DOIS VIOLINISTAS INSIGNES
NICOLAU MEDINA RIBAS E BERNARDO VALENTIM MOREIRA DE SÁ
Dois violinistas insignes: Nicolau Medina Ribas (1830-1900) Bernardo Valentim Moreira de Sá (1853-1924) in “o Tripeiro” nº 4 – Agosto 1953 – V Série – Ano IX
Artur de Magalhães Basto
Num recorte de jornal muito antigo, leio a seguinte noticia:
“O sr. Carlos Relvas (entusiasta amador de arte) convidou o distinto violinista Nicolau Ribas (do Porto), para ir à Golegã dar uma série de lições a seu filho”.
Este filho de Carlos Relvas chamava-se José Relvas. Foi, com o pai, uma requintada figura de gentleman e de artista. Em 1910, fez parte do Governo Provisório da Republica e, longos anos depois, escreveu:
“Em 1878 foi meu primeiro mestre o eminente violinista Nicolau Ribas, hoje esquecido, quase ignorado das ultimas gerações. Companheiro de Leonard, discípulo querido de Charles de Beriot no Conservatório de Bruxelas, organizou com Miguel Ângelo, Moreira de Sá, Marques Pinto e Casella, os concertos de musica de câmara (no Porto)”.
“Este notável grupo apareceu no momento em que uma forte renovação de estudos punha em foco a grande actividade mental da Alemanha em todos os campos, literário, cientifico e artístico. A Sociedade de Quartetos, integrada nessa corrente, começou a divulgar o conhecimento das obras de Haydn, Mozart e Beethoven, os três mais altos percursores do movimento musical, que teve a sua expressão máxima em Richard Wagner”.
E José Relvas continua:
“Foi numa das lições de Nicolau Ribas que ouvi, pela primeira vez, Moreira de Sá. Entre os seus discípulos, ele não o citava apenas como o mais dilecto, mas também como uma notável personalidade destinada a criar fama pelos seus raros talentos de musico e de professor.
(…) Moreira de Sá fora discípulo de Marques Pinto, mas foi com Ribas, e até às lições de Joseph Joachim, que desenvolveu os seus grandes meios de execução” , etc.
São estes, meus prezados leitores, os dois insignes violinistas que hoje aqui vou recordar: Nicolau Medina Ribas e Bernardo Valentim Moreira de Sá.
Nenhum deles foi natural do Porto: Nicolau Ribas nasceu em 1830, em Madrid; Moreira de Sá nasceu em Guimarães, em 1853 – justamente há um século.
Mas, embora não fossem naturais do Porto, ambos elegeram o Porto como sua terra de adopção e lhe quiseram como se fosse sua terra natal; aqui passaram a maior parte da sua vida, aqui constituíram família, aqui desenvolveram quase sempre a sua brilhantíssima actividade, aqui deixaram ilustres descendentes.
Tanto um como outro, logo em crianças deram provas da sua vocação extraordinária para a musica. Havendo, porém, vinte e três anos de diferença de idades entre eles, Nicolau estava no auge da sua glória artística quando Moreira de Sá apenas começava a demonstrar o seu valor.
A primeira vez que Nicolau Medina Ribas se fez ouvir em Lisboa, foi num grandioso e elegantíssimo concerto de beneficência, realizado em 29 de Maio de 1871 no Real Teatro de S. Carlos. Nessa festa, promovida por várias marquesas, condessas e viscondessas, tomaram parte, alem de cem professores de canto e orquestra, distintas amadoras, distintos amadores e dez dos maiores artistas que havia em Portugal: nove residentes em Lisboa, só um da província: – a excepção foi aberta para Nicolau Ribas, que era do Porto.
Acompanhando a orquestra, Ribas executou o Nono Concerto, de Beriot, e alcançou uma das mais entusiástica ovações daquela noite memorável.
Por Lisboa se deixou ficar o nosso violinista até ao mês de Junho, exibindo-se em vários concertos. Quando chegara era um desconhecido. No momento da despedida da capital, um periódico dizia:
“Ilumina-lhe a fronte a chama do talento, e a fama já lhe cinge os louros da gloria”.
Dois anos depois, voltou pela segunda vez á capital; os jornais chamavam-lhe já “o célebre violinista portuense”:
“O sr. Ribas executou as peças do programa com inexcedível maestria.
Que correcção, que suavidade, que gosto, que sentimento, que bravura!”
escrevia um crítico entusiasmado; outro classificava-o como…
” … o mais distinto professor de rebeca que temos em Portugal”.
Estava-se, então, em 1873. Nicolau Ribas contava quarenta e três anos. Moreira de Sá era um jovem de vinte.
Ora, foi no ano seguinte que se organizou, no Porto – conforme recordou José Relvas – a Sociedade de Quartetos, com os mais distintos músicos portuenses. Moreira de Sá, apesar da sua juventude, foi admitido, se é que não foi chamado para fazer parte de tão luzido agrupamento.
Pode afirmar-se que Nicolau Ribas, Marques Pinto, Casella, Miguel Ângelo e Moreira de Sá constituíram nesta cidade – como muito bem escreveu o meu saudoso amigo e distinto artista Joaquim de Freitas Gonçalves – o Grupo dos Cinco, da historia da nossa musica de câmara, da mesma forma que, pouco mais ou menos pela mesma época, Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro constituíram o Grupo dos Cinco das letras portuguesas. A dita Sociedade de Quartetos do Porto, que se apresentou pela primeira vez ao público no salão do Teatro de S. João em 10 de Junho de 1874, numa sessão a que assistiu o celebre tribuno e estadista espanhol Emílio Castelar, foi “o definitivo ponto de partida para o conhecimento, entre nós de um dos mais belos géneros de música, senão o mais belo”. Foi ela que, numa época em que o publico só apreciava a musica italiana e as primas-donas de boa plástica, empreendeu “o conhecimento e a revelação das obras imortais que os grandes clássicos e românticos legaram ao quarteto e ao quinteto”.
Normalmente, os concertos daquela Sociedade realizavam-se no Teatro de Gil Vicente, do Palácio de Cristal. Como era naturalíssimo, a principio a assistência, embora escolhida e religiosamente atenta, não acorria em grande numero. Ainda em Junho de 1876, um critico lamentava…
” …que o publico não enchesse, ás quintas-feiras e aos domingos, todo o salão do Teatro Gil Vicente, onde se professa o sacerdócio elevado da arte e onde têm lugar essas festas esplêndidas”.
Mas a persistência ia triunfando dos gostos decadentes do publico. Cinco anos depois, continuava ininterrupta a actividade da Sociedade de Quartetos, e os seus frutos começavam a aparecer:
“Verificou-se ontem, no salão do Teatro de S. João (dizia um periódico de 30 de Maio de 1881) a 4ª sessão da 7ª série (da Sociedade de Quartetos do Porto), a que assistiu grande numero de pessoas, na maior parte virtuosi e dilletanti, cujo gosto, aguçado por uma educação bem dirigida, as leva a prestar culto aos da musica instrumental – Mozart, Beethoven, Mendelsohn, Schuman, Brahms, Rubinstein, e outros que produziram o que há de mais estupendo e de mais grandioso neste género de composição; e a galardoar com justos aplausos o mérito dos dignos interpretes da obra destes grandes mestres: Nicolau Ribas, Miguel Ângelo, Marques Pinto e Bernardo Moreira de Sá”.
Ora, estava a chegar a época em que o mestre Nicolau Ribas começaria a ceder o seu lugar ao discípulo Moreira de Sá, porque a idade e a doença obrigavam aquele a reduzir a sua actividade profissional e artística. E, dentro em breve, o antigo discípulo torna-se verdadeiro mestre, tomando nas mãos o facho que lhe entregou Nicolau Ribas, embora este só viesse a falecer em 1900.
Memorável na história do culto da musica no Porto, foi sobretudo a “noite de 12 de Janeiro de 1881” – Pois foi nessa noite que, “na casa nº 155 da Rua do Rosário, então habitada por Henrique Carlos de Meireles Kendall”, se inaugurou o glorioso Orpheon Portuense, de que logo foi director e depois director perpétuo, Moreira de Sá.
No mesmo ano, o Orpheon transferiu a sua sede para o salão do Palacete Sandemann, no Largo da Cordoaria, e em Outubro de 1883 para a Rua do Laranjal, onde ocupou a casa em que estivera instalada a antiga e extinta Sociedade Filarmónica Portuense.
Através dos inúmeros concertos e das sessões musicais do Quarteto de Musica de Câmara, fundado por Moreira de Sá em 1884, este extraordinário artista foi, durante cinquenta anos, o grande educador, o emérito orientador do gosto musical da sociedade portuense.
“Foi por ele, principalmente (disse Agostinho de Campos) que nós, portugueses, travamos conhecimento com todos os modernos compositores musicais”.
Esclarecerei que, graças também a Moreira de Sá e ao seu Orpheon, tem o Porto ouvido os maiores virtuses europeus, “as maiores sumidades musicais estrangeiras”.
Já em 15 de Março de 1901, a Arte Musical, de Lisboa, podia dizer:
“Todo aquele que tenha acompanhado o movimento artístico do nosso País de alguns anos a esta parte, terá constatado, como nós, a preponderância que nele tem exercido o nome prestigioso de Moreira de Sá, esse muisco ilustre que tem conduzido, com excepcional proficiência, todas as iniciativas artísticas da capital do Norte.
“Raro será o concerto de uma certa importância que ali tenha lugar, em que o nome de Moreira de Sá não figure, ou como solista, ou como quartetista, ou como director de orquestra” .
Não admira portanto que, quando mais tarde, em 1917, se pensou na fundação do Conservatório de Musica do Porto, Viana da Mota afirmasse numa revista desta cidade:
“Não pode subsistir a menor dúvida sobre a quem deve ser entregue, no Porto, a formação e direcção do novo Conservatório… Impõe-se a figura de Moreira de Sá” .
Em conclusão:
Nicolau Ribas e Moreira de Sá – embora este fosse dotado de cultura vastíssima e muito superior e tenha exercido uma acção cultural muito mais profunda – foram dois grandes e apaixonados artistas que muito honraram o Porto, e ambos bem dignos do reconhecimento e admiração de quem quer que estime a arte musical e o bom nome da nossa terra.