Krzysztof Penderecki
Esta Páscoa está a ser marcada pela “passagem” de muitos. Os anónimos e outros, cujo legado singular celebramos. O compositor polaco Krzysztof Penderecki (1933-2020) morreu num domingo, no passado 29 março, na cidade polaca de Carcóvia, com a idade de 86, depois de doença prolongada.
Penderecki nasceu no dia 23 de novembro no seio de uma família que transportava a memória das migrações arménias, naquela geografia. No seu país de origem, Krzysztof Penderecki é celebrado, a par de Witold Lutosławski (1913-1994), como um dos principais representantes da cultura contemporânea polaca. Mas o mesmo podemos afirmar, na perspetiva da cultura europeia e norteamericana, tendo em conta que o seu trabalho e o seu reconhecimento ultrapassaram as fronteiras criadas pelas dinâmicas políticas de sovietização da Europa de Leste, para se inscrever no coração das práticas musicais contemporâneas.
A obra de Krzysztof Penderecki tem momentos diversos. Não é uma biografia intelectual linear. A sua linguagem musical conheceu momentos de redireccionamento. O abandono de algumas tendências mais vanguardistas foi criticado pelos seus pares e, em certos casos, saudado pelos públicos. Mas julgo que se poderá afirmar que ele ficará na história da música ocidental, da segunda metade do século XX, pelo facto de a sua obra ser um lugar de codificação inventiva das aquisições técnicas mais avançadas, nesse período.
Ainda hoje, as suas obras são uma biblioteca segura para a descoberta das novas formas de abordagem dos instrumentos musicais, e sua notação, que acompanharam essa modernidade musical.
Entre outras, a obra Trenodia [Ode] às Vítimas de Hiroshima tornou-se um símbolo desta contemporaneidade. Trata-se de uma obra para um ensemble de 52 instrumentos de corda, composta em 1960 e premiada, em 1961, pela Tribuna Internacional dos Compositores (UNESCO). Nessa criação, pode dizer-se que Penderecki experimenta todos os limites da escrita para estes instrumentos, construindo o mapa de um mundo sonoro desconhecido. A obra homenageia os residentes de Hiroshima, vítimas da explosão atómica.
Deve referir-se ainda o seu trabalho de criação musical para filmes como O Exorcista, de William Friedkin, Shining de Stanley Kubrick, e Um coração selvagem de David Lynch. Em 2011, Penderecki colaborou com projetos musicais de Jonny Greenwood, guitarrista dos Radiohead, e com o compositor de música eletrónica Aphex Twin.
A memória deste compositor polaco ficará associada à presença de referências religiosas na música contemporânea europeia – referências raras em muitos dos seus compagnons de route. Em todas as fases da sua biografia musical, encontramos vários frescos corais, recebidos como referências incontornáveis para a história recente da música vocal. É disso exemplo o seu Stabat Mater (1962) – obra que foi acolhida como o símbolo da incorporação do movimento de vanguarda do pós-guerra na música religiosa. Nesse mesmo ano, recebeu a encomenda da rádio de Colónia para a criação de uma Paixão segundo São Lucas, que virá a concluir em 1965. A sua conceção acompanhará a realização do II Concílio do Vaticano, contexto em que, como é sabido, se procurou inscrever a relação com o judaísmo numa nova linguagem. Segundo as palavras do compositor, com esta obra, pretendia “não apenas voltar a narrar o sofrimento e a morte de Cristo, mas falar da crueldade do nosso século, do martírio de Auschwitz”. No quadro deste programa, Penderecki pretende “transportar o auditório para o coração do acontecimento, como num mistério medieval, onde ninguém permanece de fora”.
Recordo que o século XX foi o século do regresso da Paixão como forma musical, particularmente depois da I Guerra Mundial. Se acompanharmos René Girard, que leu os evangelhos cristãos da Paixão como o testemunho de uma estreia cultural – a emergência de um Deus das vítimas –, podemos descobrir uma forte correlação entre a valorização musical dessa narrativa e a centralidade do valor atribuído ao “cuidado da vítima”, na memória desse século. Mas há um problema. Como vão lidar os compositores com uma ambivalência: a passagem da figura dos judeus como perseguidores (nos evangelhos) para o lugar da vítima?
A Paixão de Penderecki segue o Evangelho de Lucas, mas introduz diversas interpolações, constituídas por textos litúrgicos da Semana Santa – incluindo o Stabat Mater, escrito anteriormente. O resultado é um mosaico musical, com algumas alusões às tradições da música ritual latina, mas fortemente marcado pelas experiências do compositor no domínio da criação coral de grande escala. A obra foi recebida como um monumento musical de grande impacto. Mas algumas das leituras da obra sublinhavam o paradoxo patente entre a intenção do compositor e a sua escolha de materiais. Essa relação diz respeito à incongruência notada entre a evocação dos judeus vítimas em Auschwitz e os judeus que constituem a “turba” que reclama a crucifixão – ou ainda a centralidade que os “impropérios” recebem no programa construído por Penderecki.
A sensibilidade Penderecki à questão das vítimas judaicas encontrará uma expressão mais evidente, já em 2009 – 43 anos depois da Paixão –, quando passavam 65 anos sobre a destruição do ghetto de Lodz. Neste contexto, Penderecki escreveu o oratório Kaddish, dedicado a “todos os Abrameks de Lodz que queriam viver e aos polacos que salvaram judeus”. O nome indicado na dedicatória da obra é o de Abramek Cytryn, jovem judeu morto com quinze anos, a quem pertence o poema que abre o oratório.
Diria que se poderia fazer a história do século XX a partir das criações musicais sobre as narrativas da Paixão. Nessa história, desvendam-se as feridas da nossa contemporaneidade e pode descobrir-se uma trajetória de valorização da dimensão universal destas narrativas cristãs.
Alfredo Teixeira, compositor e antropólogo