EÇA E OFFENBACH
por Jorge Lima Barreto
“Eça de Queirós e Offenbach”, subintitulado paradoxalamente “a ácida gargalhada de Mefistófoles”, é o último livro de Mário Vieira de Carvalho.
O discurso é altamente sistematizado e recorre a uma terminologia sofisticada da sociocomunicação da arte. Quem leu os livros e ensaios anteriores deste autor tudo se torna tão inteligível e fluído como aliciante e surpreendente – uma escrita admirável no seu rigor, uma qualidade heurística e hermenêutica sem par na nossa musicologia e nosso ensaísmo literário; formidável pelo seu objectivo intersemiótico da literatura (Eça) e da ópera (Offenbach).
Para quem leu as páginas queirosianas por certo terá passado despercebida a influência, o entrosamento estético, o logos político-social, o imaginário caricatural – o que aqui é tido em conta de forma erudita por Mário Vieira de Carvalho.
Em primeiro lugar somos levados a considerar que Eça foi determinantemente influenciado por Offenbach duma forma estética e política, sendo que a ironia e o sarcasmo, sempre felizes, atravessam todo o texto de Mário Vieira de Carvalho, na toada da ópera bufa e da verve queirosiana.
O autor recorre a montagem sintagmática e, tentaremos fazer brevíssimas sinopses dos seus seis artigos.
O primeiro enunciado é “música e crítica na colaboração de Eça de Queiroz para a Gazeta de Portugal e o Distrito de Évora”- onde Eça define a música como “doce ruído inefável”; denuncia a função de entretenimento, decoração e etiqueta desta arte na vida portuguesa; e reclama o “livre espírito e a anarquia individual” contra o “gosto oficial como dogma intelectual”.
O segundo ensaio “Eça de Queirós e a ópera no século XIX em Portugal”, Vieira de Carvalho está no seu terreno preferido. O Teatro de S. Carlos continua como a personagem cooptada na resconstituição da época lisboeta no período de rotura estética do romantismo para o realismo. No S.Carlos verifica-se a eficácia do passeio público e a exibição do eu; como tese original do autor, aqui o espectador denota o “duplo alheamento, i.e., alienação da realidade e da acção musico-teatral. Em S.Carlos, segundo Eça, cantava-se em italiano nos outros proscénios lisboetas “gania-se em português”.
Também num cenário doméstico de “O Primo Basílio” a criada Juliana cantarola “a carta adorada” da opereta “Grã Duquesa” de Offenbach e, a patroa num excesso de feliciade atira-se a uma ária de ópera italiana. Para Eça a arte de Offenbach é filosofia cantada, gargalhada que prepara a ruína do velho mundo burguês.
O terceiro capítulo “da música absoluta ao couplet de Offenbach” confronta o couplet , canto estrófico de natureza humorística da ópera bufa, com o conceito de música absoluta, própria do estilo clássico da forma sonata, que “exprime o inexprimível”. Maria Eduarda é uma personagem queirosiana viajada e “estrangeirada” senta-se ao piano a tocar Mendelssohn, Chopin ou Beethoven; não vai ao S.Carlos(onde de instalou o bel canto e a herança teatral de Garrett). “A tragédia da rua das Flores “começa no Teatro da Trindade durante a audição duma récita de “Barba Azul” de Offenbach – há um homomorfismo entre a destruição irónica de valores perpetrada na ópera bufa que põe a descoberto os seus artifícios dramáticos e cómicos e o romance de Eça que torna explícitos os artifícios literários, exibe a construção teatral e o realismo de raiz cómica.
No quarto texto “romance como offenbachiada: um exemplo de intertextualidade entre a música e a literatura” – Eça, nas Conferências do Casino, propusera o realismo como o gesto de mostrar, não no sentido da verosimilhança, como em Zola, mas como efeito e sintagma de realidade.Se a realidade é de opereta só a opereta pode representá-la. A foto acaba em caricatura na eficaz desmontagem de lugares comuns nas estratégias épicas e narrativas comuns a Eça e Offenbach.
O quinto capítulo intitulado “a música e o cosmopolitismo da capital: uma aproximação a Eça de Queirós em diálogo com Walter Benjamin “cita-se o pensador alemão ao mostrar “não a origem económica da cultura, mas sim a expressão da economia na cultura” – desta feita, Eça e Offenbach propoem o conceito de artista vagabundo que observa a vida transformada em mercado, que reconstitui a aura como conteúdo de representação,que suscita um espectador crítico ou um leitor activo.
Curiosíssima é a sexta temática “casos e figuras do universo musico-teatral queirosiano” – o compositor Augusto Machado, tendencialmente germanófilo e, mais, wagneriano,teria inspirado a figura de Cruges em “Os Maias”. O entusiasmo do conselheiro Acácio pela ópera de Gounod, num nacionalismo descarado teria sido motivado pelo êxito do “Fausto”. Mário Vieira de Carvalho põe em confronto a teoria de Karl Kraus da “caricatura da subserviência como gesto social”; expõe o anticlericalismo queiroziano; descobre no romance de Eça a presença indelével de “A Grã Duquesa de Gérolstein” em “A Capital!” ou em “O Primo Basílio” ou do “Barba Azul” em “A relíquia”.
Em adenda,uma alusiva colheita de partituras de composições citadas no escopo – embora sem qualquer configuração teórica excepto a citação de Carl Dahlhaus sobre a desconstrução do pathos baseado “na repetição da tónica como acentuação ” para conotar que, em “os Maias”, Carlos sabe da boca de Ega que Maria Eduarda é sua irmã – a revelação do incesto,que seria o pathos, é repetidamente interrompida pelo Vilaça que anda à procura do chapéu. As ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro sobre o tema da ópera bufa de Offenbach abrem espaço à ironia, à sátira demoníaca (sic), ao espírito libertário e à inventio comum ao texto de Eça.
Jorge Lima Barreto