicional do termo, porque não me senti, como compositor ou instrumentista, dentro de uma linha em forma de carreira como profissão. Poderia acrescentar, se o aceitasse, que tenho várias carreiras, umas que acabaram e outras prosseguem o seu curso-percurso. Como meio de subsistência pessoal e familiar, mas como um gesto puramente socrático, mais como um “gesto romântico”, como um dia dele falei, a propósito das minhas viagens a Paris, ao Professor Doutor Luís Soares, Presidente do Instituto Politécnico do Porto, fiz, sem dar por isso (como um epifenómeno!), uma carreira universitária a partir da Faculdade de Filosofia de Braga e das Universidades de Paris. Mas como tenho várias vidas, há uma delas, a artística, que nunca deixei “condicionar” pelos princípios da “carreira” artística ou académica. Como artista, quis manter-me livre, absolutamente livre até onde o termo absoluto pode ser absoluto! Sempre escrevi música e discorri sobre música sem cálculos para além do puro exprimir-me!

Destacarei mais do que um momento, pela impossibilidade psicológica e afectiva de o fazer.

Se me é perguntado se tive alguns momentos de exaltação em alguns momentos da criação das minhas obras, em privado ou em público sim, afirmo que os tive. Fui feliz. Um dos maiores momentos da minha “carreira” deu-se no silêncio de um Estúdio de Música Electroacústica, em França, no SEV (Studio Électroacoustique de Vincennes- Université de Paris VIII, hoje Université de Saint Denis-Paris VIII). Sentado em frente aos gravadores de fita magnética, nos comandos de uma espécie de nave espacial, a viajar em velocidade semelhante à do filme de Kubrik (“2001-Odisseia no Espaço”), e em contraste com a ausência de velocidade da música de Ligeti para o mesmo filme. A pouco e pouco, o que vinha das bandas magnéticas com camadas em velocidades para além do som (metaforicamente falando) durante semanas e meses e pensadas durante anos (flashback de um filme de guerra vivida na Guiné, e do mundo cósmico que a vida dramaticamente silenciosa da ilha perante os céus estrelado e o mar à volta e na guerra me hipnotizavam): atónito, em êxtase em frente a uma nave especial a ser construída (última fase da mistura, improvisando no interior da máquina) e a viajar ao mesmo tempo.

Estou a falar da obra já referida antes, OCEANOS (CD editado pela SEC/PortugalSom e LP editado pela GRAMA001-Matéria Prima). Trata-se música que nunca tinha ouvido antes, nem ouviria depois. O compositor Marc Battier, director do Estúdio, estava ali atrás de mim, e ficou de imediato rendido. No dia seguinte, no atelier de Xenakis, dei-lhe a ouvir a obra: “Pas mal du tout, ça”, disse no fim. E acrescentou momentos depois: “C’est un magma…” (José Atalaya, que apresentou a obra na UNESCO, com grande sucesso, propôs-me a troca de “Oceanos por “Magma”…). Mais tarde, com a mesma exaltação, mais ampla, foram as audições da obra em público em vários lugares da terra, e a estreia com orquestra foi algo de memorável no Teatro Rivoli (superlotado, o teatro de 1979, com um milhar de pessoas): Orquestra Sinfónica do Porto, dirigida pelo Maestro Gunther Arglebe e com o Coro Música Viva, dirigido por Miguel Graça Moura, em Março de 1979 (convidei também os corais do CPO, o Coral de Letras, o Coro da Sé, todos recusaram, e o cónego Ferreira dos Santos, maestro do Coro da Sé Catedral (autor de “musique pompier” destinada a actos litúrgicos, sacros e nacionalistas) respondeu a um jornalista no final, assim: ”…quanto ao resto, é palha!…É barulho para encher!…Aliás, já Darius Milhaud fazia disto!…”(!!!!). Desta noite retenho o momento crucial da obra, os segundos finais (quase fatais!) em que o percussionista, não obedecendo ao sinal de entrada sincronizada com o grande acorde final, obrigou o maestro Gunther Arglebe (só ele!) a invectivá-lo no mais puro vernáculo nortenho; a mímica só a orquestra viu, que vi sorrir, e o maestro pedir-me desculpa, no momento em que subi ao palco, surpreendido; eu ainda desconhecia o que se tinha passado, para além da espera de alguns intermináveis segundos pelo som atrasado do sino tubular do senhor Serva, assim era o nome do ancião percussionista. Contaram-me, depois, a história, que ficou famosa. Pois…

Outro momento inesquecível foi a estreia, em 1987, de Canções de UR, pelo Grupo Música Nova, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, nos Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (o fagotista, da Orquestra Sinfónica e da Banda de Infantaria, viu-se impedido de participar no concerto por impedimento militar de última hora…) pelas repercussões pós-concerto na revelação de actividade e dos níveis de qualidade dos músicos nortenhos, impensável para os lisboetas, público, críticos, profissionais (que surpresa para os músicos do GMCL, ausentes devido a ensaio no contexto dos mesmo Encontros): programa, compositores, músicos, GMN, etc. Os aplausos intermináveis com palavras (“bravos”) foram, de facto, fora do comum. Com uma felicidade indescritível pelo sucesso, músicos jovens vindo do norte fomos para o Coliseu relaxar: Requiem de Brahms. Divino!

Destaco em 2007 a audição, no ensaio (após a correcção de agulhas!), na Casa da Música, na Sala Suggia, pelo Remix Ensemble, dirigido pelo maestro Diego Masson. O meu encontro com os sons de HÉAMAÓAMAÉH-sulcos.silêncios deixou-me emocionado, apenas os sons, não os símbolos e a sua história: só a música! A revelação de segredos sonoros, escritos, mas à espera de confirmação, sendo uma obra pessoal, devo conter-me, mas foi das experiências auditivas mais ultrasensoriais que alguma vez vivi, no que diz respeito a obras pessoais. Esta sensação foi no ensaio geral do fim da tarde! Houve momentos deslumbrantes em que, algures na plateia, tive necessidade de dizer: “ouçam isto!” e volto-me para trás, à procura de cúmplices, e recebo os sinais de grande aplauso do maestro Borges Coelho e do saudoso Dr. Manuel Dias da Fonseca. No concerto, à noite, já repetida a obra, manteve-se a outro nível, e a adesão do público correspondeu ao que eu tinha ouvido (sublinho o gesto invulgar de Georges Asperghis que, vindo do palco, após uma estreia sua, parou no meu lugar para me felicitar. Surpreendido, emocionado, disse-lhe: “c’est pour vous, c’est pour vous!” (os aplausos eram para ele!). Inimaginável um português (ou talvez outro) ter esta nobreza de gesto!

Momentos marcantes foram as noites de ouro (duas consecutivas!…) da estreia de uma encomenda da Câmara Municipal de Viana do Castelo, pelas vozes do seu Presidente, Dr. Defensor Moura e da sua vereadora do pelouro da cultura, Dra. Flora Silva, para comemorar os 750 anos do Foral da cidade: MÚSICAS DE VILLAIANA-coros oceânicos (Editadas partes pela Miso Music, pelo Grupo Música Nova, pelo eaw/2015 e pelo MPMP) para orquestra, coro, electrónica e electroacústica, narrador, rapper e intervenção do público com telemóveis aos 33 minutos da obra. Duas sessões no Teatro Sá de Miranda, nos dias 10 e 11 de 2009, com a sala cheia nas duas noites! Estupefacção! Aplausos sem fim na segunda noite, tudo isto após preparação marcada pelo cepticismo de jovens, de músicos, de chefes.

A-MÈR-ES nasceu de uma intervenção de Xenakis, em Paris, junto dos poderes da Fundação Gulbenkian. Xenakis dizia-me no seu atelier que deixasse de discutir filosofia e que escrevesse música. Lá lhe respondi como pude. Durante as “Journées Xenakis” de 1977, encontrámo-nos eu, ele e os directores da Fundação Gulbenkian no fim de um concerto no Théatre de la Ville (estreia de “Phlegra”). No fim do concerto volta-se para o Dr. Pereira Leal e para a dra. Madalena Perdigão e diz: “é preciso encomendar uma obra ao Cândido!”. A resposta foi imediata: “Vamos fazê-lo”. Pouco tempo depois recebo convite para escrever uma obra para a Orquestra Gulbenkian. As partes electrónica e informática estavam feitas.

A estreia de A-MÈR-ES, pela Orquestra Gulbenkian e o maestro Michel Tabachnik, no Grande Auditório, em 1979. Duas pessoas do público, ao sairem para o intervalo, dirigem-se a mim assim e dizem-me: “o senhor devia ser morto!” um, “ a morte é o que o senhor merece!”. A plateia dividiu-se entre apupos e aplausos. Anos mais tarde o barítono Oliveira Lopes chamou-me a atenção para uma crítica entusiástica de João de Freitas Branco, no Diário Popular. Fui procurar! E lá relembra ele, o grande musicólogo, aplaudindo a obra, o que “as avozinhas” desse público diziam há muitos anos de Mahler (no programa havia Schubert e Mahler…).. Merece destaque esta obra ressuscitada, actualizada e executada pelo compositor Miguel Azguime e pelo maestro e compositor Pedro Amaral, 30 anos depois, integrada no Festival Música Viva, no mesmo Grande Auditório Gulbenkian, pela mesma Orquestra Gulbenkian. A propósito do que me disseram os dois espectadores, desejando-me a morte, dir-me-ia, de forma deliciosa, Pedro Amaral: “que inveja eu tenho do Cândido por essas reacções não se terem passado comigo! Isso é histórico” (sim, mas triste, porque o meu pai tinha vindo do Minho, não só para estar com a família, mas também para assistir à estreia da obra; não sei se se deu conta dos impropérios e dos apupos de partes do público…). Não pertenço à classe dos grandes homens que passaram pelo mesmo (não é preciso dizer os nomes!), mas passei pelo mesmo…Será uma honra? Segundo o Pedro Amaral, é. E os clássicos, o que ouviram? (ver obras editadas com os mais inimagináveis insultos de detractores de génios que vão de Beethoven a Messiaen! Sem falar nas disputas entre os pró e os contra de caminhos da música, desde a Idade Média).

Momentos felizes pela empatia e pelo entusiasmo de músicos e de público (um grande melómano ao passar por mim, com ar de espanto: ”quando sai o disco disto? E acrescentou: “o LIgeti português” (!!!!). Era a obra MANTA, na Igreja Matriz, pela Orquestra do Festival da Póvoa de Varzim, dirigida pelo maestro Osvaldo Ferreira (CD editado pelo Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim que a encomendou). Com Gestos-Circus-Círculos (CD editado pelo MPMP), encomenda da Fundação Porto 2001, por proposta de Miguel Azguime, para o Festival Música Viva: pelo acolhimento entusiástico, além dos públicos (gente que ao ouvir na rádio me telefonou, aplaudindo), particularmente dos músicos do Sond’Ar-Te, que durante os ensaios, em Lisboa, no Instituto Franco-Portugais, tomaram a cantiga da ceifa como o “hino” do Grupo (a voz de Catarina Chitas aparece no interior da obra), e era assim que me recebiam para os ensaios, sem deixar de referir o entusiasmo ao longo dos anos manifestado pela pianista Ana Telles, primeira intérprete da obra, que me levou a escrever, anos depois, a partitura para piano solo de ETHNON-canto do paraíso, a ela dedicada.

Embora num outro plano de criação musical, merece ser referida a obra de circunstância Coros e Danças Medievais para banda filarmónica, encomenda da Secretaria de Estado da Cultura, em 1978. A história é longa mas deixo aqui o essencial. Julguei a obra perdida durante cerca de 30 anos. Em tempos o maestro André Granjo, de Coimbra, pedira-me uma obra para banda. Disse-lhe que já tinha escrito uma, mas extraviou-se. Contei-lhe a história. O tempo passou, e um dia recebo um seu telefonema de Lisboa, do Palácio da Ajuda, da Secretaria de Estado da Cultura: “Quer saber uma coisa?”-“Então?”- “Tenho a sua partitura na mão!”. Emocionado e incrédulo, ouvi a história do achado. A memória nunca a perdeu de vista, pois trata-se de páginas de fortes referências afectivas, académicas, pedagógicas: é música escrita para coros (Braga e Coimbra) de tempos de contactos com amadores, recriada em banda filarmónica. Mais tarde, o mesmo maestro, surpreende-me de novo, ao fazer-me ouvir a obra a partir da Universidade do Texas. Nova emoção, esta mais intensa, porque a audição que tinha do som da banda era apenas no meu interior, e não tinha certezas sobre a eficácia do que tinha escrito. A música era o que era, mas o trabalho do maestro foi magistral, passe a redundância, além da proeza e engenho anterior para localizar a partitura. Esses contactos via internet versavam a audição parcelar da obra, além da interpretação de tempos e dúvidas de escrita que a partitura suscitava. Por exemplo, tocavam um si bemol, em vez de um si natural (modo dórico) que a partitura impunha, e senti o choque auditivo. Era lapso de escrita que o maestro logo corrigiu. Apesar do tempo, tinha bem presente a partitura. Este “si bemol” traz-me à memória um episódio contado por Artur Santos, professor e musicólogo ilustre, durante um exame no Conservatório de Música de Braga, ainda no Campo Novo. Falando com um popular, em Trás-os-Montes, conta ele, sobre uma melodia em que o trítono era alterado, pelo popular, baixando o intervalo de 4º aumentada, respondeu ao mestre que o fazia para “adocicar o som” (o si bemol…). Ora é o que não queria aqui, nesta partitura, embora não fosse um caso de intervalo trítono, o chamado “diabolus in musica”, “pecado mortal” para a época!

O desaparecimento e aparição desta partitura tem alguma semelhança com A-MÈR-ES, evocada antes, cuja partitura desapareceu dos Arquivos da Fundação Gulbenkian, e foi a partir do manuscrito que eu possuía que foi possível a sua reconstituição e modernização por meios digitais, também com o patrocínio dos Serviços de Música actuais da Fundação Gulbenkian.

Quais foram os compositores que mais o marcaram e inspiraram?

Pérotin, Machaut, Monteverdi, Bach, Beethoven, Chopin, Schumann, Liszt, Wagner, Brahms, Debussy, Ravel, Stravinsky, Scriabin, Bela Bartok, Varèse, Messiaen e todos os grandes contemporâneos citados noutros lugares da entrevista. Músicas tradicionais portuguesas, europeias e de outros continentes. Canto gregoriano, música árabe (ouvia-a na Guiné, na rádio, na rua, no Ramadã…) e músicas afins de alguns país da Europa. O som da África subsariana e de toda a África negra. Todas as músicas das mais rudimentares às mais elaboradas, das mais recônditas e anónimas às do grandes palcos eu fui absorvendo livremente, sem tabus. Até a influência invisível dos alunos, dos mais modestos aos mais dotados, nos processos em que era preciso encontrar fórmulas para os diálogos específicos adaptáveis à natureza de cada um. Das improvisações que fazia, partindo dos seus trabalhos em vasos comunicantes com as obras clássicas, antigas ou modernas.

Não posso deixar de evocar noites memoráveis que marcaram não a minha carreira (que não existe como tal, pois as minhas obras nascem por uma necessidade intrínseca, as encomendas nascem como uma contingência institucional…), dizia eu, que não marcaram a minha carreira, mas a minha vida. Alguns exemplos: de Schoenberg, na Ópera de Paris (Palais Garnier) e Palais des Congrès Moses und Aron (Solti) e Gurrelieder (Zubin Metha), ainda na Ópera de Paris (Palais Garnier), Die Soldaten, de Zimmerman, La vera storia, de Berio e S. François d’Assise, de Messiaen, na Ópera de Paris (Palaie Garnier) e Et expecto ressurrectionem mortuorum, na Sainte Chapelle, de Bruno Maderna Il giardino religioso, em La Rochelle e Satyricon em Paris, Le territoires des autres, de Michel Fano, de Xenakis, na Salle Wagram, Jonchaies (estreia, que o público não parava de aplaudir e de pedir a repetição!) e Terretektorh, ainda de Xenakis, no Théatre de la Ville, memoráveis audições de Persephassa e Phlegra, e ainda o seu fantástico Diatope-La Légende d’Eer, nos terreiros do Centre Georges Pompidou (deitado por terra, numa tenda vermelha, o público, eu também, mergulhados em milhares de sons, flashes electrónicos e raios laser), de Stockhausen, Mantra, Carré (4 orquestras) e Klavierstuck X, em Darmstadt, Gruppen (3 orquestras), em Paris, Salle Wagram (fait-divers: um dos maestros perdeu-se, e a execução teve de ser “reiniciada”…), e ainda Sirius, na Sainte Chapelle “les siriens ne sont pas grand(e) chose…”, comentou, com o seu sorriso malandro, no dia seguinte, Xenakis, no seu Atelier), e ainda a audição em fita magnética, no IRCAM, de Répons de Boulez, em gravação da recente estreia em Donauenshingen, na mesma fita magnética a assombrosa obra de Schoenberg Jacobsleiter, ou encontro com obras especiais como a Quarta Sinfonia de Charles Ives (para a qual me chamou a atenção Ligeti) ou Música para Cordas Percussão e Celesta de Bela Bartok, e antes, as redescobertas, como ouvinte ou como executante, de certas obras de medievais, renascentistas, barrocas, clássicas e românticas.

Momentos de fascínio, como as entrevistas e contactos esporádicos ao longo dos anos com Boulez, Xenakis, Ligeti, Berio, Messiaen, Pousseur, Cage, Nancarrow (música no México, pela acção de Júlio Estrada), de várias cidades europeias à cidade do México. As teorias de Scriabin, escalas e harmonia, não as teorias cosmogónicas ou outras afins, nunca ouvidas em Portugal, marcaram-me. Pioneiro das ideias de Schoenberg e de Messiaen, também nas suas concepções audiovisuais, assim como as músicas marcadas pela pantonalidade e pelos microintervalos, vindos de Aristóxenes e presentes nas músicas tradicionais ocidentais e não ocidentais. Autores, obras e culturas musicais como fontes de formação e de informação, aplicadas no ensino e na criação musical pessoal. Assisti a um concerto no Grande Auditorium da Radio France, com obras de Wischnegradsky com pianos afinados em diversas divisões microintervalares, em música “romântica” e música “scriabiniana”. Haba, a música árabe, a música africana e a música do sul-asiático e Oceania.

Há músicos portugueses que o tenham influenciado especialmente?

Nunca vi a minha vida musical na perspectiva convencional de uma “carreira”, como já disse. Ela é antes uma viagem por mares desconhecidos onde tive de lutar com todas as forças da natureza sob forma humana. Será por nunca ter tido consciência disso que a minha actividade se tornou variada e apaixonada em vários sentidos: criação musical propriamente dita, intervenções longas em televisão, nos jornais, na rádio, na escola, nas salas de concertos, nos forum ministeriais, num combate pacífico de divulgação de coisas e de diálogos com as classes sociais e com o público anónimo. “O homem e a sua circunstância” e “o homem em situação” são dois slogans da filosofia que não explicam, nem a minha relação artística e estética com os meios em que vivi, da família ao colégio, da tropa aos conservatórios, nem a minha relação com o mundo clássico português ou o mundo contemporâneo em Portugal. O meu amigo Domingos Gonçalves está-me sempre a dizer que sou um outsider e, em última instância, terei de estar de acordo. Têm coexistido em mim duas vidas: a do homem em sociedade, bem inserido e bem enquadrado e o compositor, marginal em todos os locais e contextos em que tenho vivido, dos meios convencionais da música aos meios não convencionais da música, desenquadrado dos padrões que num e noutro caso informaram a música europeia e os seu gurus. Refiro-me à escola bouleziana, à escola pós-Viena e aos clássico-românticos de tradição clássico-romântica. Costumo dizer que quem me permitiu sobreviver como artista, no plano da realização humana e de fruição musical e interdisciplinar, foram os meios de comunicação: televisão, rádio, imprensa, universidade francesa, amigos de dentro e de fora do país.

Não me vejo influenciado por músicos portugueses, mas sim pelos mesmos autores que a eles influenciaram, como por toda a parte no mundo ocidental, e falo deles nesta entrevista. Como pianista a solo, acompanhando Fernando Serafim, entre outros(as), Isabel Mallaguerra, Eny Camargo, entre outros… e animador musical, apresentei programas com obras de compositores: de Luís de Freitas Branco a Luís Filpe Pires, de Fernando Lopes Graça a Jorge Peixinho, de Frederico de Freitas a Victor Macedo Pinto, de Carlos Seixas a Viana da Motta, de António Fragoso a Amílcar Vasques Dias, de Artur Santos a Joly Braga Santos, de Armando José Fernandes a Jorge Croner de Vasconcellos (amigos inseparáveis da confeitaria Bijou do Calhariz, em Lisboa, ritual da tarde com a colega, professora Elisa Lamas). E compositores renascentistas que analisei como professor e apresentei no Orphéon Académico de Coimbra. Todos eles, juntamente com os mestres de origem que os influenciaram, irrigaram a minha vivência e formação de ouvinte e de praticante, fatalidade da “lei” inexorável da causalidade (mesmo que Xenakis me censurasse este termo que aplicava a diversas situações porque, contestava ele, “causalidade é do domínio da Física!”. Apetece-me discordar…É como o espaço-tempo em Kant/Newton que me dá jeito para a minha definição de ritmo, e Xenakis lembrava-me o tempo-espaço de Einstein que me estragava tudo. Mas apetece-me discordar, mesmo baseado em conceitos ultrapassados…Sorrindo, claro! Estas matérias não entram nas especulações dos músicos portugueses, mesmo contemporâneos! Em suma, não tenho tabus, e independentemente de procurarmos exprimir a nossa individualidade, a nossa identidade, tudo está em tudo, em tudo há confluência, convergência, influência…e os seus contrários, em todos os sentidos.

O que acha da evolução da música em Portugal?

A história da música, tal e qual a Europa e o Ocidente a entendem, como uma teleologia, como um processo em transformação, renovação e projecção, está morta em Portugal. O papel dos grandes transformadores do pensamento musical foram, ou são, aniquilados a pouco e pouco. A Revolução de 25 de Abril abriu as comportas de um mar oculto e em ebulição, de um país escondido de onde emergiam apenas alguns. A partir de 1974 as escolas de música invadiram em todas as direcções o país inteiro nas suas especificidades regionais, culturais, antropológicas. A renovação e inovação regrediram vertiginosamente e travaram o impulso de uma revolução de ouro, nos sonhos de abertura, e aquilo a que chamávamos de música neoclássica, retrógrada e magnífica ao mesmo tempo em inúmeros casos da moderna história da música, passou a chamar-se, mas sem o génio desta, de pós-moderna, alguma com alguma verve, rara com talento, muita, indigente fora de catalogação (as escolas andam a divulgar esta também!). Regressando a vocabulários e a princípios estéticos e técnicos da música clássico-romântica, essa postura redundou em resultados imediatamente aceites que tornaram a sua fácil implantação no grande público. À existência de centenas, passe o exagero, de compositores que inundam as escolas, não corresponde a vitalidade junto dos grandes promotores de grandes ou de pequenos eventos musicais do país. A programação mantém à margem dezenas e dezenas de compositores e de centenas e centenas de obras que deles surgem. Há, portanto, contradições de diverso tipo, entre a actividade pública das instituições e dos organismos vocacionados para a divulgação da cultura, e a quantidade e qualidade desequilibradas dos produtos que os compositores desejariam ver divulgados. Há esforços nesse sentido de alguns, intermitentemente, mas o grande público comanda, e os homens do poder obedecem. Podem notar-se, por isso, na quantidade de oferta e na pouca procura, focos de competição e de rivalidade no meio desta efervescência de novas aparições, de novos compositores, de novas obras que surgem em catadupa.

O que pensa do papel da música na igreja?

Poderia não responder a esta pergunta, por ser tema que não faz parte nem das minhas preocupações, nem das minhas cogitações. Mas já que é feita, e todas as perguntas merecem resposta, por mais intrincadas e indiferentes que nos sejam, esta merece também breve reflexão. Mas como sugiro noutra passagem desta conversa, seria interessante fazer a mesma pergunta a compositores crentes, não crentes, neutros, agnósticos, ateus, fundamentalistas, anti-religião, apóstatas (desertores), “retornados” à fé, convertidos, enfim, uma série de casos a quem o tema seria um espaço de eleição para dissertarem. Há temas que, não sendo tabus, contêm uma tal carga de subjectividadei, de irracionalidade, de tal relação umbilical na vida de países, regiões e populações, como foi o contexto em que me formei, em que Portugal católico se formou e informou, que não quero, não me apetece simplesmente, tomar partido. Como em outros domínios, há uma vontade íntima de respeitar as crenças e as opções dos outros, sejam políticas, estéticas ou religiosas, com excepção das ditaduras e dos fundamentalismos, quaisquer que eles sejam. Talvez porque essa problemática sobreviveu como palimpsesto na minha alma, pela formação e educação de família e de região, no respeito absoluto, pela minha parte, também assente na tradição e nas marcas afectivas de família e de aldeia que ficaram na memória (genuínas, bem mais do que a religião administrativa das instituições divinas, (“malhas que o império tece”)).

Como músico, sempre testemunhei os equívocos entre o individualismo e o egocentrismo musical dos compositores de igreja e o serviço divino que eles pretendem servir pela via musical. Mas é tão contraditório esse simplismo criativo com o que entendem por transcendência, que Deus e os santos devem fugir todos a sete pés ao ouvirem as músicas da liturgias cristãs, ou de natureza cristã. Da música que ouço de vez em quando pela televisão ou em eventual cerimónia religiosa a que tenho de assistir, seja de casamentos, baptizados ou funerais, constato que não há respeito por Deus, e Ele, ou se ri, ou se espanta com tão má qualidade dos autores de música que ao O quererem adorar, incorrem no pecado do que se entende como arte e mais, como arte sacra. Se ao menos ouvissem e aprendessem com música de tradição popular, com música de clássicos como Machaut, Monteverdi, Palestrina, Tomás Luís de Vitória, Morales, Lopez Morago, D.Pedro de Cristo, Schutz, J.S. Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Liszt, Debussy, Stravinsky, Messiaen…

Se quiséssemos demonstrar a existência de Deus pela Sua criação de deuses anónimos e não anónimos que geraram ao longo de milénios músicas da terra que nos maravilham, podemos dizer que Deus existe; se quisermos demonstrar a existência de Deus pela músicas que existem na liturgia católica (e não só) para o adorar, teríamos de constatar que Deus não existe, ou então, Deus satisfar-se-ia com banalidades musicais geradas pela criação humana, cuja música parece deixar subentender que quanto mais simples for o cântico, sinónimo aqui, de primário e de banal, mais ele glorifica a Deus. Se fosse assim, Deus, “omnipotente, omnipresente, omnisciente”, como aprendemos na catequese, infinitamente musical, não existiria…”Or’a Deus! Or’a Deus”(“ora”, interjeição e não verbo “orar”, ou seja “ora, ora!”!) diziam as velhinhas da minha terra, em semântica que conhecemos…

18. Quais os compositores que ouve mais?

Em 1976 o homem da rádio e grande amigo Júlio Montenegro convidou-me para apresentar uma rubrica sobre música no seu Programa da Manhã. Aceitei de imediato, e conversando sobre que música é que eu iria falar, respondi com naturalidade: “de toda a música…”. É esse o título, decisão pronta de Júlio Montenegro. Isto fez-me lembrar o que me contou Pierre Boulez, um a vez: telefonou-lhe uma secretária (a partir de Ulm, na Alemanha) pedindo-lhe, para colocar no programa, o título da obra que estava a escrever, encomenda do Festival dessa cidade. Responde o compositor: “ainda não tenho o título, só sei que “Cummings ist der Dichter”” (“o poeta é Cummings!”). A secretária entendeu a informação como sendo o título da obra, e assim ficou baptizada, à margem do seu autor, que ficou surpreendido quando viu essa informação tomada como título. Sorriu com o equívoco e, por ter achado interessante o modo como nasceu, aprovou e assim ficou essa grande obra coral-sinfónica “Cummings ist der Dichter” com o título dado pela secretária alemã!…

Retomando a conversa com Júlio Montenegro, passámos à planificação da série no interior do seu programa. Eram tão entusiasmantes esses momentos de alguns minutos de conversa no acordar das manhãs, que eu comentei, ao longo da série, com uma pessoa amiga: “se morrer, morro consolado!”, tal era o prazer na “recomposição” de músicas durante esses 4 a 6 minutos e o entusiasmo nos diálogos entre mim, Álvaro Costa, Herman Manuel e Júlio Montenegro (chegámos a fazer emissões entre Paris e a Rua Cândido dos Reis!). Das “músicas de fusão” em misturas de Sting com Bach, dos mongóis com Stockhausen electrónico, de Boulez a Frank Zappa, de Beethoven a Walter Carlos da 9ª Sinfonia, e um sem número de misturas improváveis, em contacto vivo com o público, o que também contribuiu decididamente, segundo o próprio Júlio Montenegro, para a atribuição do “Prémio da Imprensa” ao seu Programa da Manhã. No fim das emissões, que decorreram, durante ano e meio, entre 1976 e 1977, a Secretária de Estado da Cultura, Dra. Teresa Patrício Gouveia, procurou-me pela rádio e seus Departamentos para me felicitar, pelo modo acessível e inteligível como divulguei, para o grande público, música de todas as origens e de toda a natureza. Era isto na Antena 1.

Durante décadas o sistema implantado no ensino da composição andava à volta do barroco sobretudo, também, anacronicamente, dos românticos, no que diz respeito a baixo cifrado, não às técnicas e à linguagem. Com o tempo, indo ao espírito da lei e não à letra da lei, operei algumas mudanças. Já na Fuga, que na reforma de 1960, é referido apenas o termo “Fuga”, subentendendo-se que é barroca, “à Bach”, introduzi a ideia de fugas do séc.XIX e até do séc.XX, Hindemith, Ravel, Alban Berg, Schoenberg, Webern. Habituei-me, mais após a entrada na Escola Superior de Música a estender a uma imensa escala a história da música, até porque me foi dada a liberdade de criar um programa. “De toda a música” foi o meu lema, também pela influência que os meios de comunicação escrita e audiovisual exerceram em mim, ao me permitirem campo aberto para fazer a divulgação que eu propunha. Transferi essa abundância de informação para a escola, mesmo que sentisse sempre travão, ou pelos interesses imediatistas dos alunos, ou pela indiferença dos poderes, mais do que pelos programas ou projectos, individuais ou colectivos. Os paradigmas não mudaram, alargou-se a quantidade, mas não tanto a substância. Não vejo as grandes obras de autores contemporâneas para flauta, violino, violoncelo, piano, canto, nas programações de escolas superiores.

Tudo isso faz parte das minha escutas, e a Casa da Música é das Instituições que responde a muito do que escrevo nesta entrevista.

O terreno sem fim da Internet é o terreno onde constantemente colho as obras e informação que me inunda o espírito, onde não tenho limites de escuta, dos concertos para piano de Rachmaninov à curtas metragens de Michel Jackson, do futebol de Di Stefano a Cruyjff ou a Pélé e Maradona e, naturalmente, Messi.

As minhas vivência tão diversificadas nas escolas de música e nos meios de comunicação permitiram-me ter as antenas abertas a tudo, como me dizia um dia o compositor brasileiro Jorge Antunes, a propósito de um caderno que fui escrevendo em tópicos, com o título “A música e o homem na Reforma do ensino-da antiguidade à vanguarda” (1972-73), pelo que não há música alguma que me não interesse (menos a últimas óperas “do outro mundo” desse meu amigo Jorge Antunes). Após o Festival da Eurovisão que há longos anos não via parei, um dia depois, nas notícias on-line da manhã: “deixa ver como foi o vencedor, já que me aparece aqui na minha frente, com um look sui generis: ouvi, reouvi e telefonei para os mais próximos para verem e ouvirem o que eu estava a ver e a ouvir, incrédulo, perante uma avis rara nestas andanças do género.

O episódio de que ele foi protagonista, meses depois, num concerto Meo Arena (pela tragédia de Pedrógão), em homenagem a Pedrógão Grande, trouxe-me à memória uma história brejeira, mas inocente, da minha juventude, na disciplina de latim. No dia da aula, antes de irmos para a sala, fui rever a lição. Era um texto de Cícero, talvez. Fui ver o caderno de significados e fico alarmado com o que vejo, prova de que não tinha estudado bem a lição; limitei-me a escrever um dos termos do dicionário, e pronto. Tratava-se do termo latino “pes-peditis”, que significa “pé” (nominativo, “o pé”, genitivo, “do pé”). O que aconteceu? Na véspera, fui ao dicionário e escrevi, imagine-se, “pes-peditis” por “ventosidade”. O Salvador podia ter pegado no latim e assim ficava mais soft o seu “desvario”. Fica aqui a sugestão para os seus concertos, citando Cícero, com classe!

À Casa da Música vou a alguns concertos por mês, a convite da Instituição, e centro a minha atenção na música do séc. XX, sem deixar um olhar para clássicos em concertos com solistas ou com orquestra e solistas. Ao vivo é o que se me apresenta mais prático. Nos canais de televisão por cabo, ouço e vejo com regularidade os canais de músicas mistas

Na Internet, repito, não têm limites de qualquer espécie as músicas que ouço: dos Take That (e compus uma pequena peça para saxofone e electrónica sobre uma música pop desse grupo) a Bela Bartok, de Liszt a Kate Bush (genial a que compôs aos 19 anos, sobre “O monte dos vendavais”, e que, na época, ouvia em Paris!), de Ravel e de Debussy a Rachmaninov, de Prokofiev e Stravinsky a Bob Dylan e destes, até às música de todas as nações, autores e estilos. Seria uma lista interminável para mostrar a diversidade de escutas, de acordo com o meu tempo, por gosto, paixão, estudo, observação, mera curiosidade. E dentro da arte e da criação mágica das coisas, Leonel Messi, Pélé, Maradona, não músicos, mas expoentes da magia, da criatividade e geometria não euclidianas. Além de outras artes e as suas relações.

Tinha antigamente o hábito de dizer: “não discuto nem o mundo feminino (a beleza feminina), nem a arte (as opções estéticas), nem religião (a fé e o racional)”. Partia do princípio que, sendo mundos tão sensíveis na percepção e nas opções do indivíduo, pela sua natureza ou pela sua formação, são insondáveis as raízes e as motivações dos gostos e a da liberdade de cada um! Um dia, ao tempo em que colaborava com o Jornal de Notícias, entre 1984 e 1994, parafraseando esse ditado de que “gostos não se discutem”, intitulei, assim, uma das minhas crónicas: “Os gostos discutem-se, a liberdade (é que) não!”. É dentro desse princípio que não tenho tabus, nem fronteiras nas minhas apreciações musicais, mesmo se há sempre níveis diferentes de escolhas e de perspectivas. Duas das séries que apresentei na televisão tinham por título “Sons e Mitos” e “Fronteiras da Música”, na verdade um jogo de palavras sobre o jogo de palavras de “Músicas sem Fronteiras”. Nesta série fui provocado pelo Chefe de Produção para aproveitara vídeos de Música pop e rock em arquivo, por “ter pena” de não se aproveitar a existência desse material. Fui para casa e nessa série fiz incluí grande clássicos da música erudita com os grandes clássicos da pop e do rock. Estes títulos, como o título “De toda a música”, de que falo noutra passagem desta entrevista, dizem tudo sobre o que pensei e fiz como professor, como divulgador, como espectador. Sobre o que faço ainda nos espaços em que me envolvo ou envolvem, e sempre farei. Com a mesma ingenuidade e tolerância com que aceitei o caso da expulsão do menino do coro nos anos da minha adolescência. Da compreensão do absurdo ao comportamento ulterior que tornou esse absurdo atenuado e convertido (se se pode falar assim de absurdo…), com outro tempo de simpatia e de cumplicidade trazido pelo autor desse episódio de infância, e mesmo no caso da reacção à obra na televisão, retiro da memória. Gostos discutem-se, liberdade, não!

Em três adjetivos, como se caracteriza a si mesmo?

Não me é possível tal condensação, porque ficará sempre algo por caracterizar, e se forem outras pessoas a fazê-lo, ou escolhem algumas destas caracterizações, ou escolhem outras que eu não tenha ainda descoberto…Aqui vão as minhas hipóteses de autoconhecimento.

Íntegro, tolerante, afectuoso (em sociedade e na escola)

Transparente, verdadeiro, coerente (na rua e nos salões)

Oceânico, poético, vulcânico (como compositor)

Irreverente, Interventivo, solidário (em sociedade)

Emotivo, racional, intuitivo (em discurso social e estético)

Generoso, desprendido, altruísta (classes sociais, o outro)

Optimista, espirituoso, sorridente (perante a vida)

Alegre, divertido, comunicativo (em todos os lugares e situações sem distinção)

Apreciador da poética futebol (nas geometrias não euclidianas dos jogadores-génio)

Aplauso à estocástica (no imprevisível e na criatividade dos jogadores-génio)

Enfim:

Não tenho defeitos, ou “não sou perfeito, mas quase”, como respondi, um dia, na ESMAE

Ou, citando a saborosa resposta de uma menina quem perguntaram porque tinha recebido o Prémio Valle Flor:

“Eu sou boazinha…”.

Assim,

Eu sou bonzinho…

Ou, como dizia o meu perfil astrológico para o programa de televisão “Ora bem…”, de 1993:

“Ainda sob o ponto de vista humano é o que costuma chamar-se “uma boa alma””

Das mais belas caracterizações que um dia ouvi de alguém, ao contrariar o cepticismo e a ideia de uma possível falta a transparência e independência de júris em provas de admissão a escolas de ensino superior, com todos os sentidos que a palavra contém, calou-me assim:

“Tu és um puro!”

Ou, simplesmente, acima de todas as caracterizações, aquela belíssima expressão com que os astronautas baptizaram aquele pedaço de Lua:

“O Mar da Tranquilidade”.

Porto, 16 de julho de 2017

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