Música e cuidados paliativos

MÚSICA E CUIDADOS PALIATIVOS

Reflexões sobre a Intervenção Musical em Ambientes de Cuidados Paliativos

por Wilson Brisola Fabro

“Como alguém que despe sua roupa em tempo de frio, e como vinagre sobre o salitre, assim é o que pretende cantar para um coração oprimido”. (Provérbios 25:20)

Nesses “tempos modernos” onde as linguagens mediáticas nos tomam de sobressalto, quando falo da importância da música ouço muito a expressão: “a música é somente um paliativo”!

Como definição, o termo “paliativo” deriva do latim pallium, que significa “manto”, “capote”, que aponta sobre os cuidados em aliviar os sintomas da dor e o sofrimento dos pacientes tendo como objetivo o paciente em sua globalidade de ser e aprimorar sua qualidade de vida.

Etimologicamente, significa prover um manto para aquecer “aqueles que passam frio”.

A música pode criar relações que visam o encontro com a centralidade de cada pessoa, permitindo recolocar em movimentos vários tipos de emoções que não se encontram nos hospitais e lugares de cuidados, podendo promover comunicação. (M. Buber)

O seu poder evocativo que perpassa aquilo que se vê, deverá considerar a pessoa, este encontro único, a sua história e a sua dignidade humana!

A música no ambiente hospitalar serve como uma proposta de Humanização, alcançando efeitos fisiológicos e psicológicos nos pacientes e também naqueles que atendem.

Há relatos em papiros egípcios que médicos usavam a música nos primórdios da medicina.

O entendimento grego sobre a doença era visto como desequilíbrio, e a música era utilizada como uma ferramenta usada para reorganizar, reequilibrar, levando a harmonia do corpo e mente através dos sons.

A música se insere como instrumento para a melhoria da qualidade de vida do paciente internado, na busca de sua melhoria e alta hospitalar.

“O homem está apto ao encontro na medida em que ele é totalidade que age” (M. Buber)

As atividades musicais de ouvir, cantar e tocar podem exercer um papel terapêutico e melhora da qualidade de vida.

Existe um efeito de sensibilização e humanização do espaço onde a música é inserida com arte e dedicação.

Diversos profissionais utilizam a música no tratamento da saúde, mas o que diferencia cada prática profissional é a formação e os objetivos da música no ambiente.

Seja em leitos de enfermarias dos hospitais, como junto a uma cadeira de rodas em uma Instituição de Longa Permanência, o músico deverá buscar:

  • Um ato musical autêntico e uma atitude de escuta;
  • Uma música compartilhada é um ambiente sonoro enriquecido;
  • Uma estreita interação entre os músicos, os doentes, as famílias e as equipes hospitalares.

Dentro da proposta de uma intervenção musical em ambientes de cuidados o músico terá como finalidade, integrar o projeto de humanização do hospital, colaborando na melhoria da qualidade de vida de todos (utentes e profissionais) no hospital, sensibilizando e estimulando novas experiências artísticas e musicais.

Texto extraído do livro Afetos Musicais. Editora Shiraz – 2016/Brasil.

Música e cuidados paliativos

Wilson Fabro

A roda como mandala

A roda como mandala

Benita Michahelles

A roda é um símbolo universal. A sua força consiste no fato de ser ela uma representação viva da Mandala.

“Enquanto figuras arquetípicas, as Mandalas são dadas com cada novo indivíduo que nasce e pertencem à existência inalienável do conjunto de propriedades que caracterizam uma espécie”.

Jung, 1977

Jung fez um estudo profundo sobre este símbolo. Para ele, a Mandala é a expressão geométrica do self.

“A palavra do sânscrito ‘Mandala’ significa círculo, roda no sentido geral. No campo de utilização da religião e da psicologia, ela refere-se a figuras circulares que podem ser desenhadas, pintadas, esculpidas ou dançadas (…). Como fenómeno psicológico elas aparecem espontaneamente em sonhos, em certas condições de conflito e na esquizofrenia.”

“O círculo estrutura ritualmente qualquer coisa que acontece na psique, fazendo dela uma imagem que acontece na própria totalidade.”

Jung

Ainda de acordo com Jung, no budismo tibetano, as Mandalas, num sentido geral, correspondem ao que lá se denomina “Yantra” ou seja: a um instrumento de culto que deve apoiar a meditação e a concentração, assim como auxiliar na realização de experiências interiores. Na alquimia, a junção de quatro elementos opostos é frequentemente representada por uma figura mandalar. Quando em séries de quadros, são frequentemente encontradas após condições de caos e desordem, conflito e medo.”(…) Elas expressam assim a ideia de refúgio seguro, de reconciliação interior e de totalidade (…)”

Relativamente à aparição desta figura entre os indivíduos modernos e à pesquisa da psicologia quanto ao seu sentido funcional, Jung também dá a sua palavra. Ele aponta para o facto de que, em geral ocorre que a Mandala surge em estados de dissociação psíquica ou de desorientação. Como por exemplo, entre crianças de 8 a 11 anos de idade cujos pais estão a separar-se, ou em casos de adultos os quais, em consequência da sua neurose e do tratamento mesmo, se encontram confrontados com a problemática contraditória da natureza humana, em estado de desorientação. Ou ainda em esquizofrénicos que estão com a sua visão do mundo abalada e confusa.

“Nestes casos, pode-se ver claramente como a ordem severa deste tipo de figura circular, compensa a desordem e a confusão psíquicas. Isto, porque existe um ponto central em torno do qual tudo se ordena, ou uma estrutura concêntrica da multiplicidade não organizada dos opostos e disparidades. Fica visível que se trata de uma tentativa de auto-cura da natureza, que corresponde não a um pensamento racional, mas sim a um impulso instintivo.” (ibid)

Jung fala a respeito da comprovação empírica do poder e do efeito terapêutico das Mandalas sobre os seus ‘feitores’. “(…) Já uma mera tentativa nesse sentido costuma ter um efeito curativo (…)”  O que, ainda segundo ele, é facilmente compreensível no que elas representam frequentemente “(…) tentativas bastante audaciosas da junção e reunião de opostos aparentemente incompatíveis e da religação – à primeira vista inconcebível – de partes separadas”. Por outro lado, ele chama a atenção para um aspeto fundamental na ocorrência deste fenómeno, que é a ‘espontaneidade’: “Nada se pode esperar de uma repetição artificial ou de uma imitação intencional deste tipo de figura.”

Além de Jung, diversas outras fontes também iluminam o estudo que aponta para o valor arquetípico deste símbolo e as suas diversas formas de se manifestar. Segundo Câmera Cascudo, a marcha descrevendo um círculo, é de alta expressão simbólica e participa, há milénios da liturgia popular de quase todo o mundo. Como exemplo, cita as procissões religiosas ao redor de uma praça, volteando capela ou igreja, as voltas à fogueira nas festas de S. João, as caminhadas circulares em torno do berço ou cama do enfermo no exorcismo das velhas rezadeiras às crianças doentes.

E, referindo-se especificamente às rodas dançadas:

“(…) A primeira dança humana, expressão religiosa instintiva, a oração inicial pelo ritmo deve ter sido em roda, bailando ao redor de um ídolo, Desde o paleolítico vivem os vestígios das pegadas em círculo em cavernas francesas e espanholas. O movimento seria simples e uniforme, possivelmente com o sacerdote no centro dirigindo o culto e animando o compasso (…)”

As Brincadeiras-de-roda como Mandalas

À luz destes acontecimentos ocorridos nos primórdios do nosso desenvolvimento filogenético, assim como das investigações de Jung no seu trabalho terapêutico, poderíamos buscar relações com as cantigas e brincadeiras-de-roda.

Traço a hipótese de que, por trás do momento espontâneo do encontro em que crianças se dão as mãos e se movimentam expressando vocalmente as canções já por muitos antes expressadas, estaria também havendo uma busca instintiva de uma harmonização pessoal e grupal. E de que, as brincadeiras-de-roda seriam um re-vivenciar de um ritual ancestral, em que o mito estaria representado rítmica-melódica e poeticamente, sempre novamente ressignificado, a cada vez que apropriado pelos participantes dos grupos de brincadeiras.

O dar-se as mãos possibilita um contacto, uma experimentação táctil do outro numa interação corporal “que promove a permuta de energias e ameniza a solidão” entre os participantes. Estes estão naquele momento, mesmo que inconscientemente “(…) mentalizando juntos o advento de um estado mandalar (…)” (Milleco, 1987)

Qual seria o significado deste “estado mandalar” destacado por Milleco em relação às brincadeiras-de-roda?

Jung afirma que as mandalas podem ser dançadas. Ora, se as mandalas, num sentido geral, “estruturam o que ocorre na psique”; “representam a junção de opostos aparentemente incompatíveis”; propiciam a “concentração e a meditação”; “expressam a ideia de refúgio seguro e de reconciliação interior”; “compensam a desordem e a confusão psíquicas”; estas características também se aplicam às rodas dançadas (e cantadas). Desta maneira, cada participante da roda, estaria compartilhando com os demais do estado proporcionado pela “mandala-viva” da qual ele próprio é parte integrante.

No caso das brincadeiras-de-roda, devemos destacar que estas se constituem por rodas com determinadas variações coreográficas e por canções específicas associadas a elas, onde figuram personagens e tramas. Milleco, analisou cuidadosamente várias brincadeiras. Segundo a sua leitura, ao ocuparem a posição de personagens do ritual lúdico, as crianças estariam representando diversos níveis do psiquismo. O próprio desenvolvimento da canção, com os passos e gestos que lhe são inerentes, representaria, por outro lado, a integração destes elementos.

Penso que, o aspecto musical das brincadeiras – as cantigas-de-roda – é essencial na sua caracterização como mandalas. Por um lado, pelas imagens em que os seus temas musicais propiciam e, por outro, pela própria intensidade do ato de cantar.

“O entoar de canções permite a fruição do prazer de uma ação compartilhada por todos, criando-se um clima de alegria e de despreocupação importante para a integração e para a coesão grupal,” afirma Fregtman (1989). Eu acrescentaria que o cantar auxilia não somente na integração grupal como na integração pessoal, ou seja, na religação de elementos separados no psiquismo de cada um.

“A experiência energética do cantar facilita a integração entre o fluxo da cabeça, dos órgãos internos do corpo, braços e pernas. Cantar ajuda ação, emoção e pensamento, facilitando o contacto direto com as sensações físicas, com os sentimentos e com a mais profunda sensação de ser o que se é.”

Chagas, 1977

Num contexto de Musicoterapia, acredito que, com a criação de um espaço propício e convidativo por parte do musicoterapeuta suscitando a cantar e ou o dançar em roda, possibilita-se o vir à tona de todos os aspetos que estão associados às Mandalas. Por outro lado, o musicoterapeuta precisa de estar atento, pois uma mera iniciativa de um paciente em direção a uma cantiga e ou brincadeira-de-roda provavelmente já se relaciona com a sua necessidade de viver este “estado mandalar”.

Excerto da monografia apresentada ao Curso de Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música sob a orientação de Marly Chagas.

A roda como mandala
Dança circular em Seattle
Hervé Platel

Tão universal como a linguagem, presente desde a noite dos tempos, a música desenvolve as nossas capacidades intelectuais e ajuda a lutar contra a Doença de Alzheimer.

Gwendoline Dos Santos

Artigo da autoria de Gwendoline Dos Santos, publicado no jornal Le Point (30/10/2015), traduzido por António José Ferreira a 21 de janeiro de 2020 e publicado na Meloteca

A música não nos protege nem do frito nem do calor, nem do vento, nem do sol, nem dos predadores ou dos micróbios. Não se pode comê-la nem bebê-la. Quanto à ideia de se unir a ela, trabalho perdido. Numa primeira abordagem, é difícil compreender o que ela nos traz de um ponto de vista evolutivo, nada, de qualquer modo, que pareça garantir a sobrevivência da espécie. E contudo, ela é tão universal como a linguagem, está presente em todas as sociedades desde a noite dos tempos. Os primeiros instrumentos musicais descobertos pelos arqueólogos, as flautas talhadas em ossos de animais, têm 35000, talvez 40000 anos. Não deixando fósseis as melodias cantadas, o canto deve ter aparecido bem antes desta época pré-histórica. Que faz então a música ao nosso cérebro para lhe agradar tanto?

Toda a gente vibrou já com uma ária da Callas ou o “Don’t Stop Me Now”, dos Queen. Basta ver o transe em que entra Alex DeLarge, o sociopata ultraviolento de “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrik, desde as primeiras notas da 9ª sinfonia de Beethoven. A escuta da música pode gerar um ligeiro suor e uma modificação dos ritmos respiratório e cardíaco, um fenómeno fisiologicamente comparável ao orgasmo. Tal como a alimentação, o sexo ou as drogas, a música solicita o circuito da recompensa no cérebro do ouvinte. Este velho sistema posto em prática pela seleção natural para favorecer a satisfação das nossas necessidades fundamentais aumenta a libertação de dopamina, o neurotransmissor do prazer, responsável por este “arrepio musical”. É o que revelou, em 2011, uma equipa canadiana da universidade McGill na revista Nature Science, utilizando técnicas de imageologia cerebral (IRM e TEP). Eis o que nos estimula a renovar a experiência, podendo a música gerar um certo vício… perfeitamente inofensivo. Além de que ela não se contenta de provocar uma onda emocional, ela deixa nos cérebros traços duradoiros, seja no músico ou no simples ouvinte.

Um cérebro sob a influência da música

Hervé Platel, cujos trabalhos são mundialmente conhecidos, é um dos primeiros investigadores, nos anos 90, a a ter observado o cérebro sob a influência da música graças à imageologia por ressonância magnética. Com a sua equipa, este professor de neurofisiologia do Inserm, exercendo na universidade de Caen, conseguiu destacar as redes do cérebro implicadas na perceção e na memória musicais. Até então, pensava-se que os dois hemisférios do cérebro desempenhavam um papel complementar, o esquerdo intervindo na lógica e na linguagem, o direito na parte artística. “Ora a música compromete o cérebro na sua globalidade, ela solicita-o nas zonas que têm funções muito mais vastas”, explica o investigador. Escutar uma obra musical cria no cérebro uma verdadeira “sinfonia neuronal” pondo em jogo os quatro lóbulos cerebrais, o cerebelo e ainda o hipocampo, conhecido sobretudo pelo seu papel na memória. Foi aliás no hipocampo que, com a sua equipa, Hervé Platel descobriu, em 2010, que a mais atividade cerebral nos músicos do que nos não-músicos e que a quantidade de neurónios aumenta em função do número de anos de prática e de intensidade desta. É que o nosso cérebro tem plasticidade.

À medida que se aprende a fazer malabarismo ou a falar russo, a aprendizagem desenvolve zonas do cérebro – é uma das propriedades fundamentais deste último. Em função dos exercícios que pratica e dos estímulos que recebe, ele cria novos neurónios (a neurogénese) mas, sobretudo, multiplica conexões (sinapses) para otimizar os desempenhos: é a famosa plasticidade cerebral.

O mesmo sucede quando alguém se inicia na música. Mesmo se aprende muito tarde a tocar um instrumento, o cérebro modifica-se: a música “muscula-o” e enriquece-o com uma larga paleta de capacidades cognitivas. Este treino neuronal beneficia sobretudo os jovens músicos. “Antes da adolescência, sendo o cérebro ainda imaturo, cada nova aprendizagem desafia a sua estrutura”, explica Hervé Platel, que fará parte dos quarenta peritos do cérebro reunidos pelo Le Point em Nice pela primeira edição de Neuroplanète.

As propriedades terapêuticas da música

Para além das zonas da audição, a prática de um instrumento desenvolve as regiões que tratam das informações motoras – que aliás não serão as mesmas num pianista e num violinista -, mas também em larga medida as da linguagem, com a qual ela partilha diversas áreas comuns, além da memória e do prazer. O músico criança obtém assim melhores desempenhos motores, adquire um vocabulário mais rico, desenvolve uma maior facilidade em ler, escrever, aprender línguas, compreender as matemáticas, aperfeiçoar o raciocínio, tornar-se lógico… até se revelar melhor nos testes de QI do que os colegas não-músicos. A música torna a criança mais inteligente? “Evidentemente, seria redutor! Mas ir ao conservatório, é como ir duas vezes à escola! Aprender solfejo, dominar um instrumento, obrigar-se a sincronizar com os outros músicos são atividades extremamente exigentes que vão estimular numerosas partes do cérebro, desenvolvê-las e treinar quantidade de benefícios que manterá toda a sua vida, mesmo se mais tarde deixa de fazer música”, nota o especialista.

A música não só tem um impacto sobre o funcionamento do nosso cérebro e as nossas competências intelectuais, mas também propriedades terapêuticas espantosas. As oficinas de música multiplicam-se para ajudar os doentes de Alzheimer, acalmar a sua ansiedade, melhorar o seu humor. Facto completamente inesperado: “Nos doentes de Alzheimer, a memória musical resiste, mesmo numa fase muito severa. O seu cérebro continua a codificar informações”, entusiasma-se Platel, que trabalha com doenças neurodegenerativas.

Se fazemos ouvir melodias novas a pessoas que apresentam amnésias maiores, elas são capazes, vários meses mais tarde, de as trautear. Mesmo com o seu seu hipocampo degradado, a memória persiste na sua cabeça. De facto, a memória solicita outro caminho, menos vulnerável à lesões cerebrais. “Nós estamos prestes a lançar um estudo que vai permitir observar o cérebro de pessoas muito atentas para compreender o percurso desta memória inconsciente”, confia o neurofisiólogo.

Novos campos terapêuticos são permanentemente descobertos. A musicoterapia encontra o seu lugar em tratamentos de stress, dor, dislexia, serviços de psiquiatria… Por vezes, ela parece agir miraculosamente. A aprendizagem do piano ajuda as vítimas de um AVC a reencontrar as suas capacidades motoras, o canto, a palavra. Uma música com ritmo adaptado assegura e uniformiza a marcha dos pacientes que tinham uma atividade motora desordenada por causa da doença de Parkinson. “A música abranda os costumes”, diz o provérbio. Provado pelas neurociências. Música, maestro!

Hervé Platel
Hervé Platel
Música e cérebro

“Somos o que somos com a música e pela música”, argumenta o autor, neurológico e neurocientista.

Facundo Manes, El País, Neurociencia, 14 de setembro de 2015

Os seres humanos convivemos com a música a toda a hora. É uma arte que nos faz desfrutar de momentos de prazer, nos estimula a recordar acontecimentos do passado, nos leva a partilhar emoções em canções em grupo, concertos ou espetáculos desportivas. Mas o que acontece de forma tão natural produz-se através de complexos e surpreendentes mecanismos neuronais. É por isso que a partir das neurociências nos colocamos muitas vezes este pergunta: que faz a música ao nosso cérebro?

A música parece ter um passado extenso, tanto ou mais do que a linguagem verbal. Prova disso são as descobertas arqueológicas de flautas feitas de osso de ave, cuja antiguidade se estima de 6000 a 8000 anos, ou mais ainda de outros instrumentos que poderiam anteceder o homo sapiens. Existem diversas teorias sobre a coexistência íntima com a música na evolução. Algumas destas deram-se porque ao estudar a resposta do cérebro à música, as áreas chave que estão envolvidas são as do controlo e da execução de movimentos.

Uma das hipóteses postula que esta é a razão pela qual se desenvolve a música: para ajudar-nos a todos a mover-nos juntos. E a razão pela qual isto teria um benefício evolutivo é que quando a gente se move em uníssono tende a atuar de forma mais altruísta e estar mais unida. Alguns cientistas, por sua vez, sugerem que a influência da música sobre nós pode ter surgido de um acontecimento fortuito, pela capacidade que ela tem de sequestrar sistemas cerebrais construídos para outros fins, tais como a linguagem, a emoção e o movimento.

Ouvimos música desde o berço ou, inclusive, no período de gestação. Os bebés, nos primeiros meses de vida, têm a capacidade de responder a melodias antes que a uma comunicação verbal dos seus pais. Os sons musicais suaves relaxam-nos. Sabe-se, por exemplo, que os bebés prematuros que não podem dormir são beneficiados pelo pulsar do coração da mãe ou sons que os imitam.

A música está incluída entre os elementos que dão mais prazer na vida. Liberta dopamina no cérebro como também o fazem a comida, o sexo e as drogas. Todos eles são estímulos que dependem de um circuito cerebral subcortical no sistema límbico, quer dizer, aquele sistema formado por estruturas cerebrais que gerem respostas fisiológicas a estímulos emocionais; particularmente, o núcleo caudado e o núcleo accumbens e as suas conexões com a área pré-frontal. Os estudos que mostram ativação ante estímulos mencionados revelam uma importante imbricação entre as áreas, o que sugere que todos ativam um sistema em comum.

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Meloteca, recursos musicais criativos para crianças, professores, educadores e animadores

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Um dos fundadores do laboratório de investigação Brain, Music and Sound [Cérebro, Música e Som], no Canadá, o cientista Robert Zatorre, descreve assim os mecanismos neuronais de perceção musical: uma vez que os sons têm impacto no ouvido, transmitem-se ao tronco cerebral e daí ao cortex auditivo primário; estes impulsos viajam através de redes distribuídas pelo cérebro importantes para a perceção musical, mas também para o armazenamento da música já ouvida; a resposta cerebral aos sons está condicionada pelo que se ouviu anteriormente, visto que o cérebro tem uma base de dados armazenada e proporcionada por todas as melodias conhecidas.

Estas memórias foram a base para uma original investigação, liderada por Agustín Ibáñez e Lucía Amoruso, que realizou o Instituto de Neurociências Cognitivas (INECO) sobre mecanismos cerebrais que permitem antecipar ações. O nosso cérebro constantemente trata de antecipar o que vai acontecer. Para analisar isto, mostraram a bailarinos profissionais de tango vídeos nos quais, segundo o nível de experiência, poderiam prever (ou não) quando outros bailarinos cometeriam um erro. Enquanto eles observavam, registou-se a ativação de certas regiões do cérebro com eletroencefalograma de alta densidade. Esta investigação revelou que só nos profissionais, 400 milissegundos antes de se iniciar a sequência, a atividade cerebral já antecipava que ia acontecer um erro. Existem circuitos no cortex cerebral envolvidos na perceção, codificação, armazenamento e na construção dos esquemas abstratos que representam as regularidades extraídas das nossas experiências musicais prévias. A construção de expetativas e a sua possível violação é chave para uma resposta emocional.

Música e cérebro

Música e cérebro

A relação da música com a linguagem também é objeto de estudo. O processamento da linguagem é uma função mais ligada ao lado esquerdo do cérebro que ao lado direito em pessoas dextras, ainda que as funções desempenhadas pelos dois lados do cérebro no processamento de diferentes aspetos da linguagem ainda não estejam claros. A música também é processada pelos hemisférios direito e esquerdo. Evidência recente sugere um processamento partilhado entre a linguagem e a música a nível conceptual.

Mas a música parece oferecer um novo método de comunicação enraizada em emoções em lugar do significado tal como o entende o signo linguístico. Investigações mostram que o que sentimos quando escutamos uma peça musical é muito semelhante ao que o resto das pessoas no mesmo lugar experimenta. Por isso as melodias, em muitos casos, podem trabalhar em nosso benefício a nível individual, ao modular o estado de ânimo e inclusive a fisiologia humana, de modo mais eficaz do que as palavras. A ativação simultânea de diversos circuitos cerebrais produzidos pela música parece gerar alguns efeitos notáveis: em vez de facilitar um diálogo em grande medida semântico, como faz a linguagem, a melodia parece mediar um diálogo mais emocional.

A área da saúde socorre-se da música com o fim de melhorar, manter ou tentar recuperar o funcionamento cognitivo, físico, emocional e social, e ajudar a abrandar o avanço de distintas condições médicas. A musicoterapia, através da utilização clínica da música, procura ativar processos fisiológicos e emocionais que permitem estimular funções diminuídas ou deterioradas, e reforçar tratamentos convencionais. Observaram-se resultados importantes em pacientes com transtornos do movimento, dificuldade na fala produto de um acidente cerebrovascular, demências, transtornos neurológicos e em crianças com capacidades especiais, entre outros.

A música pode ser uma ferramenta poderosa no tratamento de transtornos cerebrais e lesões adquiridas ajudando os pacientes a recuperar competências linguísticas e motoras, dado que ativa todas as regiões do cérebro. Estudos de neuroimagem mostram que tanto ao escutar como ao fazer música se estimulam conexões numa ampla franja de regiões cerebrais normalmente envolvidas na emoção, a recompensa, a cognição, a sensação e o movimento.

As novas terapias baseadas na música podem favorecer a neuroplasticidade – novas conexões e circuitos – que em parte compensam as deficiências nas regiões danificadas do cérebro. A música é física e anima as pessoas a moverem-se com o ritmo. Quanto mais destacado é o ritmo, mais radical e contundente é o movimento do corpo. O exercício físico pode ajudar a melhorar a circulação, a proteger o cérebro e facilitar a função motora. A música induz estados emocionais a facilitar mudanças na distribuição de substâncias químicas que pode conduzir a estados de alma positivos e aumento da excitação o que, por sua vez, pode ajudar à reabilitação.

Emoção, expressão, competências sociais, teoria da mente, competências linguísticas e matemáticas, competências visoespaciais e motoras, atenção, memória, funções executivas, tomada de decisões, autonomia, criatividade, flexibilidade emocional e cognitiva, tudo conflui de forma simultânea na experiência musical partilhada.

As pessoas cantam e bailam juntas em todas as culturas. Sabemos que o fazemos hoje e continuaremos a fazer no futuro. Podemos imaginar que o faziam também os nossos antepassados, à volta da fogueira, há milhares de anos. Somos o que somos com a música e pela música, nem mais nem menos.

Facundo Manes é neurólogo e neurocientista (PhD in Sciences, Cambridge University). É presidente da World Federation of Neurology Research Group on Aphasia, Dementia and Cognitive Disorders e professor de Neurologia e Neurociências Cognitivas na Universidad Favaloro (Argentina), University of California, San Francisco, University of South Carolina (USA), Macquarie University (Australia).

[ Tradução de António José Ferreira e publicação na Meloteca a 27 de junho de 2019 ]

Criança com cavaquinho em Oncologia

A musicoterapia na assistência domiciliar aos cuidadores da criança em cuidados paliativos oncológicos, por Lara Teixeira Karst (Brasil)[excerto]

Qualquer tarefa terapêutica deve concentrar-se na restauração de esperança, sentimentos de perda, isolamento e abandono, compreensão do sofrimento, perdão aos outros, buscando sentido para a vida no processo de morrer.

Lara Teixeira Karst

MUSICOTERAPIA EM CUIDADOS PALIATIVOS

Na área de cuidados paliativos, os primeiros registros da atuação do musicoterapeuta datam do ano de 1977, no Royal Victoria Hospital, Canadá, com um projeto piloto que objetivou conhecer o potencial da musicoterapia no atendimento a pacientes terminais e suas famílias.

Uma revisão sistemática sobre terapias oferecidas em hospices nos Estados Unidos, a partir de uma seleção randomizada de 300 instituições, identificou que o musicoterapeuta trabalha com pessoas portadoras de diferentes doenças como câncer, HIV/AIDS, demências e doenças neurodegenerativas. O musicoterapeuta que atua nos cuidados paliativos pode trabalhar com composição junto ao paciente e ao cuidador. Pode, igualmente, utilizar-se da improvisação musical, da imaginação guiada por música, canto, instrumentos musicais e de técnicas de relaxamento com música.

Os objetivos são traçados para atender necessidades: a) sociais, solidão, isolamento; b) demandas emocionais como depressão, tristeza, frustração, raiva, medo; c) cognitiva como a desorientação, na dimensão física como a dor e a falta de ar e nos aspectos espirituais como a necessidade de rituais baseados em espiritualidade.

David Aldridge afirma que a musicoterapia possibilita o movimento simultâneo de poder escutar e cantar. O uso dos sons auxilia o paciente e seus familiares a explorarem sentimentos e emoções que não seriam acessados pela conversa. Para o autor, cada situação cria uma demanda musical específica. Por exemplo: alguns movimentos do paciente poderão levar ao encontro de uma música popular que faça dançar, ou movimentos de músicas sacras que reflitam a dimensão espiritual. O musicoterapeuta pode cantar na cabeceira da cama ou até mesmo gravar e disponibilizar cds contendo músicas e canções escolhidas pelo paciente e sua família.

No contexto dos cuidados paliativos, a música ajuda a transcender o momento de sofrimento, possibilita a abertura para uma nova consciência a partir dos movimentos de cantar e tocar o que cada ser humano é. Dando sequência a esses estudos, tem-se que o musicoterapeuta atua como um profissional que intermedia a canção significativa para cada paciente, interage com ele ajudando-o a perceber-se em um momento para além da enfermidade do corpo. Assim, a musicoterapia oferece uma experiência de tempo qualitativamente rica, sendo uma intervenção valiosa: “mesmo em meio ao sofrimento é possível criar algo que é belo” (Aldridge, 1995).

Aldridge distingue que, no processo musicoterapêutico em cuidados paliativos, o musicoterapeuta conduz suas intervenções de acordo com as demandas surgidas, na direção de aliviar o sofrimento, reafirmar a esperança, estimular a consciência da vida em face da morte.

Qualquer tarefa terapêutica deve concentrar-se na restauração de esperança, sentimentos de perda, isolamento e abandono, compreensão do sofrimento, perdão aos outros, buscando sentido para a vida no processo de morrer. A musicoterapia pode ser uma poderosa ferramenta neste processo de mudanças. Embora as qualidades inerentes do processo criativo não poderem ser facilmente descritas em escalas de avaliação, podemos ouvi-las e senti-las quando elas são expressas. A Musicoterapia parece abrir uma possibilidade única para lidar com a doença ou para encontrar um nível de lidar com a morte de perto (Aldridge).

Nessa direção, Elisabeth Petersen (2012) assinala que o musicoterapeuta, por meio de uma escuta sensível, percebe o que as pessoas sonorizam como expressam suas dores, expectativas, sentimentos, medos, esperança, fé. Uma canção surgida em um atendimento musicoterapêutico pode trazer significados que traduzem sentimentos, expectativas. A morte é um acontecimento profundamente intenso. Em se tratando da morte de uma criança, a experiência torna-se especialmente mais delicada. O musicoterapeuta que trabalha nos cuidados paliativos deve estar em sensível sintonia com o tempo interno do paciente para que suas intervenções sejam coerentes com o que faz sentido para cada pessoa.

Faz-se necessário também respeitar as preferências musicais, aceitar as expressões sem julgamentos estéticos, permitir a autonomia e livre expressão. A musicoterapia possibilita uma relação criativa, mediante uma situação em que há um corpo falhando e que, muitas vezes, leva a um isolamento social. Desse modo, o musicoterapeuta deve estar presente para explorar e trabalhar as músicas escolhidas ou preferidas pelos sujeitos, sejam elas tocadas, cantadas, gravadas ou improvisadas. Assim agindo, poderá favorecer a construção de uma intimidade em que os mais profundos sentimentos possam ser divididos com o outro. Nesse cenário de cuidados paliativos, Petersen ressalta que

As funções atribuídas às músicas improvisadas ou recriadas por pacientes e cuidadores, com suas respectivas mensagens, focalizam: declarações de amor, pedidos de perdão, reconciliação, garantias de não abandono, saudades; revisão das realizações ao longo da vida, aproximação de paciente e familiares/entes queridos; o despedir- se, preparar-se para a partida; viver o luto antecipatório.

Entre as terapias expressivas, a musicoterapia atua como ferramenta de enfrentamento, auxilia paciente e cuidadores a lidarem com as limitações crescentes advindas da progressão dos sintomas, com a impossibilidade de cura e com a proximidade da morte.

Lara Teixeira Karst, A musicoterapia na assistência domiciliar aos cuidadores da criança em cuidados paliativos oncológicos. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás 2015.

Alexander Technique

Bruno Gomes Sousa, Prática Musical e Saúde, dissertação de mestrado, Universidade de Aveiro 2014 (excerto)

A performance musical, além de exigir uma determinada concentração, está dependente da descontração muscular e da postura corporal do músico.

Bruno Gomes Sousa

A performance musical, além de exigir uma determinada concentração, está dependente da descontração muscular e da postura corporal do músico. No entanto, durante a execução, o instrumentista necessita de um esforço mental e físico maior ou menor, resultando de vários fatores: o tipo de instrumento, a duração da execução, a dificuldade técnico-musical da peça executada, resistência muscular de cada instrumentista.

Frequentemente os alunos de música exigem do seu corpo um esforço físico maior do que aquele a que estão habituados normalmente. Alguns instrumentistas profissionais apresentam também este desequilíbrio entre esforço necessário e esforço realizado. Estes esforços notam-se principalmente na execução de obras virtuosas com um nível de dificuldade muito elevado e no período de mudança e de adaptação a um novo instrumento. No caso particular dos violetistas, esta dificuldade é muito evidente quando mudam para uma viola maior do que aquela a que estão habituados.

Para alguns músicos, a expressão artística, isto é, o movimento físico expressivo musical durante a performance, não é prejudicial, pois não requer fisicamente um grande esforço. O uso de movimentos durante a performance musical afeta a intenção de expressividade do instrumentista, o próprio som do seu instrumento e, além disso, ajuda a que a sua tensão produzida seja libertada enquanto que para muitos instrumentistas, as limitações físicas podem ser dolorosas, debilitantes e em alguns casos, severamente incapacitantes. O uso de movimentos expressivos durante a execução musical afeta positivamente a sonoridade do instrumento. Aliás, no caso da aprendizagem da viola d’arco e violino, estes movimentos podem originar uma melhor coordenação ente as mãos, fazendo com que o instrumento, ou partes dele, se torne um prolongamento do corpo, por exemplo, o arco do violino.

Estas tensões e esforços exagerados podem originar lesões que podem ser prevenidas através de técnicas de prevenção. São os casos do método Feldenkrais, da Alexander Technique (AT) e do Ioga que proporcionam a realização de exercícios para o instrumentista perceber e sentir o seu movimento, para aprofundar a compreensão, maximizar a função e, ao mesmo tempo, melhorar o conforto e o equilíbrio. Existem conservatórios e escolas superiores de música que facultam aos alunos, nas suas próprias instalações, aulas destes métodos de prevenção de lesões. É o caso da Royal Academy of Music, em Londres, que, no Reino Unido é um dos conservatórios de música que faculta sessões individuais de AT aos alunos durante um ano.

Além de prevenir lesões, também ajuda os músicos a libertar tensões desnecessárias, melhorando a performance musical. A técnica Alexander é usada por músicos conceituados, sendo casos famosos os de Yehudi Menuhin, Paul McCartney, Sting, Sir Colin Davis, entre outros.

“Early in my professional career the celebrated conductor Sir Adrian Boult, who had himself had Alexander lessons, sent me for lessons in the Technique. ‘My boy,’ he said, ‘you’ll end up crippled if you go on like that.’ I have been a pupil of the Technique now for over forty years, the benefits to me have been immeasurable, and I would recommend all students to take advantage of the programme of lessons available at the Royal Academy of Music.” (Sir Colin Davis)