Repositório de teses, dissertações e artigos científicos nos campos da música e da dança

Carlos dos Santos-Luiz

O timbre e a identidade dos instrumentos musicais, por Carlos dos Santos-Luiz

The timbre and the identity of musical instruments. ESEC – College of Education, Coimbra Polytechnic Institute

Timbre é uma característica multidimensional do som e permite identificar fontes sonoras. Investigação efetuada sobre timbre musical tem avaliado os efeitos de parâmetros acústicos na compreensão do timbre dos instrumentos.

Carlos dos Santos-Luiz

RESUMO:

Timbre é uma característica multidimensional do som e permite identificar fontes sonoras. Investigação efetuada sobre timbre musical tem avaliado os efeitos de parâmetros acústicos na compreensão do timbre dos instrumentos. Com este artigo, pretende-se observar a função desempenhada pelo timbre na identidade dos instrumentos musicais. Como estudo qualitativo, adotou-se a metodologia associada à revisão narrativa de literatura, concernente a estudos sobre a identificação do timbre de fontes sonoras musicais. Os resultados indicam que o timbre de um som se correlaciona com as envolventes espectral e temporal. Da interação do espectro com os transientes de ataque e extinção, entre outros fatores, resulta o timbre dos instrumentos musicais.

PALAVRAS-CHAVE:

Timbre; Envolvente espectral; Envolvente temporal; Espectro; Transientes de ataque e extinção.

ABSTRACT:

Timbre is as a multidimensional feature of sound and allows the identification of sound sources. Research on musical timbre has evaluated the effects of acoustic parameters in understanding the timbre of instruments. With this article, we intend to observe the function played by timbre in the identity of musical instruments. As a qualitative study, we adopted the methodology associated with the narrative literature review, regarding studies on identification of the timbre of musical sound sources. The results indicate that the timbre of a sound correlates with the spectral and temporal envelopes. The interaction of the spectrum with the transients of attack and decay, among other factors, results in the timbre of musical instruments.

KEYWORDS:

Timbre; Spectral envelope; Temporal envelope; Spectrum; Attack and decay transients.

1. Introdução

O atributo subjetivo denominado timbre encontra-se entre os descritores do som musical, a par com o pitch (altura), loudness (intensidade) e duração (Rossing, Moore, & Wheeler, 2002).

Segundo a American National Standards Institute (ANSI, 1994), timbre define-se como a característica do som que nos permite perceber dois sons como sendo diferentes, tendo por base a igualdade em altura (pitch) e intensidade (loudness). Letowski (1992) e Sethares (2005) consideram, respetivamente, a definição limitada e confusa, visto referir-se essencialmente ao que o timbre não é (pitch e loudness) (Handel, 1995; Sethares, 2005).

Pratt e Doak (1976), numa tentativa de clarificação, referem-se a timbre como “that attribute of auditory sensation whereby a listener can judge that two sounds are dissimilar using any criteria other than pitch, loudness and duration” (p. 317). Contudo, Letowski (1992) considera que a mesma se adequa mais aos sons atonais. Deste modo, Scharine, Cave e Letowski (2009) reportam que vários autores introduziram uma outra definição de timbre, a qual “is the perceptual property of sound that reflects unique properties of the sound and its sound source” (p. 434). Em continuação, os autores referem que “this definition of timbre focuses on the perceptual representation of a specific pattern of temporal and spectral characteristics of a sound resulting from the specific operational principles of the sound source and facilitates identification and storage of auditory images” (p. 434).

O pitch, o loudness (Howard & Angus, 2017; Letowski, 1989, 1992) e a duração percebida são consideradas sensações unidimensionais (Caclin et al., 2006; Letowski, 1989, 1992), ao passo que o timbre é um atributo percetual multidimensional relacionado com várias características acústicas (Caclin et al., 2006; Handel, 1995; Kraus, Skoe, Parbery-Clark, & Ashley, 2009; Letowski, 1992; McAdams & Giordano, 2016; Sethares, 2005) e que transporta informações de uma fonte sonora (Caclin et al., 2006; Giordano & McAdams, 2010; Handel, 1995; Letowski, 1989, 1992).

Portanto, não é fácil construir uma escala subjetiva de timbre à semelhança do concretizado para o loudness (escala de sones) e para o pitch (escala de mel) (Heller, 2013; Howard & Angus, 2017; Rossing et al., 2002). Como característica subjetiva do som, o timbre depende do espectro, mas também de outros fatores físicos, como a envolvente temporal (Goldstein & Brockmole, 2016; Hall & Beauchamp, 2009; Kraus et al., 2009; Oxenham, 2013; Scharine et al., 2009) e a frequência (Kraus et al., 2009; Rossing et al., 2002). Em menor grau, depende ainda da pressão sonora (Oxenham, 2013; Rossing et al., 2002) e da duração (Rossing et al., 2002).

A base psicofísica da multidimensionalidade do timbre decorre de vários tipos de avaliações, tais como o procedimento multidimensional scaling-MDS of timbre dissimilarity, a investigação sobre timbre identification (Caclin et al., 2006; Hall & Beauchamp, 2009) e a representação modulation power spectrum (MPS).

Os resultados dos estudos comportamentais associados à identificação do timbre dos instrumentos musicais sugerem que as características espectrais e temporais são relevantes (Caclin et al., 2006; Thoret, Depalle, & McAdams, 2017), apesar da pouca pesquisa realizada no contexto da identificação das fontes sonoras musicais (Hall & Beauchamp, 2009).

Do exposto, e tendo por base a correlação do espectro/envolvente espectral e da envolvente temporal com o timbre (Campbell & Greated, 2001; Goldstein & Brockmole, 2016; Oxenham, 2013; Rossing et al., 2002; Scharine et al., 2009; Sethares, 2005), por um lado, e a importância daqueles dois parâmetros físicos na identificação das fontes sonoras (Scharine et al., 2009; Thoret et al., 2017), por outro, este artigo tem por objetivo analisar a função do timbre na caracterização da identidade dos instrumentos musicais.

2. Timbre e espectro

Os sistemas vibrantes periódicos ou quase periódicos, ao produzirem sons de pitch definido (Campbell & Greated, 2001; Howard & Angus, 2017), “are (…) at the heart of most musical instruments” (Campbell & Greated, 2001, p. 11). O mesmo será dizer que uma grande parte dos instrumentos musicais produz sons estáveis (steady tones) ou sinais estacionários, cuja forma de onda se mantém inalterável durante uns poucos de segundos. Aqui, enquadram-se os sons produzidos pelos instrumentos de sopro e de cordas. Para além destes, há instrumentos musicais que apenas geram sons transientes, os quais desaparecem mais ou menos rapidamente após serem produzidos. Nesta categoria encontramos a maioria dos instrumentos de percussão (Backus, 1977).

Os sons complexos periódicos são descritos por meio de um padrão que se repete durante um certo número de ciclos. O número de ciclos por segundo corresponde à frequência fundamental do som e o padrão de vibração que ocorre durante um ciclo assume uma determinada forma de onda (Backus, 1977; Henrique, 2014). A este tipo de configuração designa-se representação temporal ou oscilograma (Henrique, 2014). Os componentes de frequência dos sons complexos periódicos que correspondem a múltiplos inteiros da frequência do som fundamental chamam-se harmónicos (Backus, 1977; Campbell & Greated, 2001; Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017).

Outro tipo de configuração que permite visualizar os sons complexos é a representação espectral (frequencial) ou, simplesmente, espectro (Campbell & Greated, 2001; Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017). Este género de representação permite analisar informação mais detalhada no que respeita à composição do som. Ainda que a representação temporal proporcione a observação da periodicidade global de um sinal, para além de outros aspetos, a representação espectral possibilita a análise dos componentes de frequência constituintes do som e as relações existentes entre eles (Henrique, 2014). No caso dos sons periódicos, a passagem do domínio temporal para o domínio frequencial é realizada através do teorema de Fourier (Henrique, 2014; Sethares, 2005).

Como os componentes de um som contribuem para a definição do timbre dos instrumentos musicais, Leipp (2011) reporta três casos distintos de espectros: espectro de sons com componentes harmónicos, espectro de sons com componentes quase harmónicos e espectro de ruídos. Relativamente a este último caso, optámos por utilizar a designação de espectro de sons aperiódicos.

2.1 Espectro de sons com componentes harmónicos

Quando analisamos um som, podemos observar o seu estado ou parte estacionária (steady state; som estabilizado) por meio do espectro, e as partes transientes (ataque e extinção) por intermédio das representações temporais (Campbell & Greated, 2001; Henrique, 2014) e, especialmente, pelas representações temporais-frequenciais (Henrique, 2014).

No caso dos sons com espectros harmónicos, o timbre depende do número de componentes de frequência, das suas consonâncias com o som fundamental, das respetivas amplitudes (Backus, 1977; Leipp, 2011) e das suas localizações na área audível (Leipp, 2011). Constata-se que a amplitude dos harmónicos influencia em maior grau o timbre de um som comparativamente à contribuição das suas fases (Backus, 1977; Campbell & Greated, 2001; Heller, 2013; Henrique, 2014; Rossing et al., 2002).

Segundo Campbell e Greated (2001), ao observarmos padrões de vibração associados ao estado estacionário de sons com o mesmo pitch e loudness produzidos por instrumentos diferentes, os sons distinguir-se-ão pelo timbre. Estes autores referem que os padrões de vibração da nota lá4 (440 Hz), tocada na corda lá da viola e no trombone, ao possuírem o mesmo período e frequência, e amplitudes aproximadamente iguais, proporcionam um timbre dissemelhante. Isto deve-se às formas de onda diferentes, e espectros respetivos, derivarem de instrumentos musicais também distintos. Olson (1967), ao comparar os espectros da nota sol3 (196 Hz) emitida pela guitarra, fagote e saxofone alto, notou diferenças tímbricas decorrentes do número de harmónicos e respetivas amplitudes. A guitarra, em comparação com o saxofone alto e fagote, tem um número superior de harmónicos agudos. Segundo Scharine et al. (2009), “it is perceptually easy to differentiate continuous sounds that differ in their spectral pattern” (p. 435).

Os estudos de Hall e Beauchamp (2009) e de Hall, Beauchamp, Horner e Roche (2010) reforçam a importância da envolvente espectral na identificação dos instrumentos. Na primeira experiência de Hall e Beauchamp (2009), com sete estudantes universitários (cinco com alguma aprendizagem formal de música), os autores constataram que a envolvente espectral teve um contributo muito superior ao da envolvente temporal na tarefa de identificação tímbrica do violino e do trombone. Na segunda experiência de Hall et al. (2010), nove estudantes universitários (com uma média de sete anos e meio de aprendizagem musical) tentaram associar sons a um dos instrumentos seguintes: piano, vibrafone, guitarra elétrica, clarinete em Mi b, saxofone e trombone tenor. Para cada instrumento foram sintetizados sons com todos os harmónicos, sons com sete harmónicos e sons com apenas quatro harmónicos. Os autores concluíram que a identificação dos instrumentos foi possível mesmo com a redução a quatro harmónicos, destacando-se os casos do trombone, vibrafone, clarinete e saxofone.

Apesar do mencionado, é de salientar que não existe uma forma de onda e espectro específicos associados a cada instrumento musical (Backus, 1977; Campbell & Greated, 2001). Campbell e Greated (2001) sublinham que não podemos associar uma forma de onda e espectro a um timbre particular/instrumento musical, dado que outras configurações de formas de onda e espectros podem causar a mesma sensação de timbre. Estes autores, ao compararem três formas de onda (e espectros respetivos) da nota lá4 produzida pelo trombone, referem não existir praticamente distinção tímbrica entre os três sons. Saliente-se que, “the waveforms have the same general character, but are quite different in detail” (Campbell & Greated, 2001, p. 143). Situação idêntica é reportada em relação a três formas de onda e espectros da nota lá4 da viola. Backus (1977) reforça esta ideia mencionando que “there is no characteristic spectrum, somewhat the same from note to note, associated with a given musical instrument”. An oboe, for example, does not have a certain pattern of harmonic amplitudes that characterizes its sound over its playing range” (p. 117). Refira-se, ainda, que o facto de o clarinete ter défice de harmónicos pares no registo grave (chalumeau) (Backus, 1977; Fletcher & Rossing, 1998; Rossing et al., 2002), não significa que todos os sons com características físicas semelhantes soem a clarinete (Backus, 1977), apesar de estes sons parecer terem um som “surdo” (Backus, 1977; McAdams, Winsberg, Donnadieu, De Soete, & Krimphoff, 1995). Contudo, e tendo por base a configuração espectral, a denominação “timbre de clarinete” tem um significado especial, entre outras designações (Leipp, 2011).

2.2 Espectro de sons com componentes quase harmónicos

Para além dos instrumentos musicais que produzem sons estáveis, existem outros que não geram este tipo de sons. A forma de onda destes instrumentos vai mudando mais ou menos lentamente ao longo do tempo (Backus, 1977; Campbell & Greated, 2001).

Como exemplo, refira-se o caso do piano. Este instrumento, ao ter um som que “changes sufficiently slowly to allow it to be almost classified as a steady tone instrument” (Backus, 1977, p. 299), poderá ser designado de quasi-steady instrument (Backus, 1977). O som, ao não ser exatamente periódico (Henrique, 2014), possui alguma inarmonicidade (Campbell & Greated, 2001; Fletcher & Rossing, 1998), característica esta que está inscrita no espectro (Anderson & Strong, 2016) e que contribui para a caracterização do timbre (Backus, 1977; Campbell & Greated, 2001; Leipp, 2011). Encontramos uma situação semelhante nos sinos bem afinados (Leipp, 2011). Outros instrumentos com espectros quase harmónicos são os cordofones beliscados, sendo o caso da guitarra (Leipp, 2011; Woodhouse, 2004) e do cravo (Henrique, 2014; Leipp, 2011; Välimäki, Penttinen, Knif, Laurson, & Erkut, 2004).

2.3 Espectro de sons aperiódicos

No caso dos sons cuja forma de onda não se repete ciclicamente, designados de sons aperiódicos (Goldstein & Brockmole, 2016; Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017), os componentes de frequência não são múltiplos inteiros de uma fundamental e chamam-se não-harmónicos ou inarmónicos (Backus, 1977; Henrique, 2014; Roederer, 2008). Nesta subsecção abordamos os sons aperiódicos, referindo-nos ao ruído gerado pelos instrumentos musicais de sons periódicos e ao som dos instrumentos musicais de sons aperiódicos, propriamente ditos.

Os instrumentos musicais de sons periódicos produzem geralmente algum ruído quando um som se inicia (Backus, 1977; Henrique, 2014; Roederer, 2008), sendo que “any nonperiodic pressure oscillation leads to a noise sensation” (Roederer, 2008, p. 176). Este ruído designa-se transiente de ataque e assume um papel muito importante na identificação do timbre (Henrique, 2014; Iverson & Krumhansl, 1993; Leipp, 2011; Weyer, 1976). Weyer (1976) refere que “the audible noise pattern of the tone attack lasts as long as the growth of the discrete partials. Then the listener may recognize the kind of instrument only, e. g. wind instrument, keyboard instrument or string instrument” (p. 234). Ainda segundo Weyer, os transientes de ataque dos instrumentos são diferentes em espécie, dado traduzirem características específicas relativas ao mecanismo excitador/gerador do som de cada tipo de instrumento.

Em concreto, referimo-nos a casos como: a) o som proveniente da raspagem inicial do arco numa corda do violino (Howard & Angus, 2017; Leipp, 2011), “cet espèce de bruit blanc qui donne au timbre son caractère ‘soyeux’” (p. 155); b) o som da queda dos martinetes do cravo quando retornam às cordas (Howard & Angus, 2017; McAdams et al., 1995); c) o ataque brutal da percussão de uma corda do piano (Howard & Angus, 2017; Leipp, 2011; Weyer, 1976); o som deste instrumento, ao conter determinados ruídos resultantes de vibrações mecânicas (ex., modos de vibração do martelo), tem um timbre influenciado por sons transientes (Fletcher & Rossing, 1998); e d) o som produzido por instrumentos musicais com embocadura de aresta, como a flauta de bisel (e tubos de órgão flautados) e a flauta transversal (Henrique, 2014; Leipp, 2011); o jato de ar soprado ao incidir no bisel ou na aresta da embocadura oscila à volta da mesma (Henrique, 2014; Leipp, 2011), originando um ruído aerodinâmico (Fletcher & Rossing, 1998) que corresponde a um ligeiro silvo (Leipp, 2011).

Alguns instrumentos musicais produzem sons aperiódicos. Referindo-nos concretamente aos instrumentos de percussão (Howard & Angus, 2017), os sons da maioria destes instrumentos (ex., caixa, bombo, triângulo, pratos e tam-tam) (Fletcher & Rossing, 1998) vão mudando mais ou menos rapidamente ao longo do tempo, possuindo formas de onda diferentes de ciclo para ciclo. Os sons resultantes têm pitches mais ou menos indefinidos (Backus, 1977; Howard & Angus, 2017) e são produzidos por três tipos de vibradores, tais como membranas (membranofones), barras e placas (idiofones) (Fletcher & Rossing, 1998; Howard & Angus, 2017; Rossing et al., 2002). Como os modos de vibração destes vibradores não se relacionam harmonicamente, “the inharmonic overtones of these complex vibrators give percussion instruments their distinctive timbres” (Rossing et al., 2002, p. 272).

Para além do espectro, na estrutura do som musical encontramos outros fatores que contribuem para a identificação do timbre dos instrumentos. Estes aspetos são os transientes (ataque e extinção) (Campbell & Greated, 2001; Goldstein & Brockmole, 2016; Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017; Leipp, 2011; Roederer, 2008; Rossing et al., 2002; Sethares, 2005).

3. Timbre e envolvente temporal

Para além do espectro harmónico, que traduz o estado estacionário (período de estabilidade) do som periódico (Campbell & Greated, 2001), o desenvolvimento acústico que ocorre na propriedade dinâmica da envolvente temporal é também relevante. Esta, descreve a amplitude de um som ao longo do tempo (Rossing et al., 2002; Sethares, 2005), evidenciando o crescimento e decrescimento das vibrações associadas aos instrumentos (Backus, 1977; Campbell & Greated, 2001). No âmbito da envolvente temporal, encontramos o transiente de ataque (início do crescimento da nota desde o silêncio), o período de estabilidade (parte intermédia e principal da nota; steady state) e o transiente de extinção (decaimento final do som, que corresponde ao final da nota até ao silêncio) (Backus, 1977; Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017; Scharine et al., 2009).

Na generalidade dos instrumentos musicais, os transientes duram de alguns milissegundos a poucos centésimos de segundo (Howard & Angus, 2017), ao passo que a duração do período de estabilidade é de alguns décimos de segundo a poucos segundos. Porém, em muitos instrumentos de percussão (idiofones e membranofones) a extinção sonora inicia-se assim que termina o ataque, situação consequente do grande amortecimento daqueles. Logo, não será expetável que estes intrumentos possuam período de estabilidade (Henrique, 2014).

Os transientes dependem do modo de excitação do instrumento, da estrutura deste e da natureza dos materiais constituintes (Leipp, 2011). Sublinhe-se que as características do som, como a altura e a intensidade, são fixadas durante o período de estabilidade (Henrique, 2014), sendo que os períodos transientes assumem uma função importante no reconhecimento da identidade tímbrica dos instrumentos (Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017; Leipp, 2011; Roederer, 2008), com destaque para a contribuição do transiente de ataque (Backus, 1977; Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017). Alguns exemplos de transientes de ataque (ruído), e respetiva importância na determinação da identidade de um instrumento musical, foram reportados na secção sobre o espectro de sons aperiódicos. Na perceção do timbre, o transiente de extinção é menos importante que o transiente de ataque e o período de estabilidade (Howard & Angus, 2017). Estes autores reportam, inclusivamente, que o transiente de ataque é menos influenciado pelos efeitos da acústica do espaço. Na síntese dos instrumentos musicais acústicos, os transientes (ataque e extinção) e o período de estabilidade têm de ser considerados para que o som sintetizado tenha uma correspondência tímbrica muito próxima com a realidade sonora de cada instrumento (Henrique, 2014; Howard & Angus, 2017).

Relativamente aos transientes, foram realizadas várias experiências com o objetivo de explorar a sua importância na perceção do timbre dos instrumentos musicais. Alguns estudos avaliaram a identificação dos instrumentos recorrendo à remoção de certas partes do som ou à sua reprodução de trás para a frente (Caclin et al., 2006), entre outras possibilidades. Um dos propósitos do estudo de Cassidy e Schlegel (2016) consistiu no exame do papel desempenhado pelos transientes de ataque na identidade do som da flauta, clarinete, saxofone alto e trompete.

Como resultados, os autores sugeriram que, tanto a presença do ataque como, provavelmente, a qualidade do mesmo, podem influenciar a identificação do timbre dos instrumentos. Schlegel e Lane (2013) efetuaram um estudo destinado à identificação de sons de quatro instrumentos (flauta, clarinete, saxofone alto e trompete). Partindo de duas condições (sons com ataque inicial e período de estabilidade vs. sons com apenas período de estabilidade), constataram que os membros de uma banda tiveram mais facilidade em identificar os sons que continham o ataque inicial. Berger (1964), ao realizar uma experiência com trinta estudantes universitários membros de uma banda, teve por objetivo identificar vários instrumentos de sopro (ex., flauta, oboé, clarinete em Si b, saxofone alto, saxofone tenor, trompete, trompa e trombone). Os sons dos instrumentos foram escutados entre quatro condições possíveis (inalterados; de trás para a frente; sem início e decaimento final do som; e filtrados com filtro passa-baixo). A dificuldade em reconhecer o timbre dos instrumentos, segundo a sequência de condições enumerada, aumentou da condição de sons inalterados para a de filtragem. Ainda no âmbito da condição de início e decaimento final do som removidos, o autor constatou que apenas quatro sujeitos reconheceram o som do saxofone alto, sendo que onze definiram-no como pertencendo à trompa e cinco ao trombone. No que se refere à audição de sons de trás para a frente, e reportando-nos a um estudo anterior com sons de piano, George (1954) constatou que “no complete sound (made by non-electrical means) of duration T sounds the same on reversal” (p. 225). Neste caso, o som parece-se mais com o de órgão do que com o de piano, porque o ataque está na posição da extinção e vice-versa (Rossing et al., 2002). Saldanha e Corso (1964) analisaram a importância dos transientes (ataque e extinção), da estrutura harmónica e do vibrato na identificação do timbre de instrumentos de orquestra. Com vinte músicos, os autores constataram que, em determinados instrumentos, a identificação diminuiu consideravelmente quando foram removidos os ataques. Contudo, na presença do vibrato o reconhecimento foi mais fácil. Observaram, ainda, que a identificação era melhor relativamente aos sons que possuíam transientes de ataque e um período de estabilidade curto.

Tendo em conta que o timbre transporta informações respeitantes à mecânica da fonte sonora e, ainda, a escassez de investigação centrada na influência dos parâmetros mecânicos na perceção do timbre, Giordano e McAdams (2010) focaram a sua pesquisa nas propriedades mecânicas dos instrumentos, tais como a família do instrumento musical e o tipo de excitação. Realizaram uma meta-análise a partir de 17 estudos concernentes à identificação e dissimilaridade do timbre dos instrumentos musicais. Quanto à identificação do timbre, os autores observaram haver, por um lado, uma identificação melhorada por famílias de instrumentos comparativamente ao reconhecimento individual dos mesmos, e, por outro, que a confusão entre instrumentos musicais ocorre principalmente dentro de uma mesma família de instrumentos.

4. Conclusões

O timbre é uma característica do som que desempenha um papel importante na perceção da música, da fala e dos sons do meio ambiente (Howard & Angus, 2017). No que se refere à música, permite reconhecer os diferentes instrumentos musicais (Caclin et al., 2006).

Neste artigo analisou-se uma série de estudos sobre a identificação do timbre dos instrumentos musicais, apesar da investigação realizada nesta área ser escassa. Partindo do facto de o timbre ter um carácter multidimensional, dado estar correlacionado com vários parâmetros acústicos (Caclin et al., 2006; Kraus et al., 2009; McAdams & Giordano, 2016), observámos os efeitos de um atributo estático, o espectro/envolvente espectral, e de uma característica temporal, a envolvente temporal, na perceção do timbre.

No seio do espectro/envolvente espectral, fizemos uma análise segundo o proposto por Leipp (2011), baseando-nos em três casos diferentes de espectros (espectro com componentes harmónicos, espectro com componentes quase harmónicos e espectro de ruídos). Referindo-nos principalmente aos dois primeiros tipos de espectro, o timbre encontra-se relacionado com a estrutura harmónica do som, sendo que a diferença ao nível do conteúdo de harmónicos (amplitude e número) permite que os vários instrumentos musicais tenham timbres distintos (Goldstein & Brockmole, 2016; Hall & Beauchamp, 2009; Hall et al., 2010; Olson, 1967). Adicionalmente, e no âmbito de uma análise mais fina realizada a um espectro com o intuito de identificar um instrumento, Hall e colegas (2010) sublinham que o “minimal detail may be sufficient for recognition” (p. 69).

Os transientes assumem igualmente uma função importante na identificação do timbre dos instrumentos musicais (Berger, 1964; Goldstein & Brockmole, 2016). Berger (1964), através da audição de sons de instrumentos com os transientes removidos (ataque e extinção), demonstrou a importância destes na definição do timbre de um instrumento. Entre os transientes, o de ataque é particularmente relevante na perceção do timbre (Cassidy & Schlegel, 2016; Saldanha & Corso, 1964; Schlegel & Lane, 2013). Schlegel e Lane (2013), num estudo exploratório sobre timbre instrumental, concluíram que a presença do transiente de ataque afetou de forma significativa a capacidade de identificar um instrumento. Campbell e Greated (2001) referem que “the nature of the attack is an important feature of an instrument’s characteristic sound” (p. 142), traduzindo o tipo de mecanismo excitador do instrumento (Weyer, 1976). Numa meta-análise de 2010, os resultados de Giordano e McAdams corroboram este aspeto, reportando que “the analysis of timbre identification data shows that large differences in mechanical properties of the sound source are associated with significantly better identification ability” (p. 161).

Para concluir, refira-se que o timbre resulta da combinação de “spectral and temporal changes associated with the harmonics of the fundamental along with the timing cues of the attack (onset) and decay (offset). Together this gives rise to the characteristic sound quality associated with a given instrument or voice” (Kraus et al., 2009, p. 544).

Acknowledgments

This paper was presented at 6th EIMAD – Meeting of Research in Music, Art and Design, and published exclusively at Convergences.

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Criança com cavaquinho em Oncologia

A musicoterapia na assistência domiciliar aos cuidadores da criança em cuidados paliativos oncológicos, por Lara Teixeira Karst (Brasil)[excerto]

Qualquer tarefa terapêutica deve concentrar-se na restauração de esperança, sentimentos de perda, isolamento e abandono, compreensão do sofrimento, perdão aos outros, buscando sentido para a vida no processo de morrer.

Lara Teixeira Karst

MUSICOTERAPIA EM CUIDADOS PALIATIVOS

Na área de cuidados paliativos, os primeiros registros da atuação do musicoterapeuta datam do ano de 1977, no Royal Victoria Hospital, Canadá, com um projeto piloto que objetivou conhecer o potencial da musicoterapia no atendimento a pacientes terminais e suas famílias.

Uma revisão sistemática sobre terapias oferecidas em hospices nos Estados Unidos, a partir de uma seleção randomizada de 300 instituições, identificou que o musicoterapeuta trabalha com pessoas portadoras de diferentes doenças como câncer, HIV/AIDS, demências e doenças neurodegenerativas. O musicoterapeuta que atua nos cuidados paliativos pode trabalhar com composição junto ao paciente e ao cuidador. Pode, igualmente, utilizar-se da improvisação musical, da imaginação guiada por música, canto, instrumentos musicais e de técnicas de relaxamento com música.

Os objetivos são traçados para atender necessidades: a) sociais, solidão, isolamento; b) demandas emocionais como depressão, tristeza, frustração, raiva, medo; c) cognitiva como a desorientação, na dimensão física como a dor e a falta de ar e nos aspectos espirituais como a necessidade de rituais baseados em espiritualidade.

David Aldridge afirma que a musicoterapia possibilita o movimento simultâneo de poder escutar e cantar. O uso dos sons auxilia o paciente e seus familiares a explorarem sentimentos e emoções que não seriam acessados pela conversa. Para o autor, cada situação cria uma demanda musical específica. Por exemplo: alguns movimentos do paciente poderão levar ao encontro de uma música popular que faça dançar, ou movimentos de músicas sacras que reflitam a dimensão espiritual. O musicoterapeuta pode cantar na cabeceira da cama ou até mesmo gravar e disponibilizar cds contendo músicas e canções escolhidas pelo paciente e sua família.

No contexto dos cuidados paliativos, a música ajuda a transcender o momento de sofrimento, possibilita a abertura para uma nova consciência a partir dos movimentos de cantar e tocar o que cada ser humano é. Dando sequência a esses estudos, tem-se que o musicoterapeuta atua como um profissional que intermedia a canção significativa para cada paciente, interage com ele ajudando-o a perceber-se em um momento para além da enfermidade do corpo. Assim, a musicoterapia oferece uma experiência de tempo qualitativamente rica, sendo uma intervenção valiosa: “mesmo em meio ao sofrimento é possível criar algo que é belo” (Aldridge, 1995).

Aldridge distingue que, no processo musicoterapêutico em cuidados paliativos, o musicoterapeuta conduz suas intervenções de acordo com as demandas surgidas, na direção de aliviar o sofrimento, reafirmar a esperança, estimular a consciência da vida em face da morte.

Qualquer tarefa terapêutica deve concentrar-se na restauração de esperança, sentimentos de perda, isolamento e abandono, compreensão do sofrimento, perdão aos outros, buscando sentido para a vida no processo de morrer. A musicoterapia pode ser uma poderosa ferramenta neste processo de mudanças. Embora as qualidades inerentes do processo criativo não poderem ser facilmente descritas em escalas de avaliação, podemos ouvi-las e senti-las quando elas são expressas. A Musicoterapia parece abrir uma possibilidade única para lidar com a doença ou para encontrar um nível de lidar com a morte de perto (Aldridge).

Nessa direção, Elisabeth Petersen (2012) assinala que o musicoterapeuta, por meio de uma escuta sensível, percebe o que as pessoas sonorizam como expressam suas dores, expectativas, sentimentos, medos, esperança, fé. Uma canção surgida em um atendimento musicoterapêutico pode trazer significados que traduzem sentimentos, expectativas. A morte é um acontecimento profundamente intenso. Em se tratando da morte de uma criança, a experiência torna-se especialmente mais delicada. O musicoterapeuta que trabalha nos cuidados paliativos deve estar em sensível sintonia com o tempo interno do paciente para que suas intervenções sejam coerentes com o que faz sentido para cada pessoa.

Faz-se necessário também respeitar as preferências musicais, aceitar as expressões sem julgamentos estéticos, permitir a autonomia e livre expressão. A musicoterapia possibilita uma relação criativa, mediante uma situação em que há um corpo falhando e que, muitas vezes, leva a um isolamento social. Desse modo, o musicoterapeuta deve estar presente para explorar e trabalhar as músicas escolhidas ou preferidas pelos sujeitos, sejam elas tocadas, cantadas, gravadas ou improvisadas. Assim agindo, poderá favorecer a construção de uma intimidade em que os mais profundos sentimentos possam ser divididos com o outro. Nesse cenário de cuidados paliativos, Petersen ressalta que

As funções atribuídas às músicas improvisadas ou recriadas por pacientes e cuidadores, com suas respectivas mensagens, focalizam: declarações de amor, pedidos de perdão, reconciliação, garantias de não abandono, saudades; revisão das realizações ao longo da vida, aproximação de paciente e familiares/entes queridos; o despedir- se, preparar-se para a partida; viver o luto antecipatório.

Entre as terapias expressivas, a musicoterapia atua como ferramenta de enfrentamento, auxilia paciente e cuidadores a lidarem com as limitações crescentes advindas da progressão dos sintomas, com a impossibilidade de cura e com a proximidade da morte.

Lara Teixeira Karst, A musicoterapia na assistência domiciliar aos cuidadores da criança em cuidados paliativos oncológicos. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás 2015.

Alexander Technique

Bruno Gomes Sousa, Prática Musical e Saúde, dissertação de mestrado, Universidade de Aveiro 2014 (excerto)

A performance musical, além de exigir uma determinada concentração, está dependente da descontração muscular e da postura corporal do músico.

Bruno Gomes Sousa

A performance musical, além de exigir uma determinada concentração, está dependente da descontração muscular e da postura corporal do músico. No entanto, durante a execução, o instrumentista necessita de um esforço mental e físico maior ou menor, resultando de vários fatores: o tipo de instrumento, a duração da execução, a dificuldade técnico-musical da peça executada, resistência muscular de cada instrumentista.

Frequentemente os alunos de música exigem do seu corpo um esforço físico maior do que aquele a que estão habituados normalmente. Alguns instrumentistas profissionais apresentam também este desequilíbrio entre esforço necessário e esforço realizado. Estes esforços notam-se principalmente na execução de obras virtuosas com um nível de dificuldade muito elevado e no período de mudança e de adaptação a um novo instrumento. No caso particular dos violetistas, esta dificuldade é muito evidente quando mudam para uma viola maior do que aquela a que estão habituados.

Para alguns músicos, a expressão artística, isto é, o movimento físico expressivo musical durante a performance, não é prejudicial, pois não requer fisicamente um grande esforço. O uso de movimentos durante a performance musical afeta a intenção de expressividade do instrumentista, o próprio som do seu instrumento e, além disso, ajuda a que a sua tensão produzida seja libertada enquanto que para muitos instrumentistas, as limitações físicas podem ser dolorosas, debilitantes e em alguns casos, severamente incapacitantes. O uso de movimentos expressivos durante a execução musical afeta positivamente a sonoridade do instrumento. Aliás, no caso da aprendizagem da viola d’arco e violino, estes movimentos podem originar uma melhor coordenação ente as mãos, fazendo com que o instrumento, ou partes dele, se torne um prolongamento do corpo, por exemplo, o arco do violino.

Estas tensões e esforços exagerados podem originar lesões que podem ser prevenidas através de técnicas de prevenção. São os casos do método Feldenkrais, da Alexander Technique (AT) e do Ioga que proporcionam a realização de exercícios para o instrumentista perceber e sentir o seu movimento, para aprofundar a compreensão, maximizar a função e, ao mesmo tempo, melhorar o conforto e o equilíbrio. Existem conservatórios e escolas superiores de música que facultam aos alunos, nas suas próprias instalações, aulas destes métodos de prevenção de lesões. É o caso da Royal Academy of Music, em Londres, que, no Reino Unido é um dos conservatórios de música que faculta sessões individuais de AT aos alunos durante um ano.

Além de prevenir lesões, também ajuda os músicos a libertar tensões desnecessárias, melhorando a performance musical. A técnica Alexander é usada por músicos conceituados, sendo casos famosos os de Yehudi Menuhin, Paul McCartney, Sting, Sir Colin Davis, entre outros.

“Early in my professional career the celebrated conductor Sir Adrian Boult, who had himself had Alexander lessons, sent me for lessons in the Technique. ‘My boy,’ he said, ‘you’ll end up crippled if you go on like that.’ I have been a pupil of the Technique now for over forty years, the benefits to me have been immeasurable, and I would recommend all students to take advantage of the programme of lessons available at the Royal Academy of Music.” (Sir Colin Davis)

Órgãos de Torres Vedras

Adaptado de Ana Cargaleiro de Freitas, Voz das Misericórdias, maio de 2018, acesso e adaptação a 28 de agosto de 2018.

Após a recuperação, o órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Torres Vedras ganhou nova vida através de concertos e ateliês.

Ana Cargaleiro de Freitas

Érica Zlotea chega todos os sábados à Igreja da Misericórdia de Torres Vedras com o caderno de pautas debaixo do braço. De olhos muito vivos, a jovem aprendiz aguarda o início da aula de órgão de tubos, no âmbito de um ateliê criado em parceria com a Escola de Música Luís António Maldonado Rodrigues. Desde que restaurou o instrumento histórico, em 2008, a Misericórdia de Torres Vedras contribuiu para a formação de mais de 80 crianças e adultos da comunidade.

O órgão construído pelo galego Bento Fontanes (1745-1793) renasceu pelas mãos de Dinarte Machado. Um investimento, no valor de cerca de 110 000€, que na opinião do provedor Vasco Fernandes era inevitável. “Era uma pena termos uma peça belíssima, segundo as opiniões de muitos técnicos, e não lhe darmos qualquer uso. Convidámos depois o professor Daniel Oliveira – atual organista titular– para iniciar as aulas de órgão porque estes instrumentos se estragam se estiverem parados”.

Daniel Oliveira assumiu a missão de valorizar e divulgar o instrumento, através do ensino e dinamização de um ciclo anual de órgão. “Quero torná-lo mais acessível às crianças, com reportório adequado à idade, pegando em temas populares, e torná-lo mais próximo do ouvinte”.

O coro alto da igreja é o espaço onde quase tudo acontece. Uma “sala de aula muito especial” que Érica e Diogo, os alunos que acompanhamos neste dia, conhecem de olhos fechados. “Com as duas mãos?”, pergunta a primeira pupila no inicio da lição. “Começamos pela direita e cantamos ao mesmo tempo”, pede Daniel Oliveira. Empoleirada no banco de madeira, Érica segue a partitura com a responsabilidade de um adulto. No próximo ano vai integrar o curso vocacional ministrado pela Escola de Música Luís António Maldonado Rodrigues, o “conservatório da cidade”. Em pequena, escrevia cartas ao pai natal a pedir um piano. Hoje tem um órgão de quase 300 anos como instrumento musical. Não é igual ao piano, mas cumpre as expetativas da jovem entusiasta. “Tem um som mais agradável, mais grave e forte”.

O próximo aluno não se deixa intimidar pela antiguidade e dimensão do órgão de tubos. Toca desde os 5 anos, no âmbito das aulas de iniciação musical da creche da Misericórdia, e beneficia da disciplina incutida nas lições. “Noto que o Diogo sai daqui mais concentrado e aprende a lidar com o stress. O professor incentiva-os independentemente de falharem”, comenta a mãe, Filipa Carvalho.

Os rituais são cumpridos semanalmente pela criança de 9 anos no início de cada lição. Ajeitar a cadeira, corrigir a postura e fazer exercícios de aquecimento com os pulsos. “Tens de confiar”, diz a Diogo Zambujo. “Ainda estás preso à partitura, não é preciso pensar”.

Mesmo que o objetivo não seja seguir a via profissional, Daniel Oliveira aposta na iniciação ao órgão desde muito cedo, valorizando a criatividade e disciplina potenciadas com o ensino da música. “É uma coisa que os marca para a vida. Não é apenas uma ocupação de tempos livres”.

Este esforço reflete-se na postura e envolvimento das famílias, seja através do interesse no desenvolvimento da criança, seja pelo aumento da procura junto da comunidade. “É um instrumento invulgar, daí a nossa curiosidade. É uma oportunidade única e uma forma de valorizar um património muito valioso da cidade”, considera a mãe do jovem aluno.

O músico e investigador Daniel Oliveira constata que “este é um instrumento cada vez mais acarinhado pelos torrienses” e isso vê-se nos dias de concerto, transmitidos em direto pela autarquia. No último trimestre de cada ano, os bancos da igreja enchem-se de locais e visitantes desejosos de escutar o órgão, nas suas múltiplas vertentes (acompanhado de canto ou pequena orquestra), e mesmo à distância é possível apreciar o “exotismo e brilho típico do instrumento histórico”.

Daniel Oliveira salienta a vocação pedagógica do evento – recitais comentados e atividade lúdica destinada a crianças e jovens -, que é já uma “marca e oferta cultural da cidade” e assinala em 2018 a sua terceira edição.

Quem não conhece esta peça única na cidade, com “personalidade própria” e um registo versátil – “dois timbres no mesmo teclado” – e está curioso para ouvir a sonoridade característica da segunda metade do século XVII/primeira metade do século XVIII terá de aguardar pelo mês de outubro ou acompanhar uma das cerimónias solenes realizadas na Igreja da Misericórdia, ao som do órgão Bento Fontanes (1773).

Daniel Oliveira é professor na Musicentro Escola de Música – Salesianos de Lisboa, Escola de Música Luís António Maldonado Rodrigues e organista na igreja matriz de Oeiras.

No concelho de Santa Maria da Feira há órgãos de tubos nas igrejas de Mosteirô, Santa Maria da Feira, Nogueira da Regedoura e Santa Maria de Lamas.

Em setembro de 2018, as Artes estiveram em Itinerância pelo Concelho com a primeira edição do Ciclo de Órgão de Tubos, que percorreu as Igrejas de Mosteirô, Santa Maria da Feira, Nogueira da Regedoura e Santa Maria de Lamas.

O Ciclo de Órgão de Tubos de Santa Maria da Feira pretende resgatar e valorizar parte da memória musical do concelho. Quatro concertos pontuaram os quatro domingos do mês de setembro e permitiram usufruir da diversidade e dos órgãos de tubos que compõem o património religioso concelhio.

No comando desta celebração, apresentando um reportório de excelência, esteve o organista feirense Rui Soares, a organista espanhola Esther Ciudad e o organista italiano Matteo Imbruno.

Além do património material, o programa permitiu ainda uma valorização do património imaterial, explorando, numa criteriosa escolha, alguma das obras dos mais importantes compositores nacionais e estrangeiros. Os concertos foram antecipados por um breve momento de enquadramento histórico e técnico de cada órgão, seduzindo o público para a diversidade deste património, assim como das suas possibilidades.

Órgão Eisenbarth

Órgão instalado no coro alto da Igreja de Mosteirô e inaugurado a 24 de maio de 2014, foi concebido pela firma de engenharia Eisenbarth que se destinava à capela de um hospital da cidade de Passau, na Alemanha (1966).

Órgão Walcker

Instrumento concebido para a Evangelische Kirchengemeinde de Berlim no ano de 1962, inaugurado na Igreja de Nogueira da Regedoura a 14 de março de 2010.

Órgão Walcker

Instrumento da igreja Matriz de Santa Maria da Feira foi construído pela firma C. F. Walcker, em 1896, na Alemanha e catalogado com o op. 748.

Órgão Cavaillé-Coll

Órgão da Igreja de Santa Maria de Lamas, proveniente da Oficina de Cavaillé-Coll de Paris, um dos organeiros mais famosos na Europa do século XIX.