Retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros

Ai, Margarida

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava com um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria a tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

Poema: Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (in “Álvaro de Campos: Poesia”, org. Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002 – p. 316-317)
Música: Mário Laginha
Intérprete: Camané Primeira versão discográfica de Camané (in 2CD “Camané: O Melhor 1995-2013 (Edição Especial)”: CD 2, EMI, 2013) Versão original: Cristina Branco com Jorge Palma (in CD “Kronos”, Universal, 2009)

Cai Chuva do Céu Cinzento

Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizê-la mas pesa
O quanto comigo minto.

Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito.
Murcha a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Mas nisto tudo a verdade
Ai! É só eu ter que morrer.

Poema: Fernando Pessoa (excertos adaptados de três poemas)
Música: Maria Teresa de Noronha (Fado das Horas)
Intérprete: Tereza Tarouca (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970; LP “Os Melhores Fados de Tereza Tarouca”, RCA Camden, 1978; 2LP “Álbum de Recordações”: LP 1, Polydor/PolyGram, 1985; CD “Temas de Ouro da Música Portuguesa”, Polydor/PolyGram, 1992; CD “Álbum de Recordações”, Alma do Fado/Home Company, 2006; CD “Tereza Tarouca”, col. Fado Alma Lusitana III, vol. 3, Levoir / Correio da Manhã, 2014)

Maria Teresa de Noronha

fadista Maria Teresa de Noronha

Cai chuva do céu cinzento

Fernando Pessoa, 15-11-1930, in “Poesias Inéditas (1930-1935)”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. VII, Lisboa: Edições Ática, 1955, imp. 1990 – p. 25

Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.

Ditosos a quem acena

[ Marinha ]

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena…
Eu sofro sem pena a vida.

Doou-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
A maresia dos dias.

Poema: Fernando Pessoa (in revista “Presença”, n.º 5, Coimbra: Jun. 1927; “Poesias de Fernando Pessoa”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 14.ª edição, Lisboa: Edições Ática, 1993 – p. 219) Música: Reinaldo Varela (Fado Meia-Noite) Intérprete: Afonso Dias (in CD “Aleixo e Pessoa em Desgarrada (Im)provável: Os Modos e os Olhares”, Bons Ofícios – Associação Cultural, 2016)

Há uma música do povo

Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado…

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser…
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver…

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção …
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração …

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido…
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!

Intérprete: Mariza
Letra: Fernando Pessoa
Música: Mário Pacheco

Retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros

Retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros

Levas chinelas

[ Quadras ao Gosto Popular ]

Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som parar.

Teu xaile de seda escura
É posto de tal feição
Que alegre se dependura
Dentro do meu coração.

Comi melão retalhado
E bebi vinho depois,
Quanto mais olho p’ra ti
Mais sei que não somos dois.

Tiraste o linho da arca,
Da arca tiraste o linho.
Meu coração tem a marca
Que lhe puseste mansinho.

Ao dobrar o guardanapo
Para o meteres na argola
Fizeste-me conhecer
Como um coração se enrola.

Aquela que mora ali
E que ali está à janela
Se um dia morar aqui
Se calhar não será ela.

Este é o riso daquela
Em que não se reparou.
Quando a gente se acautela
Vê que não se acautelou.

Quantas vezes a memória
Para fingir que inda é gente,
Nos conta uma grande história
Em que ninguém está presente.

Poema: Fernando Pessoa (quadras avulsas, in “Quadras ao Gosto Popular”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. IX, Lisboa: Edições Ática, 1965, 6.ª edição, Lisboa: Edições Ática, 1973 – p. 40, 45, 86, 94, 94, 108, 113, 57)
Música: Álvaro M. B. Amaro
Intérprete: Dialecto (in CD “Aromas”, Dialecto/Cloudnoise, 2011

Se tudo o que há é mentira

Fernando Pessoa, 14-10-1930, in “Poesias Inéditas (1930-1935)”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. VII, Lisboa: Edições Ática, 1955, imp. 1990 – p. 22

Se tudo o que há é mentira,
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira,
A nada nada se dá.

Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.

Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito.
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Mais vale é o mais valer,
Que o resto urtigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.

O ruído vário da rua

Fernando Pessoa, 21-2-1931, in “Poesias Inéditas (1930-1935)”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. VII, Lisboa: Edições Ática, 1955, imp. 1990 – p. 29

O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua.
Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Ó sino da minha aldeia

[ Sino da Minha Aldeia ]

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

E a cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Poema: Fernando Pessoa (ligeiramente adaptado)
Música: Armando Goes (Fado da Saudade)
Intérprete: Tereza Tarouca* (in LP “Fado e Folclore”, RCA Victor, 1970)

Raul Nery

guitarrista Raul Nery

Ó sino da minha aldeia

Fernando Pessoa, in “Renascença”, Lisboa: Fev. 1924; “Poesias de Fernando Pessoa”, col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 15.ª edição, 1995 – p. 93-94

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

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