Manhouce, distrito de Viseu, trajes

Almeida Campos

Folclorista . Regente

Manuel A. de Almeida Campos (1890-1956), Promotor da folclorização em Viseu, por Maria do Rosário Pestana, em Vozes do Povo. A Folclorização em Portugal

Manuel Augusto de Almeida Campos (1890-1956) nasceu em Viseu.

Aos 15 anos iniciou a carreira de músico militar, como aprendiz de música, no Regimento de Infantaria 14 de Viseu. No ano seguinte, já como músico de 3.a classe, partiu para o Regimento de Infantaria 23, de Coimbra, onde permaneceu nove anos, para regressar novamente a Viseu, em 1915.

Em 1917 integrou o Corpo Expedicionário Português que, em França, combateu durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1918 regressou a Portugal, na qualidade de músico de 1.a classe, e aposentou-se. A partir desta data, e até ao final da sua vida, dividiu-se entre o exercício do comércio (no ramo da restauração) e actividades potenciadoras da formação musical adquirida no exército.

À procura de identificadores culturais regionais

A sua acção na folclorização em Viseu, documentada desde o início da década de 1920, estimula este processo no concelho e resulta inicialmente da assimilação e reprodução de modelos vindos do litoral e, a partir da década de 1930, duma adesão de Campos à ofensiva moralizadora e de inculcação da ideologia do Estado Novo.

Logo em 1921, dinamizou “um grupo de rapazes e raparigas a imitar os que aí vieram de Aveiro e da Figueira da Foz pelas Festas do Santo António”, o qual, depois de diversas alterações, se viria mais tarde a transformar no Rancho do Dão. Ainda no âmbito da formação de grupos folclóricos, foi um dos responsáveis, em 1938, pela criação dos dois primeiros ranchos dos concelhos de São Pedro do Sul e Vouzela. Enquanto os elementos dos grupos folclóricos dos anos 20 eram “criadas de servir, sem pai, jornaleiros e costureiras, mas muito honestas” e o repertório constituído por composições musicais de Campos, os dois ranchos de finais da década de 1930, formados em Cambra e Manhouce (dos concelhos de Vouzela e São Pedro do Sul, respectivamente), integravam estudantes, agricultores, pastores e mineiros e executavam repertórios da tradição oral recolhidos naquelas localidades. Em comum, os ranchos das décadas de 1920 e de 1930 tinham o nível etário dos seus elementos — jovens — e uma execução sincronizada alcançada ao longo de numerosos ensaios.

O papel de Campos na folclorização em Viseu estende-se ainda à dinamização de eventos — concurso de trajos regionais, em 1928; e Marcha das Aldeias, em 1948 e 1953 — que reflectem uma intenção de identificar regiões administrativas — concelho de Viseu — com os usos e costumes locais. Enquanto que na década de 1920 esses usos e costumes incluem práticas e representações urbanas e rurais, a partir do início dos anos 30 observa-se a gradual circunscrição ao mundo rural.

Os “costumes regionais” serviram ainda de inspiração a composições e arranjos de Almeida Campos. Sustentando uma relação directa entre a “proveniência das raças” e “o carácter das nossas canções”, defende a criação de “uma escola portuguesa” firmada no conhecimento do “folclore do país”, concepção essa que provavelmente deve muito aos contactos que ao longo da sua vida manteve com Armando Leça.

Caminhos cruzados pela música

Na década de 1920 a documentação sobre Almeida Campos refere-se ainda à sua actividade no domínio da música enquanto regente e compositor. Ao nível da composição, são referidas as obras: Um Grão de Incenso e Os Beirões. Tratava-se de uma opereta, com textos de António Lopes Costa, escrita para um conjunto de câmara, solos, partes corais e diálogos falados, levada à cena em 1921, pelo Grupo Dramático dos Bombeiros Voluntários de Viseu, no Teatro Viriato, para financiar o I Congresso Beirão. Nesta obra, o destaque da crítica foi para os “costumes regionais” (S. A. 1921b: 2), que a música, o texto e os cenários procuraram recriar.

É na década de 1930 que a acção de Almeida Campos no processo em estudo ganha destaque. Esta década traz-lhe maior protagonismo na actividade musical viseense, ao qual não são alheios os serviços que presta a órgãos do poder central, como o Secretariado da Propaganda Nacional, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, ou a União Nacional.

O comprometimento com a ideologia do Estado Novo sobressai desde o início da década (e continua até ao final da sua vida) nas séries de artigos que assina nos jornais Distrito de Viseu e Política Nova a propósito do fado. A explicação teórica que sustenta o seu combate ao fado — relação entre o carácter das canções e o do povo — é a mesma que enforma a sua defesa da “canção popular”. Neste sentido, dinamiza o Rancho de Vil de Moinhos, assegurando o nível das suas performações com ensaios e arranjos da sua autoria. É com o Rancho de Vil de Moinhos que Almeida Campos tem a oportunidade de participar num concurso nacional que leva tradições locais ao Coliseu dos Recreios de Lisboa. Trata-se do concurso Cacho Dourado, promovido pela Comissão Técnica de Viticultura e Enologia do Centro de Estudos do Vinho e da Uva, a cujo troféu — cacho dourado — concorria um rancho por região vinícola, com trajes e canções regionais. A região vinícola do Dão fez-se representar, em 1936, com o Rancho de Vil de Moinhos, com composições e arranjos seus de “feição regional”. No ano seguinte, o Rancho de Vil de Moinhos sofreu uma transformação, para se apresentar à nova edição do concurso: mudou o nome para Rancho Regional do Dão; aumentou o número de elementos para 24 pares; substituiu “a incaracterística indumentária por outra de feição regional da Beira Alta [recolhida no concelho de Castro de Aire] cheia de beleza e carácter”. Os sete ranchos que participaram no concurso realizado na edição de 1938 foram convidados a actuar no V Congresso Internacional da Vinha e do Vinho, realizado em Outubro desse ano em Lisboa. A apreciação de um jornalista que cobriu este evento reflecte a “feição regional” e da concepção de povo implícitos: “À distância dir-se-ia uma exibição de bonecos animados, tão certo o ritmo, tão graciosos os ademanes e tão cheios de cor os fatos”.

Quando, em Abril de 1938, aceita integrar o júri provincial do concurso nacional A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na qualidade de musicólogo, Almeida Campos já tinha participado em processos de folclorização e adquirido saberes específicos relativamente à formação de ranchos.

Embora o júri provincial de Viseu fosse constituído por cinco elementos — Luís Lucena e Vale, presidente da Junta da Província; Francisco de Almeida Moreira, director do Museu Grão Vasco; José Amado Morgado, etnógrafo e folclorista; Armando dos Santos Pereira, representante da Comissão Municipal de Turismo; e o próprio Almeida Campos, musicólogo — o trabalho de selecção e preparação das aldeias para o concurso coube apenas aos três últimos.

Almeida Campos é recordado pelos membros dos ranchos de Manhouce e de Cambra pelo elevado grau de exigência. A coordenação entre instrumentos, vozes e grupo de dança foi trabalhada. Almeida Campos impôs a execução musical e coreográfica num andamento constante, aspecto que, segundo aqueles informantes, os elementos do rancho não tinham em consideração até então. Passados mais de 60 anos, a sua acção é recordada pelo empenhamento no apuramento da perfeição e pela contribuição para o êxito das aldeias no concurso.

A participação no concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal exigiu a cada junta provincial o envio de um relatório sobre determinados aspectos da vida rural das aldeias concorrentes. Para tal, Almeida Campos transcreveu a linha melódica (registou também a parte instrumental para concertina do Vira da Aldeia e do Tareio, ambos de Manhouce) e a letra de 20 cantigas de Cambra e de Manhouce. Nove destas transcrições foram publicadas em 1955, na revista Beira Alta, com o título “Capítulo Musicológico”, precedidas de um preâmbulo onde refere como principal dificuldade na sua colaboração no concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, a recolha de cantigas. Esta dificuldade deveu-se a dois factores: o pouco conhecimento que a população feminina tinha do repertório em pesquisa “só uma ou outra rapariga, mais agarrada à tradição, ou uma ou outra velha, mais gaiteira nos são apontadas, com certa ironia, pelos janotas da terra, como a pessoa ou pessoas mais capazes de nos cantarem as cantigas que procuramos”; a recusa de algumas informantes colaborarem devido ao medo de represálias “a tia Ana da Serra mora lá no alto e não vem, porque tem receio de ser presa”.

Neste documento explica a forma de proceder à harmonização vocal, as designações locais de cada uma das vozes, identifica os instrumentos musicais, transcreve a letra e a melodia, e descreve os géneros musicais. Fornece ainda alguns dados relativos ao contexto de execução de alguns exemplos.

Num artigo publicado em Novembro de 1938, Almeida Campos explica a sua acção no âmbito do concurso: “E se souberem que parte dos corais já estava enterrada na garganta das velhas, que as modas de roda já pouco havia quem as dançasse e que tudo foi preciso reconstruir, anotar, escrever, movimentar”.

A sua actividade enquanto compositor inclui obras que contribuem para a “criação de uma escola Portuguesa que reflectisse o nosso verdadeiro carácter”. Resultam desse esforço: O Vira, que compõe em 1930, para coro do orfeão da Escola Comercial e Industrial de Viseu, do qual é director artístico; o Vira do Minho, de 1944, arranjo para canto e piano a partir de uma recolha de Armando Leça; O Enleio, de 1946, também para piano e canto e a partir de outra recolha de Leça na Estremadura; o arranjo, de 1939, de Ai Que Levas na Garrafinha (a partir de uma cantiga tradicional de Manhouce) para a Mocidade Portuguesa de Viseu, da qual era, na época, instrutor. A sua actividade como compositor dependeu de solicitações exteriores: apresentar-se a concursos, responder a encomendas ou dotar de repertório para os conjuntos musicais que dirigia. Nesta linha, o conjunto de composições para banda filarmónica resultou da sua actividade à frente da Banda Distrital da Legião Portuguesa.

Ao longo da sua vida viu-se envolvido em inúmeras polémicas, exprimindo-se em termos extremados: “Legionários! Abaixo o fado! Escaqueiremos o fado! Matemos o fado!”.

Conclusão

O percurso de Almeida Campos confunde-se com o processo de folclorização em Viseu e documenta as duas linhas de força que caracterizaram a sua dinâmica na primeira metade do século. Na década de 1920 e início da de 1930, a folclorização é um fenómeno que surge na periferia da cidade, protagonizado por trabalhadores urbanos que constituem grupos, designados regionais, segundo modelos vindos do litoral (por exemplo, as tricanas). Tanto o repertório como as coreografias são composições de autor, embora façam referência e tenham como modelo inspirador práticas do mundo rural da região que querem evocar. Os trajos são uniformizados. As tocatas combinam instrumentos variados. Recebem remunerações pelas suas actuações nas festas da cidade ou em espectáculos para angariação de fundos.

A partir de meados da década de 1930 a folclorização expande-se pela província da Beira Alta. A par dos grupos regionais referidos, surgem novos grupos (designados como folclóricos ou também regionais), que apresentam diferenças significativas relativamente aos anteriores, ao nível do repertório, instrumentos e trajo. Progressivamente, as composições de autor dão lugar às cantigas lembradas pelos trabalhadores rurais idosos de localidades afastadas dos centros urbanos e apuradas ao longo de ensaios pelos jovens que integram os grupos. As tocatas rejeitam os instrumentos das bandas e circunscrevem-se aos de “que o nosso povo se serve nas suas festas”. Proliferam as ocasiões para actuação não remunerada: as celebrações do Estado Novo, as festas da cidade, as recepções a individualidades nacionais ou estrangeiras, os concursos.

Campos deu um importante contributo para a circunscrição da ideia de povo ao mundo rural e para a legitimação e primado da cultura popular que se sustenta no ruralismo, em determinadas encenações do quotidiano passado e na reclamação da sua herança.

A acção de Almeida Campos permite ainda perceber a importância que, no interior do país, tiveram os músicos militares em outros domínios musicais.

[ Músicos naturais de Viseu ]
Partilhe
Share on facebook
Facebook