FREI ACÍLIO MENDES
ENTREVISTA
Frei Acílio Mendes nasceu em Chão de Couce, Ansião, a 13 de setembro de 1943. Foi ordenado presbítero em 1968, publicou centenas de cânticos destinados aos Cursos Bíblicos (que visam dar a conhecer ao povo a Sagrada Escritura), à promoção vocacional (de candidatos à vida religiosa) e à evangelização através de missões ao povo.
A sua família tem tradições musicais?
Sou o mais novo de oito irmãos: quatro raparigas e quatro rapazes. Em Maio de 2016 partiu o primeiro para a Casa do Pai. Guardo as mais belas recordações da vida em família: no convívio e no trabalho, na oração e na dança… Meu pai era um exímio cantador e o seu assobiar era de encantar.
Além disso, tinha um invejável «pé de dança». Humor e alegria eram dons da Mãe, a perfumar a casa e a eira. Também o irmão mais velho era um artista na flauta e na harmónica (ou acordeão), assim como na dança.
Em ocasiões mais festivas, sobretudo pela festa de Santo António, o padroeiro da aldeia, era frequente a dança familiar na sala maior da casa. Benditos bailes! Posteriormente, um sobrinho, precisamente o filho do artista da flauta, enveredou pela música: até hoje integra um famoso conjunto musical. Diz ele que tudo começou com uma flauta de bisel que um dia lhe ofereci. Suas filhas cantaram nos «Pequenos Cantores» de Coimbra, assim como agora integram o Coro Misto da Universidade.
Vivíamos o Carnaval em família e à grande. Minha Mãe poderia ser considerada a «rainha do Carnaval». Fui para o Seminário. E a confusão foi medonha: nesses dias de Carnaval metiam-nos na capela a desagravar Nosso Senhor pelos gravíssimos pecados (!) que se cometiam nesses dias…
Ainda assim, a melhor música é a da harmonia familiar! A alegria é o melhor alimento de uma família cristã!
Em que seminários estudou e como eram as práticas musicais de então?
Fui um itinerante em toda a minha vida «académica». Uma verdadeira «fuga», em linguagem musical. «Seminários» sempre Franciscanos Capuchinhos: Vila Nova de Poiares (3 anos), Gondomar (2 anos), Barcelos (1 ano – Noviciado), Salamanca (3 anos – Filosofia), Orihuela (2 anos – Teologia) e Porto, Amial (2 anos – Teologia).
Em todos estes lugares era dada a devida importância à Música, seguindo as orientações emanadas de Roma, sobressaindo os clássicos critérios para a música sacra, sabiamente propostos pelo papa São Pio X.
É impossível esquecer a impressão causada pelos Ofícios e Liturgia da Semana Santa. Todos de «Liber Usualis» na mão e um profundo ardor no coração. A Música tem as suas normas e regras. Mas a verdadeira Música é a que passa para o coração, colocando-nos em comunhão com a Trindade Santíssima e com a assembleia celebrante. Também aqui se aplica a sentença paulina: «A letra mata, enquanto o Espírito dá a vida» (2Cor 3,6)
Depois, veio o Concílio Vaticano II, qual terramoto na Igreja, e o «aggiornamento» foi empolgante, sobretudo pela introdução das línguas nacionais na Liturgia. Além disso, a minha descoberta da visão franciscana da vida, sobretudo nos anos 60, transformou-se num filão que jamais abandonaria. Não posso esquecer que Francisco de Assis (quase) deu origem à língua italiana com o insuperável Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas. Ainda hoje me arrepia o escândalo provocado nalguns companheiros de Francisco quando ele, já às portas da morte, desculpem, da «Irmã Morte», não se cansava de… cantar! E obrigado a acrescentar mais uma estrofe ao seu famoso Cântico do Irmão Sol: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã a morte corporal…» Porque Deus é Amor, é Beleza, é Vida, é Abraço, é Música!
Tive a graça de, logo no primeiro ano de Seminário, me encontrar com um verdadeiro artista e enamorado da Música: frei Albino Felicíssimo. Exigente na teoria e zeloso na prática. Bendito superior que, nas férias de Verão, insistia para que o frei Albino fosse a Salamanca frequentar Cursos de Música! Depois, ele sabia partilhar connosco tão aprofundados conhecimentos. Foi com ele que, no quarto ano de Seminário (tinha eu 15 anos), estudei os elementos básicos da harmonia e da composição.
Em Barcelos, nos primeiros meses de Noviciado, tive a graça de conviver com outro apaixonado da Música (composição e piano): frei Francisco da Mata Mourisca, actual bispo emérito de Uíje, em Angola. «Senhor, fazei de mim um instrumento de paz» – cântico ainda hoje muito cantado, é desse tempo, 1961.
Os três anos de Filosofia em Salamanca, onde éramos uns cem «estudantes», foram muito ricos na dimensão musical, assim como noutras perspectivas da cultura: teatro, literatura, cinema… Recordo com saudade as tardes de Domingo em que frei José Daniel de Valladolid (mais tarde, e já com o nome civil de Daniel Vega Cernuda foi professor no Conservatório em Madrid) nos «introduzia», com sabedoria e criatividade e muito estudo da sua parte, nas grandes obras da Música clássica, privilegiando a sua declarada paixão por Bach, assim como pelas Sinfonias de Beethoven. Surpreendentes foram também os vários Cursos de Gregoriano em que pude participar.
Os dois anos em Orihuela, em plena efervescência do Concílio Vaticano II, animado por vários compositores espanhóis (Tomás Aragués, Miguel Manzano…) e sobretudo pelo sacerdote espiritano Lucien Deiss (+2007), grande biblista, liturgista e musicólogo, atirei-me para algumas composições que ainda hoje permanecem entre nós: Nós vamos até Vós, Senhor; Altíssimo, omnipotente, bom Senhor; Senhor, Tu sabes tudo…
E vieram os dois últimos anos de Teologia, no Porto. Uns 40 jovens capuchinhos portugueses, vindos de várias partes da Espanha e da França, pujantes de utopia, vivíamos com sofreguidão a revolução pós-conciliar. Também a ousadia da música dos anos 60, com o ícone dos Beatles… Havia uma acentuada criatividade musical, tanto na música litúrgica, como na música de mensagem. São desse tempo duas preciosas colecções policopiadas: «Cântico Novo» e «Anda, vem cantar». Criatividade e, por vezes, alguma irreverência, estavam na ordem do dia. Recordo a minha Ordenação Sacerdotal em Maio de 1968, com toda a carga simbólica dessa data!
Já muito mais tarde tive o ensejo de me encontrar com alguns músicos de valor ímpar: dois Capuchinhos bascos: o Padre José António Donostia, a quem já não conheci pessoalmente (+1956), mas pude saborear o magnífico tesouro musical que ele nos deixou: e o Padre Lorenzo Ondarra (+ 2012), este chegou a prémio nacional espanhol de composição. Com ele convivi algumas vezes em Fátima e em San Sebastián – Donosti, País basco. O CD «Paulo de Cristo» (2008) regista 9 harmonizações, a quatro vozes mistas, da sua autoria. Nas muitas deslocações a Madrid pude contactar de perto com o Padre Esteban de Cegoñal, insigne organista da basílica de Jesus de Medinaceli, director da Escolania, até ao seu falecimento (2002) e compositor de muitos cânticos religiosos. Escutar, observar, dialogar e conviver com os mestres é a grande escola da vida. Também da vida musical.
Sim. Tive tentações de frequentar o Conservatório. Arquitectei e expus as minhas razões ao respectivo Superior. Tudo muito bem elaborado e harmonizado. Mas a «desafinação» foi total: «Estudar Música?! Já sabes música de sobra!» E porque, entre outras coisas, também prometi Obediência… aí concluí o meu Conservatório. Summa cum laude. Em Sol Maior.
Os jovens cantam hoje menos do que no tempo da sua formação?
Dizer Jovem é dizer Música! Basta pensar nos inumeráveis concertos de Verão e nos milhares e milhares de jovens que neles participam. Outra coisa – bem diferente – é observar a presença interveniente dos Jovens nas igrejas. As nossas assembleias vão ficando envelhecidas e com celebrações bem pouco abertas para uma participação viva, ativa, interior, comprometida – como auspiciava o Concílio Vaticano II nos anos 60. Também não podemos escamotear um certo «sectarismo» na destrinça entre música «litúrgica» e música «não litúrgica». Há pastores que, com tanto zelo pela música dita litúrgica, conseguem ter as igrejas quase vazias… Vale a pena recordar que, nalgumas zonas do País, dizer música «litúrgica» significa que as composições sejam de determinados autores. As outras até podem receber os curiosos epítetos de «ranchadas» ou «pimbalhadas» (sic).
Felizmente, nestes últimos anos, tenho vivido em Gondomar, na Comunidade de Nossa Senhora Mãe dos Homens. São sete os corais que vivem e servem as diferentes assembleias litúrgicas. São mais de trezentos os elementos que integram estes grupos. Um deles celebrou há dias 49 anos! Um dos grupos conta com uns 80 elementos. Outro, andará pelo 20. Mas, mais importante do que a variedade no número de elementos, é a variedade e a criatividade com que, Domingo a Domingo, eles se esforçam por viver e animar a assembleia… que, por vezes, pode rondar os mil fiéis. Não pretendamos que os jovens do «Chama» sigam os ritmos do «Psalllite» ou do «Kyrios»!
Ainda falando de Jovens e suas músicas. Sempre que me apercebo da radicalidade, quase «trumpiana», com que alguns zelosamente defendem a quase exclusividade do órgão de tubos como único instrumento verdadeiramente litúrgico, penso logo na amplidão de critérios do Salmo 150, em que a nenhum instrumento é levantado muro de exclusão. Por 13 vezes somos desafiados a louvar o Senhor. Com que instrumentos? Ao som da trombeta, com a harpa e a cítara, com tambores e danças, com instrumentos de corda e flautas, com címbalos sonoros, com címbalos vibrantes! E sobretudo com a alma e a arte de todo o ser vivo: «Tudo o que respira louve o SENHOR! Aleluia!» (Sl 150,6).
O seu gosto pela música condicionou de algum modo a sua vida na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, ou foi condicionado por ela?
Nada de condicionalismos! Aconteceu uma natural simbiose entre os valores festivos que eu trazia da minha família e a espiritualidade franciscana! Ser franciscano é ser cantor, arauto e jogral do altíssimo, omnipotente e bom Senhor e de todas e de cada uma das suas criaturas.
Foi Francisco de Assis que sentiu a necessidade de celebrar festivamente o dia em que Maria transformou o Altíssimo e omnipotente Senhor em nosso Irmão.
A Pobrezinha de Nazaré é a cantora insigne das maravilhas que o Todo-Poderoso e Misericordioso fez nela e continua a realizar em todos os pobres.
Por isso, Francisco e seus frades convidaram os habitantes de Greccio, e arredores, para viverem a «festa das festas, como o Poverello chamava ao Natal. Greccio transformou-se em novo Belém.
Muita gente conhece a Regra de São Francisco, sobretudo a sua teimosia em fazer do Evangelho a sua «regra e vida». Mas Francisco tem muitos outros escritos. E muitos deles são cânticos e salmos de louvor e exaltação e bênção e louvor ao misericordioso Salvador. Conservaram-se os textos. Infelizmente os copistas deixaram apenas o espaço para as pautas, mas… sem as notas saídas do coração apaixonado de Francisco.
Em 1993, no 8º centenário do nascimento de Santa Clara, a pedido das Irmãs Clarissas de Vila das Aves, publiquei a cantata «Clara – mais clara do que o dia». Com letra de frei Miguel de Negreiros (+2000). Há vários anos que um projeto com um CD sobre Francisco de Assis se depara com os mais variados obstáculos para ver a luz do dia… Até o master desapareceu no Estúdio! Infelizmente! E estamos a celebrar os 800 anos da chegada a Portugal do espírito e da visão franciscana da vida… Que também passa pelo cantar do Criador e das suas maravilhas.
Na sua perspetiva, que mudanças trouxe o Concílio Vaticano II à música na Igreja?
Vivi em Espanha os áureos anos do Concílio. Recordo a emoção com que, semanalmente devorávamos as crónicas conciliares do padre periodista espanhol José Luís Martín Descalzo (+1991). Respirava-se em Espanha um exuberante entusiasmo conciliar. Não faltando os extremismos entre os chamados «conservadores» e os «progressistas», com graves acusações mútuas. Parece que em Portugal reinava uma paz irritante…
Chegou Dezembro de 1963. E os padres conciliares e o Espírito Santo ofereceram-nos o primeiro fruto do Concílio: a constituição sobre a Liturgia. Para muitos, a obra mais visível do Concílio. Naquele tempo, era natural que se apresentasse o canto gregoriano como o «canto próprio da liturgia». Estas coisas ficam sempre bem nos documentos. Mas a Igreja tomou consciência da sua universalidade. E por isso, não exclui os outros género de música. Por isso reforça: Promova-se muito o canto popular religioso, tanto nos exercícios piedosos como nas acções litúrgicas. E a grande surpresa: adapte-se o culto e a música à índole das diferentes culturas!
Estive em Angola no tempo colonial, quando «evangelizar era portugalizar». Tudo em português. Ao ritmo europeu das missas dominicais de três quartos de hora! Voltei outras vezes a Angola, quase sempre em tempo de guerra. Com missas de… quatro horas! A índole e a cultura africana tinha enterrado o umbiguismo europeu.
Como curiosidade. Há uns anos, em Fátima, numa ação nacional a nível da conferência episcopal e da então CNIR e FNIRF. Competia-me orientar as Laudes. À noite, um pequeno grupo preparou a celebração. Entre os salmos dessa quarta-feira, o vibrante salmo 47: «Povos todos, batei palmas, Aclamai a Deus com brados de alegria». Com a antífona: «Aclamai a Deus com brados de alegria», incluindo palmas ritmadas na antífona. Mas eis que um seminarista intervém com decisão: «Palmas na igreja»?! Fiquei perplexo com semelhante zelo. Com calma respondi: «Ora aí está uma «grave» questão a ser resolvida. Temos a sorte que o senhor bispo vai participar nas Laudes. Eu mesmo lhe proporei a questão e o que ele resolver… assim se fará». E houve paz naquela noite. Manhã cedo, já na capela, e na preparação da celebração de Laudes, tal como tínhamos combinado, a questão foi posta ao senhor bispo, mais ou menos nestes termos: «Senhor bispo, temos um grave problema no terceiro salmo, o salmo 47: ele manda que «todos os povos batam palmas». Mas, como estamos na igreja, talvez para não cairmos na tentação de bater palmas ao Senhor, o melhor será, durante todo esse Salmo, enterrarmos bem as mãos no bolso, não vá o diabo tecê-las»… Uma gargalhada bem litúrgica resolveu a questão. Nesta ocasião… A constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia tinha sido aprovada pelo papa Paulo VI no dia 4 de Dezembro de 1963!
Escreveu centenas de cânticos para cursos bíblicos, encontros vocacionais, missão e liturgia. Qual a importância da música na sua vida?
Há uns anos, numa Semana Bíblica Nacional, em Fátima, um irmão apresentou-me aos participantes como «homo musicus». Ainda bem que fala em várias áreas da Música: cânticos para cursos bíblicos, encontros vocacionais, missão e liturgia.
A Irmã Maria Amélia Costa, das Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, tem centenas e centenas de cânticos gravados. Pensados para a Liturgia? Talvez alguns aí possam ter lugar. Mas o seu trabalho acontece em encontros de Jovens. E com que entusiasmo eles os cantam!
É certo que eu comecei pela liturgia. Um campo que jamais abandonei. Mas, a vida enveredou por outras andanças. Jovem sacerdote, vivi 5 anos a tempo inteiro ao serviço do Movimento por um Mundo Melhor (MMM). O Concílio tinha acontecido. Faltava agora dar a conhecer e pôr em prática as grandes linhas desse «terramoto eclesial». Faltava «viver o Concílio». Sem cair no risco de limitar as mudanças conciliares ao «pequeno» mundo da liturgia. Do Concílio nada nem ninguém ficava de fora: a cultura, a política, a economia, o trabalho, a vida social e familiar, a escola e a universidade, a vida consagrada e a vida sacerdotal… A Bíblia, os documentos do Concílio e os Sinais dos tempos eram as três ferramentas para um trabalho tão urgente.
Sim, a música era veículo de mensagem. Porque a música não quer ser mais do que uma «tradução» da mensagem. Os antigos pregadores e missionários sabiam muito bem desta pedagogia. E muita gente na fase do PREC também. Por isso cantavam/gritavam: «A cantiga é uma arma!» Não resisto a uma inconfidência: também experimentei na pele o que era a censura! Na altura do MMM, acumulava a função de Diretor da revista «Paz e Bem», uma publicação dinamizada pelos Franciscanos Capuchinhos, que também foi atenazada pela ditadura em vigor. Uns meses antes do 25 de Abril de 74, duas das minhas «cantigas» desse tempo foram riscadas pelo implacável lápis azul: «Meu povo, podes gritar: Está próxima a Libertação»! Um texto que nos vem do Evangelho de São Lucas. E uma outra, que era precisamente o Hino do MMM: «Senhor, nós queremos unidos / Lutar com ardor / Por um Mundo melhor: / Um Mundo de Paz e Justiça / De Vida e de Esp’rança / Um Mundo de Amor»!
É certo que o «veneno» estava mais nas estrofes do que nestes «inocentes» refrães. Já agora, fica, como amostra, uma das estrofes do Refrão com origem no texto lucano: «Fora a opressão da mentira e reine a Verdade: / Eis a Libertação! / Revolução é um caminho de Fraternidade! / Eis a Libertação!»
Depois vieram os Cursos Bíblicos e os encontros vocacionais. Outro contexto. A Bíblia e a Vida permaneciam as fontes inesgotáveis de inspiração. Com diferentes ritmos e acentos e acenos, de acordo com os destinatários… A Música situa-se sempre no plano de serviço. A Palavra, o Evangelho, o Sentido da Vida têm sempre o primeiro lugar.
Em que consistem os cursos bíblicos e qual o papel que a música neles desempenha?
Dez anos antes do Concílio Vaticano II, um capuchinho espanhol, a viver em Portugal, sentiu o apelo profético de abandonar a clássica pregação e iniciar o que hoje chamamos o «Movimento de Dinamização Bíblica». Frei Inácio de Vegas desce dos púlpitos e vai para as sacristias ou para os salões paroquiais e, de Evangelho na mão, estabelece um familiar colóquio sobre Jesus, como Caminho, Verdade e Vida. Para construir a casa da vida cristã sobre a rocha da Palavra de Jesus, e não sobre a areia movediça de piedosas e epidérmicas devoções.
Alguns dos seus superiores estranharam esta «mania» pela Bíblia – naquele tempo mais comum nos protestantes. E «desterraram» o frei Inácio para Beja, a casa mais ao sul que tínhamos em Portugal. Só que ninguém pode acorrentar a Palavra! E é em Beja que, em 1955, haveria de nascer a revista «BÍBLICA» e a «DIFUSORA BÍBLICA». E a partir dali se organizaram os «Colóquios Bíblicos». E o frei Inácio não mais teve sossego, a não ser nas primeiras horas da manhã que ele passava junto do Sacrário. Seminários, casas religiosas, quartéis, cadeias, volta a Portugal em bicicleta, carruagens dos comboios, paragens de autocarro, saída dos espectadores do campo de Benfica… Onde houvesse gente, aí se apresentava o frei Inácio para anunciar a Feliz Notícia de Jesus. Oportuna e inoportunamente. Apenas tinha desistido de ir à Lua por aí não haver ninguém para ler a Bíblia!
Entretanto sopraram os ventos do Concílio Vaticano II. E a Constituição dogmática sobre a Divina Revelação foi uma autêntica «bomba conciliar». Em 1975, os Capuchinhos, no seu Capítulo Provincial, fizeram opção prioritária pela pastoral bíblica. E a partir daí, nasceram os Cursos de Dinamização Bíblica, e os Cursos de Animadores e de Agentes da Pastoral Bíblica, e as Semanas Bíblicas Nacionais (algumas com 800 participantes!) e as Semanas Bíblicas Regionais (Madeira, Barcelos, Açores, Porto, Gondomar, Viseu)…
E tudo começava num Curso de Dinamização Bíblica. Umas duas horas, em horário pós-laboral, ao longo de uma semana. Todos os participantes «com a Bíblia na mão e o Deus da Bíblia no coração», procurando descobrir as grandes linhas da História da Salvação. Sobretudo nos dois primeiros Cursos-base. Depois, cada um dos 73 livros da Bíblia poderia ter um curso próprio, começando pelo Evangelista do Ano litúrgico.
Estive muitos anos à frente do Movimento de Dinamização Bíblica. Como é natural, em todas estas actividades a Música é elemento importante. Não para «entreter». É o Evangelho cantado! É a letra «traduzida» em melodia, a levar aos corações atribulados.
Tem livros, discos e cassetes publicados a partir de 1979. Que mudanças sentiu nos últimos 30 anos no que diz respeito à edição e comercialização discográfica em Portugal?
A crise infiltra-se por todo o lado. Também no campo da música e da cultura. Alguns abandonaram mesmo a publicação de material discográfico. É verdade que a Semana Bíblica Nacional oferece em cada ano um precioso caderno de apoio ao tema principal, com cânticos, poemas, celebrações…
Quanto a discos, da minha parte, vou remando contra a maré. Em preparação está o CD «Este é o Dia» – uma Missa a celebrar, no próximo ano, os meus 50 anos de Sacerdote Capuchinho.
Enquanto músico, qual considera ter sido, até à data, o momento mais significativo da sua carreira?
O segundo capítulo do Qohélet (ou Eclesiastes, sim, esse da ilusão e mais ilusão…) encerra com uma surpreendente conclusão: «Nada há de melhor para o homem do que comer e beber e gozar o bem-estar, fruto do seu trabalho. Mas notei também que isto vem da mão de Deus. Quem, com efeito, come e bebe senão graças a Ele? Àquele que lhe é agradável, Deus dá sabedoria, conhecimento e alegria» (Ec 2,24-26).
Os prazeres mais simples da nossa vida – mesmo de um frade franciscano – como o comer e o beber e o saborear o fruto do nosso trabalho… tudo isto são carícias do bom Deus. O mesmo posso dizer das muitas e muitas obras musicais que, desde 1961, fui compondo. Participar numa celebração e, com surpresa, escutar um cântico litúrgico de que quase já nem me recordava, é desses pequenos prazeres com que o Senhor me brinda. O povo canta. Pouco lhe interessa o autor do cântico. Importante é que interiorizou a mensagem e com ele louva o Senhor e busca esperança para as suas lutas do dia a dia.
Entretanto, vou permitir-me alguns momentos especiais. Em Setembro de 1988, o papa João Paulo II visitou Moçambique. É um «mimo» escutar aquela multidão a cantar (a dançar?) o «Glória» que, em 1984,eu tinha composto na Índia. Ficou conhecido como o «Glória papal», sendo cantado apenas nas grandes solenidades.
Desloquei-me várias vezes a Angola. Quase sempre em tempo de guerra fratricida. Impressionou-me a constatação de frei Benedito, Mestre dos Jovens Capuchinhos, no Huambo, em 2007: «Os cânticos das K7s «A messe é grande» e «Jovens felizes» tiveram muita influência na implantação da paz em Angola! Eram autênticos cânticos de «intervenção».
Pode surpreender-nos tal afirmação. Entretanto, penso em Francisco de Assis que acreditou na força da Poesia e da Música como meio de reconciliação. Perante a desavença entre o Bispo D. Guido e o podestà de Assis, o poeta cego compõe nova estrofe para o Cântico do Irmão Sol e envia os fradinhos a cantar aos senhores em conflito. E a Paz voltou. Neste mesmo ano, mas em Luanda, é com o mesmo entusiasmo que umas Irmãs me apresentam uma velhinha folhinha de cânticos «A Messe é grande», utilizada em 1990, nos encontros com os vocacionados, que orientei no Uíje. A Ir. Nazaré e a Ir. Augusta vêm dessa aventura. Guardam aquela folhinha A4, qual preciosa relíquia. Vinte cânticos de paz para tempos de guerra.
Por inerência de ofício (Superior Provincial) desloquei-me várias vezes, desde Julho de 2003, ao longínquo Timor-Leste (a Independência fora conquistada um ano antes). Causa um certo escalafrio escutar no País do Sol Nascente alguns cânticos da minha autoria, tanto em Tetum como Português.
Mais recentemente, em 2015, por compromissos familiares, desloquei-me ao Brasil. Era o dia 12 de Julho. Nesse Domingo, o reitor do Santuário de São Judas Tadeu tinha-me pedido apenas a presidência da Eucaristia das 19h00. Quando isto acontece, parece-me que, por pouco, fico sem Domingo. Assim, pela manhã, pedi ao meu irmão que me «arranjasse» uma Missa na televisão – coisa facílima no Brasil – até para me ambientar espiritualmente no Dia do Senhor. As surpresas de Deus! Precisamente nesse Domingo o papa Francisco concluía a sua visita a três países pobres (ou empobrecidos) da América Latina: Equador, Bolívia e Paraguai. A Missa é celebrada em guarani, numa homenagem à cultura popular e guarani do país. Um milhão de fiéis participa com o entusiasmo característico destas gentes. Antes da Missa, o papa ainda fez uma visita a um dos bairros mais pobres e marginalizados de Assunção, aí proclamando corajosamente que a «fé de quem vai à missa, mas não sabe o que ocorre nos bairros marginalizados, é uma fé não solidária, é uma fé morta, uma fé sem Cristo, é uma fé sem irmãos, uma fé mentirosa».
A liturgia e o altar com elementos locais eram um hino à cultura guarani. Em guarani eram os cânticos, as leituras bíblicas e até o Pai Nosso. Os cantos religiosos adaptados à musicalidade popular eram entoados por um coro composto de 500 vozes e a Orquestra Sinfónica Nacional, com o entusiasmo vibrante de assembleia considerada num milhão de fiéis.
E chegou o momento da comunhão. Nem queria acreditar no que estava a acontecer: orquestra e coro entoam solene «Profetas de um Mundo nuevo», logo acompanhado pela multidão. Um cântico que eu tinha composto em 1984 e que dava o título a um LP que as Paulinas tinham editado na Espanha em 1988. Por estas carícias, louvado sejas, meu Senhor!
Quais os músicos portugueses que mais o influenciaram?
No campo da música sacra, ninguém pode esquecer o pioneirismo litúrgico do Padre Manuel Luís, sobretudo em ter captado e transcrito para o Povo de Deus o espírito do Concílio Vaticano II. As ricas melodias dos seus «Salmos Responsoriais» continuam, Domingo a Domingo, a fazer-nos comungar o texto bíblico. A música não é só «ciência» (embora sejam fundamentais os conservatórios e as Escolas de Música). Se não houver a «sabedoria do coração», aquele «clic» que faz penetrar a melodia na alma, no coração, de modo que a assembleia seja levada a louvar e a bendizer o Espírito Criador da Beleza e, ao mesmo tempo, a entrar em harmonia ou sintonia com os irmãos, de nada valem as mais elaboradas construções musicais.
Sou devedor a dois grandes amigos: o Padre Carlos Silva (de quem guardo religiosamente o grande carinho que mantinha por mim, assim como uma terna dedicatória no seu livro dos 50 sanos de Sacerdote) e o Padre Cartageno, amigo de longa data e sempre disponível a pedidos vários.
Noutra área bem diferente, não posso esquecer a admiração pela obra «imortal» de Lopes-Graça e do Zeca Afonso.
Qual o compositor português que mais gosta de ouvir?
Quando, em 2008, comecei com problemas graves de visão, um dos meus recursos foi «oferecer-me», com a ajuda de amigos, uma boa «biblioteca» de CD’s com música clássica dos eternos Bach, Beethoven, Mozart… mas insistindo também em autores portugueses. Por ali andavam João Domingos Bomtempo, Marcos Portugal, Luís de Freitas Branco, Viana da Mota, Frederico de Freitas, António Victorino de Almeida… Numa das revisões do carro, o volumoso dossiê dos CD’s foi também (re)visto e… mudou de dono! Pode ser que tenham descoberto a agradável surpresa: «o que é português, é bom».
Acha que a música é um investimento que nos pode trazer mais qualidade de vida na terceira idade?
A frase é de Mahatma Gandhi: «No mar vivem os peixes – e são mudos; os animais, na terra, gritam; mas os pássaros, cujo espaço vital é o céu, cantam. O homem, porém, participa de todos três: tem em si a profundidade do mar, o peso da terra e a altitude do céu e por isso lhe pertencem também as três qualidades: o silêncio, o grito e o canto».
Está tudo dito. A pessoa sente o peso da terra (nós mesmos somos terra!) mas temos vocação de Céu. E por isso, de eternos cantores. É de louvar o esforço que muitas autarquias e associações fazem para manter as Universidade Seniores. Já imaginou a alegria de alguém com 70 ou 80 anos e começar a fazer parte de um Grupo Coral ou de Dança, ou mesmo a tentar aprender a tocar um instrumento musical, como o piano, a guitarra ou até mesmo o violino?!
Temos de contrariar aquele pessimismo omnipresente no famoso Qohélet (ou Eclesiastes) quando, ao falar da velhice nos traça um quadro verdadeiramente deprimente: os guardas da casa começam a tremer, e os homens robustos, a vergar; as mós deixam de moer por serem poucas, e escurece-se a vista dos que olham pela janela; fecham-se as portas da rua, enfraquece a voz do moinho, acorda-se com o piar de um pássaro e emudecem as canções…
Perante estes sinais da caducidade humana, o pior é o “medo das subidas”, os “sobressaltos no caminho”…(cf. Ec 12,1-5). Voltemos ao inefável Mahatma Gandhi: mantamos a profundidade do mar, o peso da terra e a altitude do céu e, assim, jamais abandonaremos o silêncio, o grito e o canto. Porque o nosso Futuro é um Cântico Novo, o dos novos céus e da nova terra.
Em três adjetivos, como se caracteriza a si mesmo?
Optimista. Criativo. Insatisfeito.
Gondomar, 1 de março de 2017