Citações de Música na Poesia

Sophia de Mello Breyner Andresen

Música na Poesia

Citações de música na poesia e poemas de temática musical

A ópera

Schiller e a ópera

Schiller e a ópera

As cordas

A música e o Anel dos Nibelungos

A música e o Anel dos Nibelungos

[ Simónides

(Séc. VI-V a.C.)

Inúmeras, as aves voavam
sobre a sua cabeça
e os peixes, em pé, saltavam das águas de anil do mar,
ao som do seu belo canto. ]

[ Da epopeia dos Nibelungos

(c. 1200)

Quando soam as cordas
do seu instrumento,
doces e suaves,
então dissolvem-se as dores de quem sofre. ]

[ Al-Kutayyir

(séc. XIII)

O que me dá prazer não é o vinho, não!
Nem tão pouco a música, nem sequer o canto.
Apenas os livros são o meu encanto
e a pena: a espada que tenho sempre à mão. ]

[ Luís de Camões

(n. Lisboa? 1524/1525; m. Lisboa 10 Junho 1580)

Luís de Camões
Luís de Camões

Nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: – Música amada,
deixo-te neste arvoredo,
à memória consagrada.
Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
p’ra onde estáveis correndo,
e as águas, que iam descendo,
tornavam logo a subir. ]

[ Collecão de Sonetos

(1786)

À morte de José António Carlos Seixas, famoso cravista

Por perpétuo silencio a Parca dura
Do Luso Orféo à doce melodia,
Já se vê os assombros da harmonia
Clauzurados no horror da Sepultura.

Na destreza feliz, na ideia pura
Do impulso humano as forças excedia,
E invejando-lhe a morte a idolatria
Provar-lhe o culto em lágrimas porfia.

Se deve à Pátria o seu merecimento
Glória imortal em vida transitória
Seja igual à jactância hoje o lamento[,]

Porém[,] de tanta perda na memória,
Aonde irá parar o sentimento[,]
Se serve a pena a proporção da glória.

(Soneto presente na “Collecão de Sonetos, serios, que se não achão impressos, extrahidos dos ms. antigos e modernos [Lisboa?], 1786, p. 437. Lisboa: Biblioteca Nacional, Cod. 8610) ]

[ Fernando Pessoa

(Lisboa, 13 de Junho de 1888 – Lisboa, 30 de Novembro de 1935)
Chuva Oblíqua (VI parte)

Fernando Pessoa
Fernando Pessoa

O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe …

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo …

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo. e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal… E a música atira com bolas
À minha infância… E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos …

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo…

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância…

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo… ]

Chuva Oblíqua (IV parte)

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!.
As paredes estão na Andaluzia.
Há danças sensuais no brilho fixo da luz.
De repente todo o espaço pára.
Pára, escorrega, desembrulha-se,
E num canto do tecto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados. ]

[ Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa

A música, sim a música…
Piano banal do outro andar.
A música em todo o caso, a música..
Aquilo que vem buscar o choro imanente
De toda a criatura humana
Aquilo que vem torturar a calma
Com o desejo duma calma melhor…
A música… Um piano lá em cima
Com alguém que o toca mal.
Mas é música…
Ah quantas infâncias tive!
Quantas boas mágoas?,
A música…
Quantas mais boas mágoas!
Sempre a música…
O pobre piano tocado por quem não sabe tocar.
Mas apesar de tudo é música.
Ah, lá conseguiu uma música seguida —
Uma melodia racional —
Racional, meu Deus!
Como se alguma coisa fosse racional!
Que novas paisagens de um piano mal tocado?
A música!… A música…! ]

[ T. S. Eliot

(n. St. Louis, 1888; m. London 1965)

Naquele canto decadente no meio das montanhas
Sob o pálido luar, a erva canta
Sobre as tumbas caídas, em volta da capela.
A capela está vazia, apenas refúgio do vento.
Não tem janelas e a porta bate,
Ossos secos não fazem mal a ninguém.
Sobre o telhado apenas um galo
Cocoricó, cocoricó,
Sob a luz do relâmpago. ]

[ José Gomes Ferreira

(n. Porto 1900, m. Lisboa 1985)

Sofres?
Respira.
Não há outra lira.

+

Chove…
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama. ]

[ Alfredo Pedro Guisado

(n. 1891; m. 1975)

Sinto-as tanger ainda os violinos velhos,
Onde os dedos saltando em cordas de oiro, à tarde,
Te cegaram de som. ]

[ António Aleixo

(n. Vila Real de Santo António 1899; m. 1949)

Tem a música o poder
de tornar o homem f’liz
nem há quem saiba dizer
tanto quanto ela nos diz. ]

[ Florbela Espanca

(n. Vila Viçosa 1894 – m. Matosinhos 1930)

Florbela Espanca
Florbela Espanca

Não se acende hoje a luz… Todo o luar
Fique lá fora. Bem aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco… Um morcego, a palpitar,
Passa… torna a passar… torna a passar…
As coisas têm o ar de adormecidas…

Mansinho… Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!

E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridão da sala… ]

+

Só Schumann, meu Amor! Serenidade…
Não assustes os sonhos… Ah! não varras
As quimeras… Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade…

Liszt, agora, o brilhante; o piano arde…
Beijos alados… ecos de fanfarras…
Pétalas dos teus dedos feitos garras…
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!

Eu olhava para ti… «É lindo! Ideal!»
Gemeram nossas vozes confundidas.
– Havia rosas cor-de-rosa aos molhos –

Falavas de Liszt e eu… da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos… ]

[ Leopold Senghor

(n. Joal, Dacar 1906; m. França 2001)

Quando fiz a primeira comunhão, aos dez anos, pensava que no céu a maior felicidade era cantar, dançando. ]

[ Vinayak Krishna Gokak

(n. Índia 1909; m. 1992)

Com que canção deverei cantar-te, minha mãe?
Perguntei.
Deverei cantar
Os Himalaias com os seus cumes nascidos da neve,
Os três mares que banham a palma da tua mão?
Deverei cantar
A aurora clara com os seus raios de ouro puro?
Disse a Mãe imperturbável, calma:
Canta o mendigo e o leproso
Que enchem as minhas ruas. ]

[ Dorothy Livesay

(n. Canadá 1909; m. 1996)

Tem de lançar-se alto e mais alto ainda
De galáxia em galáxia,
Arrancar às estrelas as suas notas momentâneas
Roubar música à lua. ]

[ Elizabeth Bishop

(n. EUA 1911; m. 1979)

O seu canto ecoava de uma ponta à outra
da escuridão sob uma árvore batida pelo vento
onde reluziam as asas de pequenos insectos.
O seu canto fendeu o céu em dois. ]

[ Jorge de Sena

(1971) (n. Lisboa 1919; m. Santa Bárbara, Califórnia 1978)

Jorge de Sena, foto Fernando Lemos 1949
Jorge de Sena, foto Fernando Lemos 1949

Vulgar, ligeira, música sem nome,
adoecida num rascante falso
de orquestração pedante e requebrada,
tão apelante para o sentimento
e a fácil lágrima pi-rí-pi-rí-
mas em momentos de abandono é como
lubrificante cuspo que, secreto,
faz deslizante n’alma até ao fundo
o membro imenso de aturar-se a vida.
Depois, mesmo sem música, já está,
e a fêmea humana de aceitar-se a dor
até que as pernas junta de prazer
lembrando a melodia oleante e fluida,
vulgar, ligeira, música sem nome. ]

+

A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. Começariam
onde a expressão verbal não se articula
por impossível. Viveriam sempre
na fímbria estreita à beira da maldade
e do absurdo, como que suspensos
na solidão da morte sem palavras.
Não é, portanto, a música o limite
ilimitado dos limites da linguagem,
para dizer-se o que não é dizível.
Mas, se não é, que dizem lancinantes,
neste discreto passeio pelo tempo,
os quatro instrumentos semelhantes
no seu modo de criarem som?
Tão terrível. Sufocante. Doce
ou agridoce desconcerto harmónico.
Que diz? Que diz? Neste contínuo
de temas e andamentos, de tonalidades,
o que se justifica? Que discutem eles?
A sua mesma natureza de instrumentos
e as combinações até ao infinito
de um mecanismo abstracto do imaginar?
Como pode uma coisa que sentimos tão medonha,
tão visionariamente séria e pensativa,
ser irresponsável?
Será que nos diz do aquém, do abaixo,
do infra, do primário, do barbárico,
do animal sem alma e sem razão?
Será que todo este rigor tão belo
é como que a estrutura prévia
de que existimos ao pensar as coisas?
E não a quintessência depurada
de uma estrutura que se consentiu
todo o significar a que as palavras vieram
da analogia nominal e mágica
até à consciência dos universais?
Não há tristeza alguma nesta
vida transformada em puro som,
em homogénea outra realidade?
Não é de angústia este rasgar melódico
da consciência antes de criar-se humana?
De que, portanto, vem este triunfo
que se precipita, contraditório, nas arcadas
dos instrumentos conversando essências?
É simples convenção? É artifício?
Silêncio irresponsável?
Se há mistério na grandeza ignota,
e se há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras
ou quando puramente inúteis forem. ]

+

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa corre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no frevor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fechas tranquilas no possuir da sorte. ]

[ Sophia de Mello Breyner Andresen

(n. Porto 1919; m. Lisboa 2004)

Sophia de Mello Breyner Andresen
Sophia de Mello Breyner Andresen

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

+

O Piano sílaba por sílaba
Viaja através do silêncio
Transpõe um por um
Os múltiplos murais do silêncio
Entre luz e penumbra joga
E de terra em terra persegue
A nostalgia até ao seu último reduto

+

Na voz de oiro e de sombra da guitarra
Algo de mim a si próprio renuncia. ]

+

[ Rosemary Dobson

(n. Austrália 1920)

Estava feito. Enrolando as mangas
Pegou na flauta
E ao caminhar para o local da execução
Tocou uma nova melodia. ]

[ José Saramago

(n. 1922)

José Saramago
José Saramago

Venham leis e homens de balanças,
mandamentos d’aquém e d’além mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças,
desça em nós o juízo até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos à vassoura.

A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
relógios a marcar a hora exacta.
Não aceitem nem queiram outra arte
que a prosa de registo, o verso acta.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
cercados de bastões e fortalezas,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas.

Os Poemas Possíveis 1966 ]

[ Eugénio de Andrade

(n. Póvoa da Atalaia, Fundão 1923 – m. Porto 2005)

Eugénio de Andrade
Eugénio de Andrade

Canto porque sou homem.
se não cantasse seria
o mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho. ]

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?

Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

+

A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
– sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas… ]

[ Ernesto Cardenal

(n. 1925)

Junto aos rios de Babilónia
Estamos sentados e choramos
Ao lembrar-nos de Sião.
Ao olhar o arranha-céus de Babilónia
e as luzes reflectidas no rio
as luzes dos night-clubs e dos bares de Babilónia
e ao ouvir suas músicas
E choramos
Nos salgueiros da margem
Penduramos nossas cítaras
Dos salgueiros chorosos
E choramos. ]

[ Maria de Macedo

n. Vila Nova de Gaia, Portugal, 1931

Contradição

Fui ao bosque silencioso
Na sua tristeza confusa
Soava um violino sem cordas
E no caminho as folhas mortas
Em modo menor uma Allemanda cansada
Desliza o riacho sem água
E o amor morto vive Ali para mim ]

[ Tomas Tranströmer

(n. Estocolmo, Suécia 1931 – m. Estocolmo 2015)

Tomas Tranströmer, poeta

Allegro

Depois de um dia negro, toco Haydn
e sinto um calor humilde nas mãos.

O teclado quer.
Suaves marteladas batem.
O acorde é verde, animado e calmo.

O acorde diz que a liberdade existe
e que alguém não paga impostos ao imperador.

Enfio as mãos nos meus bolsos de Haydn,
imito alguém que contempla o mundo com serenidade.

Iço a bandeira de Haydn – o que significa:
nós não nos rendemos. Antes queremos paz.

A música é uma casa de vidro na encosta
onde as pedras voam, onde as pedras rolam.

E as pedras rolam em todas as direcções,
mas os vidros das janelas permanecem intactos. ]

[ Gilberto Mendonça Teles

(n. Brasil, 1931-)

Um dia descobriu que a mão esquerda
era mais emotiva e mais ausente:
dedilhava por dentro o que era perda
e sondava por fora o inexistente.

E descobriu que quanto mais isento
o acorde se tornava, e delicado,
tanto mais se ordenava o movimento
da música de fundo no teclado.

E viu-se de repente entretecido
no mais difícil, no desvão do espaço,
quando as notas colhiam seu sentido
nas formas invisíveis do compasso.

Sentiu-se solidário na partida
e chorou solitário na aventura,
como se em cada coisa a própria vida
se lhe escapasse numa partitura.

E foi aí que se sentiu restrito,
que se fez de silêncio e de resvalo:
a mão esquerda desdobrava o mito
e dedilhava as sombras do intervalo. ]

[ Adelina Caravana Rigaud

Se perguntares à música
que tem para dizer,
imagens ou prodígios
a emoção mais real,
viverás bem no fundo
com o ser todo inteiro
o consolo, as respostas.
Viverás muitas vidas
ricas como tesouros.

E então, dentro de ti
Com alimento e cor
dirás um obrigado
mesmo que seja à dor. ]

[ Georges Dor

(n. Drummondville 1931; m. 2001)

Quando canto, torno-me canção,
quando escrevo torno-me poema,
quando vos digo: amo-vos,
torno-me o verbo amar
em todos os tempos. ]

[ Pedro Tamen

(n. Lisboa, 1934)

Cantas. Não sei bem onde,
mas atravessas as paredes da casa
e do coração. O amor indetectado
lança notas da música da terra
– não a das estrelas, que não há

Cantas. E o universo é uno,
é uno neste verso.” ]

[ Manuel Alegre

(n. Águeda, 1936)

De Deus não sei. Mas quase creio
que Deus poisou nas mãos cheias de terra
de um jovem camponês de Sotto il Monte.
Por isso mando à Praça de São Pedro
não uma prece
mas a minha canção fraterna e livre
esta canção
que vai pedir-te a humana bênção
João XXIII: avô do século. ]

Vasco Graça Moura

(n. Porto, 1942 – m. 2014)

blues da morte de amor

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim. ]

[ Adam Zagajewski

(n. 1945 – m. 2021)

O Violoncelo

Quem não gosta dele diz que é
apenas uma mutação do violino
que foi corrida do coro.
Não é assim.
O violoncelo tem imensos segredos,
mas nunca soluça,
canta apenas na sua voz baixa.
Nem tudo se transforma numa canção,
porém. Às vezes apanhamos
um murmúrio ou um sussurro:
sinto-me sozinho,
não consigo dormir. ]

[ Joaquim Pessoa

(n. Barreiro, 1948)

Joaquim Pessoa
Joaquim Pessoa

Canta
Atreve-te a julgar
Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza.
Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções,
não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer.
Os teus dentes
estão lavados, as tuas mãos são amáveis
mas falta-te
decisão nos passos e firmeza nos gestos.
Procura-te. Procura encontrar-te antes que
te agarre a voracidade do tempo.
Faz as coisas com paixão.
Uma paixão irrequieta que não te dê descanso
e te faça doer a respiração.
Aspira o ar, bebe-o com força, é teu,
nem um cêntimo pagarás por ele.
Quanto deves é à vida, o que deves é a ti mesmo.
Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência
com que crescem as árvores,
canta cada momento que partilhas com amigos,
e cada amigo
como um astro que desponta
no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor. E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria.
A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros os séculos passados
e os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida,
talvez beleza, orgulho, pedaços de prazer.
A estrela que contemplas talvez já não exista, quem sabe,
o que te ajudou a ser vida de quantas vidas precisou.
Canta!
Se sentires medo, canta.
Mas se em ti não couber a alegria, não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta.
Constrói o teu amor, vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem,
o que mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual,
nada será igual alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança.
E canta quando a esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e
porque gostas de cantar e
porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso.
Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade.

Guardar o Fogo, pp. 318-319. ]

[ José Jorge Letria

(n. Cascais, 1951)

Mozart
Última carta

Quem rirá por mim agora quando eu deixar de rir?
E este cansaço que entorpece os gestos
Se converter no absoluto silêncio
Que escreve na sede da Terra a sequiosa palavra
Eternidade
Deixa-me ficar assim
Para sempre
Menino apenas do sobressalto destas cartas
De mim já tudo se disse
E eu quero um cravo temperado com a loucura das estrelas
Um oboé altivo com os segredos do vento
Um flautim arfando com os mistérios da brisa
Deixa-me renascer menino no teu regaço
Amante e mãe
Que a minha música pertence a um tempo maior
Que aquele por que se mede
A grandeza das catedrais
Belíssima mulher
Ninguém me matou
Fui eu que morri
Por não caber em mim
De tamanho espanto
Ao fazer-me música ]

[ Aurelino Costa

(n. Argivai, Póvoa de Varzim, 1956)

De ti ficou
O cavaquinho
E a alegria.

No acorde da festa
E do trabalho
Teus dedos espalmados
Fizeram nascer searas ]

[ Emília Borges Martins

(n. Angola, 1970)

Uma harpa…
Que nos transporta entre sons cálidos,
Sons onde o trajecto faz-se sem compasso,
Sons que nos remetem a sonhos invencíveis.
Um vaguear sem norte…
As imagens que envolvem os movimentos
Numa consciência por concretizar.
Harpa de finas cordas,
A simplicidade
De quem caminha com um propósito.
Parceira numa dança melódica
Onde se desbrava as terras mais áridas,
Onde se adormece numa realidade feita poesia. ]

[ Ana Leonor Pereira

Os inventores dos sinos
Não sabiam do tempo.

Não sonhavam que as suas badaladas
Poderiam cortar fatias de horas finas,
Definir minutos,
Encaixar os dias.
Os sinos, esses, viram-se defraudados
Na sua tarefa primordial –
– A de adornar as manhãs e as tardes
Com o seu som de metal.

Alguns, ainda tiveram o privilégio
De cantar uns hinos,
Salmodiar uns risos,
Encantar meninos.

Outros, brilharam na tarde preguiçosa
Com as costas a dourar ao sol.

Mas nenhuns,
Nenhuns mesmo,
Querem saber do tempo!
Ignoram as horas e tocam caprichosamente
Quando lhes apetece badalar!

Os sinos conhecem o segredo da música
E sabem esculpir
Em teia fina
A filigrana da vida.
Sabem parar o dia.
Enfim, sabem tocar. ]

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