Música faz bem ao cérebro
Tão universal como a linguagem, presente desde a noite dos tempos, a música desenvolve as nossas capacidades intelectuais e ajuda a lutar contra a Doença de Alzheimer.
Gwendoline Dos Santos
Artigo da autoria de Gwendoline Dos Santos, publicado no jornal Le Point (30/10/2015), traduzido por António José Ferreira a 21 de janeiro de 2020 e publicado na Meloteca
A música não nos protege nem do frito nem do calor, nem do vento, nem do sol, nem dos predadores ou dos micróbios. Não se pode comê-la nem bebê-la. Quanto à ideia de se unir a ela, trabalho perdido. Numa primeira abordagem, é difícil compreender o que ela nos traz de um ponto de vista evolutivo, nada, de qualquer modo, que pareça garantir a sobrevivência da espécie. E contudo, ela é tão universal como a linguagem, está presente em todas as sociedades desde a noite dos tempos. Os primeiros instrumentos musicais descobertos pelos arqueólogos, as flautas talhadas em ossos de animais, têm 35000, talvez 40000 anos. Não deixando fósseis as melodias cantadas, o canto deve ter aparecido bem antes desta época pré-histórica. Que faz então a música ao nosso cérebro para lhe agradar tanto?
Toda a gente vibrou já com uma ária da Callas ou o “Don’t Stop Me Now”, dos Queen. Basta ver o transe em que entra Alex DeLarge, o sociopata ultraviolento de “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrik, desde as primeiras notas da 9ª sinfonia de Beethoven. A escuta da música pode gerar um ligeiro suor e uma modificação dos ritmos respiratório e cardíaco, um fenómeno fisiologicamente comparável ao orgasmo. Tal como a alimentação, o sexo ou as drogas, a música solicita o circuito da recompensa no cérebro do ouvinte. Este velho sistema posto em prática pela seleção natural para favorecer a satisfação das nossas necessidades fundamentais aumenta a libertação de dopamina, o neurotransmissor do prazer, responsável por este “arrepio musical”. É o que revelou, em 2011, uma equipa canadiana da universidade McGill na revista Nature Science, utilizando técnicas de imageologia cerebral (IRM e TEP). Eis o que nos estimula a renovar a experiência, podendo a música gerar um certo vício… perfeitamente inofensivo. Além de que ela não se contenta de provocar uma onda emocional, ela deixa nos cérebros traços duradoiros, seja no músico ou no simples ouvinte.
Um cérebro sob a influência da música
Hervé Platel, cujos trabalhos são mundialmente conhecidos, é um dos primeiros investigadores, nos anos 90, a a ter observado o cérebro sob a influência da música graças à imageologia por ressonância magnética. Com a sua equipa, este professor de neurofisiologia do Inserm, exercendo na universidade de Caen, conseguiu destacar as redes do cérebro implicadas na perceção e na memória musicais. Até então, pensava-se que os dois hemisférios do cérebro desempenhavam um papel complementar, o esquerdo intervindo na lógica e na linguagem, o direito na parte artística. “Ora a música compromete o cérebro na sua globalidade, ela solicita-o nas zonas que têm funções muito mais vastas”, explica o investigador. Escutar uma obra musical cria no cérebro uma verdadeira “sinfonia neuronal” pondo em jogo os quatro lóbulos cerebrais, o cerebelo e ainda o hipocampo, conhecido sobretudo pelo seu papel na memória. Foi aliás no hipocampo que, com a sua equipa, Hervé Platel descobriu, em 2010, que a mais atividade cerebral nos músicos do que nos não-músicos e que a quantidade de neurónios aumenta em função do número de anos de prática e de intensidade desta. É que o nosso cérebro tem plasticidade.
À medida que se aprende a fazer malabarismo ou a falar russo, a aprendizagem desenvolve zonas do cérebro – é uma das propriedades fundamentais deste último. Em função dos exercícios que pratica e dos estímulos que recebe, ele cria novos neurónios (a neurogénese) mas, sobretudo, multiplica conexões (sinapses) para otimizar os desempenhos: é a famosa plasticidade cerebral.
O mesmo sucede quando alguém se inicia na música. Mesmo se aprende muito tarde a tocar um instrumento, o cérebro modifica-se: a música “muscula-o” e enriquece-o com uma larga paleta de capacidades cognitivas. Este treino neuronal beneficia sobretudo os jovens músicos. “Antes da adolescência, sendo o cérebro ainda imaturo, cada nova aprendizagem desafia a sua estrutura”, explica Hervé Platel, que fará parte dos quarenta peritos do cérebro reunidos pelo Le Point em Nice pela primeira edição de Neuroplanète.
As propriedades terapêuticas da música
Para além das zonas da audição, a prática de um instrumento desenvolve as regiões que tratam das informações motoras – que aliás não serão as mesmas num pianista e num violinista -, mas também em larga medida as da linguagem, com a qual ela partilha diversas áreas comuns, além da memória e do prazer. O músico criança obtém assim melhores desempenhos motores, adquire um vocabulário mais rico, desenvolve uma maior facilidade em ler, escrever, aprender línguas, compreender as matemáticas, aperfeiçoar o raciocínio, tornar-se lógico… até se revelar melhor nos testes de QI do que os colegas não-músicos. A música torna a criança mais inteligente? “Evidentemente, seria redutor! Mas ir ao conservatório, é como ir duas vezes à escola! Aprender solfejo, dominar um instrumento, obrigar-se a sincronizar com os outros músicos são atividades extremamente exigentes que vão estimular numerosas partes do cérebro, desenvolvê-las e treinar quantidade de benefícios que manterá toda a sua vida, mesmo se mais tarde deixa de fazer música”, nota o especialista.
A música não só tem um impacto sobre o funcionamento do nosso cérebro e as nossas competências intelectuais, mas também propriedades terapêuticas espantosas. As oficinas de música multiplicam-se para ajudar os doentes de Alzheimer, acalmar a sua ansiedade, melhorar o seu humor. Facto completamente inesperado: “Nos doentes de Alzheimer, a memória musical resiste, mesmo numa fase muito severa. O seu cérebro continua a codificar informações”, entusiasma-se Platel, que trabalha com doenças neurodegenerativas.
Se fazemos ouvir melodias novas a pessoas que apresentam amnésias maiores, elas são capazes, vários meses mais tarde, de as trautear. Mesmo com o seu seu hipocampo degradado, a memória persiste na sua cabeça. De facto, a memória solicita outro caminho, menos vulnerável à lesões cerebrais. “Nós estamos prestes a lançar um estudo que vai permitir observar o cérebro de pessoas muito atentas para compreender o percurso desta memória inconsciente”, confia o neurofisiólogo.
Novos campos terapêuticos são permanentemente descobertos. A musicoterapia encontra o seu lugar em tratamentos de stress, dor, dislexia, serviços de psiquiatria… Por vezes, ela parece agir miraculosamente. A aprendizagem do piano ajuda as vítimas de um AVC a reencontrar as suas capacidades motoras, o canto, a palavra. Uma música com ritmo adaptado assegura e uniformiza a marcha dos pacientes que tinham uma atividade motora desordenada por causa da doença de Parkinson. “A música abranda os costumes”, diz o provérbio. Provado pelas neurociências. Música, maestro!