Repositório de teses, dissertações e artigos científicos nos campos da música e da dança

Órgão construído por D. Francisco António Solha/Sá Couto c. 1765, restaurado pela Oficina e Escola de Organaria, em 2010, opus 55.

Critérios para restauro de órgãos históricos

[ Harald Vogel ]

ÍNDICE

1. Restauro para o estado primitivo

a) Reparação (Remontagem) – existindo o estado primitivo
b) Reconstrução – existindo muitas peças originais
c) Reconstrução – existindo algumas ou muito poucas peças originais

2. Restauro para um estado histórico consolidado (“Gewachsener Zustand”)

a) Reparação (Remontagem) – sem introduzir alterações
b) Reparação e reconstrução – eliminando peças posteriormente introduzidas de diferentes “Tecnologias”

3. Restauro para outro estado posterior

a) segundo o estilo e técnicas do construtor ou sua escola
b) segundo um estilo e técnicas diferentes
c) mistura de a) e b)

4. Re-Restauro

a) eliminando elementos de restauros anteriores, depois de provado que estes foram um erro de decisão ou de interpretação
b) eliminação de modernizações e acrescentos não adequados

5. Alteração ou substituição de peças históricas por motivos técnicos

a) someiros
b) tracção de registos
c) sistema de vento
d) tracção das notas e consola
e) tubaria

6. Aumentos devidos a razões práticas

a) disposição
b) teclados e sua extensão
c) afinação

Critérios para restauros de órgãos históricos

1.a) É muito raro encontrar órgãos no seu estado primitivo. Trata-se, normalmente, de pequenos instrumentos que, durante muito tempo, não foram utilizados. Do século XIX chegaram até nós alguns instrumentos de maiores proporções. O restauro para o estado primitivo de órgãos não mecânicos também é necessário e cada vez menos é posto em questão. Muitos órgãos ingleses vindos de Igrejas que já não se utilizam, são remontados em diversos locais do Continente (Remontagem) e portanto na sua forma original. O restauro para o estado primitivo, existindo (quase) toda a substância original é dos casos que apresentam menos problemas. Os pressupostos para o planeamento e execução destes restauros são a utilização das técnicas e estética tímbrica originais.

1.b) Existindo grande parte das peças originais, é normalmente optado por uma reconstrução das peças que foram introduzidas substituindo as originais. Exemplo: O órgão Compenius no Schloss Frederiksborg na Dinamarca. No último século, num pequeno restauro (Mads Kjersgaard) foram feitas algumas alterações que no último restauro foram anuladas – Sistema de Vento e partes para afinar os tubos abertos de madeira.

Em principio, as alterações ao estado primitivo que são de grande qualidade, devem-se deixar. Exemplo: Órgão Schnitger em Cappel, que recebeu um temperamento igual quando foi mudado de Hamburg para Cappel, em 1816. A tubaria (com os tubos tapados soldados e os abertos cortados à altura) teria sofrido bastante se no último restauro se se tivesse optado por uma afinação mesotónica (pura ou modificada).

Em tubaria que foi posteriormente toda ou quase toda cortada (em vista a obter outro temperamento ou altura de lá) é de aconselhar o alongamento para o comprimento original já que assim se vai reestabelecer as proporções dos tubos que o construtor realizou. Exemplo: O órgão Schnitger em St. Jakobi – Hamburg. Esta medida é porém problemática se a intonação está muito bem conservada. Um alongamento em regra geral pode levantar problemas na qualidade sonora. Exemplo: Gimont (Toulouse).

A reconstrução, existindo muitas peças originais, é por vezes problemática, já que esta obriga por vezes à perda de material primitivo. Por isso, será de pensar numa solução 2 a).

l.c) É um paradoxo, mas a reconstrução completa de um órgão para o seu estado primitivo é mais fácil do que uma reconstrução parcial em que só existem algumas vestígios. Os pressupostos são neste caso o conhecimento global das técnicas de construção e da estética {imbrica do construtor. Exemplo: o órgão Schnitger em St. Ludgeri – Norden. Neste órgão, a consola foi renovada de uma forma inadequada em restauros no inicio deste século. O termo inadequado significa que o que era pressuposto pelos factos e peças históricas não foi realizado, faltando também um estudo próprio da época dos restauros. Em Norden, a tubaria foi no século passado “deslocada” de alguns meios-tons, e por isso teve que ser novamente alongada. Devido a este facto foi possível equacionar o problema do temperamento, e foi optado por uma afinação mesotónica modificada. No caso de Cappel, não havia estes dados para procedimento idêntico. A reconstrução dos teclados com a extensão original resultou da extensão imposta pelos someiros originais de Schnitger e pelo facto de não existirem peças dos teclados do séc. XVIII ou XIX.

É relativamente pouco problemático a construção de um órgão num determinado estado histórico, quando existe muito pouca substância primitiva, como por exemplo a caixa de um órgão. Neste caso, não existem conflitos entre o desejo de uma utilização musical no espírito estético da época de construção e a existência de peças históricas valiosas não-primitivas.

2.a) Muitos instrumentos históricos sofreram alterações em tempos posteriores, que hoje já podem ser consideradas de carácter histórico. Nas primeiras décadas deste século com o Movimento para Recuperação de Instrumentos Históricos, foram eliminadas, sem pensar em consequências, algumas alterações posteriores de forma a recuperar um fictício estado “primitivo”. A este purismo estava ligado um conhecimento insuficiente da questão e, por isso, houve perdas irreparáveis de material histórico. Nas últimas décadas, foi cada vez mais tido em conta que a substituição de peças não primitivas só é discutida se o estado primitivo puder ser reconstruído sem dúvida alguma. Em caso de dúvida, deve-se manter o estado histórico consolidado.

O restauro de um estado histórico consolidado é por vezes a solução mais fácil para a conservação histórica. A vantagem é que não é necessário perder material histórico. Além disso, fica o caminho livre para uma reconstrução futura quando houver mais e melhores conhecimentos. Exemplo: o órgão Schnitger de A-Kerk em Groningen. que depois do restauro da Igreja em 1990 foi novamente montado sem alterações (Remontagem).

2.b) No caso de um estado histórico consolidado, não se pode dar o mesmo valor às peças das diferentes épocas. A fronteira entre o aceitar e o não aceitar as peças históricas é dada quando as mesmas deixam de ser feitas com a mesma tecnologia. Esta fronteira é particularmente evidente quando há tracções não mecânicas em órgãos mecânicos! As excepções são, neste caso, secções de um órgão separadas, como por exemplo um Pedal com tracção pneumática que não tenha nenhuma influência nas funções mecânicas e tímbricas de um instrumento.

3.a) Em bastantes instrumentos históricos houve algumas alterações logo desde início (aumento da disposição ou da extensão dos teclados). O restauro para este estado aumentado ao estilo do construtor não apresenta normalmente grandes problemas, já que também os detalhes apresentam grandes semelhanças com o estado primitivo. Exemplo: o órgão Schnitger em Noordbroek (Prov. de Groningen), que até inícios do séc. XX sofreu alterações e aumentos na tradição de Schnitger. No restauro que já está planeado será conservado este estado histórico consolidado.

3.b) Quando as alterações introduzidas posteriormente não são feitas com as técnicas originais e divergem das tecnologias primitivas, a decisão e mais difícil. Aqui, e a qualidade das alterações que deve ser examinada e só depois decidido por uma comissão de peritos qual será o plano de restauro.

3.c) Em grandes instrumentos históricos, é difícil encontrar a decisão de qual será o estado a recuperar através do restauro. Por vezes, há a necessidade de tomar atitudes pragmáticas, e de ter em consideração as diversas épocas representadas no órgão. Exemplo: o órgão Schnitger na Martini-Kerk em Groningen, no qual, com base no projecto e someiros de Arp e Franz Gaspar Schnitger, a tubaria do séc. XVIII e XIX foi conservada. Neste caso, foram retiradas outras alterações de 1939 (como por exemplo a tracção eléctrica) – cf. 2.b) e 4.b).

4.a) Os restauros de meados do séc. XX fizeram por vezes trabalhos errados (redução da pressão de vento ou da altura de boca). Além disso, foram utilizados materiais inadequados. Por isso, nas duas últimas décadas foram muitos órgãos com valor histórico novamente restaurados, com os pressupostos de melhores conhecimentos históricos, uso de materiais e tecnologias do organeiro construtor e a tomada em consideração da estética tímbrica. Exemplo: o órgão Schnitger em Lüdingwörth.

4.b) No esforço de restauros do início do séc. XX foram frequentemente aumentadas as extensões dos teclados (com someiros adicionais), e as secções mais distantes foram equipadas com tracção eléctrica ou pneumática. Por vezes, também se colocou a consola noutro local. Hoje pertence ao bom senso que estas alterações deverão ser retiradas.

5.a) Devido aos aquecimentos que hoje existem nas Igrejas, os someiros estão sujeitos a situações climatéricas mais difíceis do que antigamente. Por este motivo, são usadas algumas medidas preventivas: tiras de cabedal na zona das tampas (“Spunde”), anéis de cabedal na zona das réguas, e juntas não coladas. Por princípio, só será usada madeira maciça e será prescindido o uso de madeira contraplacada e materiais sintéticos. Neste caso, poderá ser usada a experiência de organeiros norte-americanos que, desde o final dos anos 60, têm construído da forma tradicional com madeira maciça apesar das difíceis condições climatéricas (John Brombaugh )

5.b) Hoje os padrões para uma tracção de registos segura fácil de manejar são relativamente altos. Isto é válido especialmente para os órgãos construídos em técnica norte-europeia que, em comparação com a sul-europeia, apresenta someiros largos e com réguas compridas. E certo que a tracção de registos antigamente não era tão leve como hoje é desejado. Além disso, hoje, os instrumentos são por semana mais vezes tocados do que antigamente. Um constante curso da régua é também um pressuposto para que a afinação se mantenha. A montagem de ajudas de registação, mesmo no caso de uma reconstrução, é de desaconselhar.

5.c) No restauro de órgãos históricos, a reconstrução do sistema de vento é das coisas mais complexas. Os poucos instrumentos que ainda possuem o sistema de vento primitivo, mostram- nos uma “flexibilidade” tão grande de vento, que por vezes nos é difícil aceitá-la. É ponto assente que um sistema de vento original não pode ser alterado. Se necessário, poderá ser montado um novo sistema de vento. Exemplo: o órgão Schnitger em Hamburg-Neuenfelde. Em muitos casos são montados foles para estabilização do vento. Nesse caso deverá poder-se desligar os mesmos. Exemplo: O órgão Treutmann em Grauhof (Goslar).

5.d) Ainda existem bastantes órgãos com a tracção mecânica primitiva. O problema que aqui surge é o aparecimento de ruídos, o que não acontece em órgãos modernos. Este ruído pode ser substancialmente reduzido através de uma técnica ao tocar, que consiste em manter os dedos próximos das teclas. Na minha longa actividade pedagógica pude verificar que quer com amadores (jovens e adultos no programa de formação musical de Igreja Evangélica Reformada), quer com profissionais (meus alunos nas escolas superiores ), esta aspecto técnico da forma de tocar pode ser aprendido em pouco tempo. Pressuposto é que os organistas permaneçam dentro das suas capacidades quanto às peças a escolher.

O uso de feltros ou outros tecidos na tracção para evitar ruídos é de desaconselhar, porque a sensibilidade do contacto entre a tecla e válvula vai ser alterada para pior. A adaptação da forma de tocar às tracções mecânicas muito sensíveis não é assim tão difícil.

O hábito com outros formas de teclados (como o da oitava curta) exige um pouco mais de treino. Em Ostfriesland, já há mais de duas décadas que órgãos com oitava curta são tocados por organistas locais sem grande dificuldade.

5.e) Um trabalho adequado com a tubaria exige do organeiro que executa o trabalho o uso das técnicas usadas primitivamente. Um dos grandes pressupostos para o restauro de tubos é a possibilidade de construção dos mesmos na própria oficina. Desta forma, poderá o organeiro ganhar experiência de como a construção e a intonação de tubos dependem uma da outra. Alguns tubos antigos são muito finos e exigem por isso um tratamento muito cuidadoso. Em casos extremos, os tubos de fachada só têm um ataque satisfatório, quando são revestidos com uma folha de estanho como primitivamente. Exemplo: o órgão Müller em Klein Midlum (Ostfriesland). Em alguns casos os tubos de madeira comidos por bichos terão que ser substituídos por outros feitos da mesma forma.

6.a) Em tempos passados, o aumento da disposição em órgãos históricos já causou grandes estragos. Só com uma separação total de secções se poderá pensar num aumento, como por exemplo um pedal em separado. Exemplo: o órgão Grotian em Pilsum (Ostfnesland), onde está planeado, após o restauro de 1991, um Pedal suplementar para o órgão de 2 manuais de 1694.

6.b) Também o aumento dos teclados no passado conduziu a grandes problemas. Também aqui só a montagem em separado das notas a aumentar poderá ser posta em questão. Exemplo: o órgão Schnitger em Hamburg-St. Jakobi, onde o Ré sustenido do Pedal foi introduzido no último restauro.

6.c) A utilização de temperamentos antigos é um problema delicado, no restauro de órgãos históricos. Nas últimas duas décadas tanto no órgão como na prática de música antiga houve um mudança de pensar e de hábitos auditivos. É óbvio que, havendo documentos escritos ou sendo possível encontrar sem dúvidas a afinação dos tubos existentes, esta terá que ser novamente usada. Onde isto não for possível, dever-se-á orientar pelas tradições do tempo do construtor. Aqui surgem conflitos entre a possibilidade de executar diversos reportórios e as limitações de um temperamento antigo. Esta contradição é, em princípio, irresolúvel, e necessita para cada caso de uma decisão difícil. Também aqui, esta decisão não deverá cair sobre os ombros de um único perito, que talvez tenda para o seu gosto pessoal, mas deverá ser decidida por um grémio de peritos.

A altura da afinação que, em meados do séc. XX foi alvo de muita discussão e alterações, é hoje de forma geral aceite na sua forma primitiva.

O gosto pessoal subjectivo de organistas, organeiros e peritos não deve ser determinante para os critérios de restauro de órgãos históricos. Por outro lado, não podemos esquecer que podem surgir conflitos entre o uso actual e a forma primitiva de um órgão. Estes conflitos surgem frequentemente na questão do temperamento e do sistema de vento. E necessário que os compromissos 5 . a) – e) e 6 . a) – c) sejam nomeados.

Na prática de restauros há um desenvolvimento dinâmico em toda a Europa, no qual se observa uma elevação do nível de conhecimentos históricos, do nível da qualidade dos trabalhos de organeiros e de uma maior compreensão da estética tímbrica.

Órgão construído por D. Francisco António Solha/Sá Couto c. 1765, restaurado pela Oficina e Escola de Organaria, em 2010, opus 55.

Órgão Francisco António Solha/Sá Couto c. 1765, restaurado pela Oficina e Escola de Organaria, em 2010.

Música e cuidados paliativos

MÚSICA E CUIDADOS PALIATIVOS

Reflexões sobre a Intervenção Musical em Ambientes de Cuidados Paliativos

por Wilson Brisola Fabro

“Como alguém que despe sua roupa em tempo de frio, e como vinagre sobre o salitre, assim é o que pretende cantar para um coração oprimido”. (Provérbios 25:20)

Nesses “tempos modernos” onde as linguagens mediáticas nos tomam de sobressalto, quando falo da importância da música ouço muito a expressão: “a música é somente um paliativo”!

Como definição, o termo “paliativo” deriva do latim pallium, que significa “manto”, “capote”, que aponta sobre os cuidados em aliviar os sintomas da dor e o sofrimento dos pacientes tendo como objetivo o paciente em sua globalidade de ser e aprimorar sua qualidade de vida.

Etimologicamente, significa prover um manto para aquecer “aqueles que passam frio”.

A música pode criar relações que visam o encontro com a centralidade de cada pessoa, permitindo recolocar em movimentos vários tipos de emoções que não se encontram nos hospitais e lugares de cuidados, podendo promover comunicação. (M. Buber)

O seu poder evocativo que perpassa aquilo que se vê, deverá considerar a pessoa, este encontro único, a sua história e a sua dignidade humana!

A música no ambiente hospitalar serve como uma proposta de Humanização, alcançando efeitos fisiológicos e psicológicos nos pacientes e também naqueles que atendem.

Há relatos em papiros egípcios que médicos usavam a música nos primórdios da medicina.

O entendimento grego sobre a doença era visto como desequilíbrio, e a música era utilizada como uma ferramenta usada para reorganizar, reequilibrar, levando a harmonia do corpo e mente através dos sons.

A música se insere como instrumento para a melhoria da qualidade de vida do paciente internado, na busca de sua melhoria e alta hospitalar.

“O homem está apto ao encontro na medida em que ele é totalidade que age” (M. Buber)

As atividades musicais de ouvir, cantar e tocar podem exercer um papel terapêutico e melhora da qualidade de vida.

Existe um efeito de sensibilização e humanização do espaço onde a música é inserida com arte e dedicação.

Diversos profissionais utilizam a música no tratamento da saúde, mas o que diferencia cada prática profissional é a formação e os objetivos da música no ambiente.

Seja em leitos de enfermarias dos hospitais, como junto a uma cadeira de rodas em uma Instituição de Longa Permanência, o músico deverá buscar:

  • Um ato musical autêntico e uma atitude de escuta;
  • Uma música compartilhada é um ambiente sonoro enriquecido;
  • Uma estreita interação entre os músicos, os doentes, as famílias e as equipes hospitalares.

Dentro da proposta de uma intervenção musical em ambientes de cuidados o músico terá como finalidade, integrar o projeto de humanização do hospital, colaborando na melhoria da qualidade de vida de todos (utentes e profissionais) no hospital, sensibilizando e estimulando novas experiências artísticas e musicais.

Texto extraído do livro Afetos Musicais. Editora Shiraz – 2016/Brasil.

Música e cuidados paliativos

Wilson Fabro

Roda de Samba, artista Caribé

PT Brasil

A performance musical é essencial no aprendizado da música, pois há um deslocamento da percepção e da ação de se fazer música e o que passa a ser relevante, o que se levanta e se alça como essencial é o gesto musical, como um gesto dionisíaco de indiferenciação da personalidade (des)integrando a subjetividade da pessoa e a objetividade do fenômeno na unidade do memorável.

Em cada um de nós, pode-se dizer, existem dois seres que, embora sejam inseparáveis – a não ser por abstração -, não deixam de ser distintos. Um é composto de todos os estados mentais que dizem respeito apenas a nós mesmos e aos acontecimentos da nossa vida pessoal: é o que poderia chamar de ser individual. O outro é um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que exprimem em nós não a nossa personalidade, mas sim o grupo ou os grupos diferentes dos quais fazemos parte; tais como as crenças religiosas, as crenças e práticas morais, as tradições nacionais ou profissionais e as opiniões coletivas de todo tipo. Este conjunto forma o ser social. Constituir este ser em cada um de nós é o objetivo da educação

Durkheim

E concordando com esse pensamento Libâneo:

Num sentido mais amplo, a educação abrange o conjunto das influências do meio natural e social que afetam o desenvolvimento do homem na sua relação ativa com o meio social. (…) Os valores, os costumes, as ideias, a religião, a organização social, as leis, o sistema de governo, os movimentos sociais são forças que operam e condicionam a prática educativa.

José Carlos Libâneo


Portanto, se a educação tem objetivamente esse caráter formativo e constitutivo do ser social, depreende-se que isso deva acontecer continuamente e dialogicamente: “(…) este ser social não somente não se encontra já pronto na constituição primitiva do homem como também não resulta de um desenvolvimento espontâneo” (Emile Durkheim).

Buscamos compreender as possibilidades a partir das perspectivações da música dentro e fora do espaço escolar. Assumimos que as vivências dinâmicas da escuta do fenômeno musical não podem ser circunscritas ao ambiente escolar apenas.

A maior parte dos nossos conhecimentos adquirimo-los fora da escola. Os alunos realizam a maior parte de sua aprendizagem sem os, ou muitas vezes, apesar dos professores. Mais trágico ainda é o fato de que a maioria das pessoas recebe o ensino da escola, sem nunca ir à escola.

Ivan Illich

Se o currículo escolar avança para além de seus muros tornando-se uma cultura ex-escola, ou seja, até os que não passam pela escola são de algum modo escolarizados, devemos perguntar que currículo escolar é esse e como a música está presente nele.

Perrenoud identifica, como um dos três mecanismos responsáveis pelos sucessos e fracassos produzidos na escola, “(…) o currículo, em outras palavras, o caminho que desejamos que os alunos percorram”.

Há um diálogo urgente que nos convoca para pensar como as teorias do conhecimento que permeiam as concepções de escola recebem o aceno da música, que é sempre uma experiência fundadora de sentido para fazer saber e conhecer.

Premissa fundamental que procuramos colocar em prática: a música está na base de todo conhecimento humano. Se não há música, então, não há conhecimento possível, pois a música funda nossos modos de pensar, dizer e mostrar.

O aprendizado musical nos traz o saber fazer harmonizador, uma harmonia não como um recurso de condução de vozes, mas como composição, até mesmo as técnicas de harmonização das vozes são antes um mostrar-se originário da diferença, da compatibilização dos contrários, por isso harmônicos, sem exclusão de nenhuma parte, eis o princípio articulador da música e uma reflexão para conduzirmos dentro e fora da escola o fundamento harmônico em um currículo escolar segregador e, portanto, excludente, ou seja, desarmônico.

Harmonia é a possibilidade de con-verter em com-posição instâncias substantivas fenomênicas, instâncias substantivas que sejam e/ou façam o movimento em direção ao mostrar-se, significa: harmonizar é ser capaz de juntar concretamente no fim mas desde o princípio torná-las um todo, sem destruir nem diluir nem elidir sua di-ferença. Ao contrário, constituindo uma nova diferenciação, produzindo a diferença entendida como o seu caminho para o des-conhecido, para o que não era harmonizado e passa a ser.

Antonio Jardim

Um currículo escolar que não contemple a música está fadado ao fracasso, ao menos, desde a perspectiva de ensino e aprendizado do poético, ou ainda se considerarmos o que se aprende e ensina fora da escola e que em um “modelo curricular sem música” estaria também destinado a ser um currículo: recortado, aleijado, lacunar, sem um dos pilares, — senão o pilar central que rege o sentido de saber e conhecer — desde as culturais aborígenes, arcaicas e primevas: o que denominamos como música; a experiência singular do memorável presentado em nossas ações sensório-corpóreo-motoras.

A música não é o único caminho, mas é nosso caminho, que apontamos como possibilidade de perspectivação e reflexão do ambiente escolar pautado por um ensino conteudístico curricular desarmonizado da realidade social expericenciada pela própria comunidade escolar.

Perspectivando o aprender e ensinar música: experienciando e refletindo desde o subprojeto PIBID-Música da UFRJ, por Celso Garcia de Araújo Ramalho, Anderson Carmo de Carvalho, Camila Oliveira Querino PPG em Ciência da Literatura Rio de Janeiro – RJ Eliete Vasconcelos Gonçalves, in Educação: Políticas, Estrutura e Organização 10, Gabriela Rossetti Ferreira, org. Atena Editora 2019. [ Excerto ]

Roda de Samba, artista Caribé
Roda de Samba, artista Caribé

Harmonia entre fazer e pensar música

PT Brasil

A metodologia do ensino da música confinada por séculos sob a alcunha dos “conservatórios” apresenta um conjunto de procedimentos que, por vezes, torna certas percepções menos possíveis, como o envolvimento corporal na vivência musical.

A disposição do sistema educacional tradicional organiza os alunos de forma a não haver contato físico, a conter o movimento corporal, a não haver movimento grupal, a conformar o corpo a movimentar apenas a cabeça e os olhos. O movimento restringe-se a cumprir funções tais como orientar o corpo em direção ao professor, à lousa, ao caderno, ao livro, ou ao celular, este último, um aparelho institucionalizado oficiosamente dentro da sala de aula.

Assim, num ambiente que propõe um aprendizado regrado e objetivado, o aprendizado musical é prejudicado por ter que se enquadrar às restrições impostas pela organização e disposição da sala de aula. Objetivar, funcionalizar, não faz parte da essência do que é música, esses procedimentos não contribuem nas avaliações que medem o nível de aprendizado musical dos alunos, nem nas provas de ingresso para instituições.

Apesar das dificuldades que enfrentamos na abordagem dos conteúdos musicais em sala de aula no Ensino Médio, sempre há um esforço em estabelecer um vínculo que provoque o interesse dos alunos. Uma das possibilidades é desenvolver o estímulo a partir do despertar da escuta, que para alguns alunos está relacionada ao caráter do som como fonte imediata de gozo ou deleite sonoro.

Estabelecido o vínculo com os alunos, o próximo passo é pensar em como desfuncionalizar a música e ir além de encerrá-la à esfera do entretenimento, buscando convalidar o espaço regular ou formal de ensino-aprendizagem do fenômeno musical como forma de conhecer o real, isto é, ser verdade, sem reduções representacionais.

O formato das “oficinas de música”, as ações que denominamos “Palco Aberto”, a crítica aos conteúdos e metodologias de abordagem nos livros didáticos de “Artes”, os debates entorno da música como cultura e não como objeto ou abstração e representação social, as possíveis interações da música com as outras disciplinas do currículo escolar, abrem perspectivações para investigarmos música além e aquém das reduções impostas pela regulação da representação antropológico-instrumental da técnica. Saber esperar o tempo musical como tempo para saber saborear o originário.

Saber investigar significa saber esperar, mesmo que seja durante toda uma vida. Numa época, porém, em que só é real o que vai de pressa e se pode pegar com ambas as mãos, tem-se a investigação por “alheada da realidade”, por algo que não vale a pena ter-se em conta de numerário. Mas o Essencializante não é o número e sim o tempo certo, i. é., o momento azado, a duração devida.

Heidegger, 1999

Perspectivando o aprender e ensinar música: experienciando e refletindo desde o subprojeto PIBID-Música da UFRJ, por Celso Garcia de Araújo Ramalho, Anderson Carmo de Carvalho, Camila Oliveira Querino PPG em Ciência da Literatura Rio de Janeiro – RJ Eliete Vasconcelos Gonçalves, in Educação: Políticas, Estrutura e Organização 10, Gabriela Rossetti Ferreira, org. Atena Editora 2019. [ Excerto ]

Jovem executante de marimba
Jovem executante de marimba
Krzystof Penderecki, compositor e maestro

Esta Páscoa está a ser marcada pela “passagem” de muitos. Os anónimos e outros, cujo legado singular celebramos. O compositor polaco Krzysztof Penderecki (1933-2020) morreu num domingo, no passado 29 março, na cidade polaca de Carcóvia, com a idade de 86, depois de doença prolongada.

Penderecki nasceu no dia 23 de novembro no seio de uma família que transportava a memória das migrações arménias, naquela geografia. No seu país de origem, Krzysztof Penderecki é celebrado, a par de Witold Lutosławski (1913-1994), como um dos principais representantes da cultura contemporânea polaca. Mas o mesmo podemos afirmar, na perspetiva da cultura europeia e norteamericana, tendo em conta que o seu trabalho e o seu reconhecimento ultrapassaram as fronteiras criadas pelas dinâmicas políticas de sovietização da Europa de Leste, para se inscrever no coração das práticas musicais contemporâneas.

A obra de Krzysztof Penderecki tem momentos diversos. Não é uma biografia intelectual linear. A sua linguagem musical conheceu momentos de redireccionamento. O abandono de algumas tendências mais vanguardistas foi criticado pelos seus pares e, em certos casos, saudado pelos públicos. Mas julgo que se poderá afirmar que ele ficará na história da música ocidental, da segunda metade do século XX, pelo facto de a sua obra ser um lugar de codificação inventiva das aquisições técnicas mais avançadas, nesse período.

Ainda hoje, as suas obras são uma biblioteca segura para a descoberta das novas formas de abordagem dos instrumentos musicais, e sua notação, que acompanharam essa modernidade musical.

Entre outras, a obra Trenodia [Ode] às Vítimas de Hiroshima tornou-se um símbolo desta contemporaneidade. Trata-se de uma obra para um ensemble de 52 instrumentos de corda, composta em 1960 e premiada, em 1961, pela Tribuna Internacional dos Compositores (UNESCO). Nessa criação, pode dizer-se que Penderecki experimenta todos os limites da escrita para estes instrumentos, construindo o mapa de um mundo sonoro desconhecido. A obra homenageia os residentes de Hiroshima, vítimas da explosão atómica.

Deve referir-se ainda o seu trabalho de criação musical para filmes como O Exorcista, de William Friedkin, Shining de Stanley Kubrick, e Um coração selvagem de David Lynch. Em 2011, Penderecki colaborou com projetos musicais de Jonny Greenwood, guitarrista dos Radiohead, e com o compositor de música eletrónica Aphex Twin.

A memória deste compositor polaco ficará associada à presença de referências religiosas na música contemporânea europeia – referências raras em muitos dos seus compagnons de route. Em todas as fases da sua biografia musical, encontramos vários frescos corais, recebidos como referências incontornáveis para a história recente da música vocal. É disso exemplo o seu Stabat Mater (1962) – obra que foi acolhida como o símbolo da incorporação do movimento de vanguarda do pós-guerra na música religiosa. Nesse mesmo ano, recebeu a encomenda da rádio de Colónia para a criação de uma Paixão segundo São Lucas, que virá a concluir em 1965. A sua conceção acompanhará a realização do II Concílio do Vaticano, contexto em que, como é sabido, se procurou inscrever a relação com o judaísmo numa nova linguagem. Segundo as palavras do compositor, com esta obra, pretendia “não apenas voltar a narrar o sofrimento e a morte de Cristo, mas falar da crueldade do nosso século, do martírio de Auschwitz”. No quadro deste programa, Penderecki pretende “transportar o auditório para o coração do acontecimento, como num mistério medieval, onde ninguém permanece de fora”.

Recordo que o século XX foi o século do regresso da Paixão como forma musical, particularmente depois da I Guerra Mundial. Se acompanharmos René Girard, que leu os evangelhos cristãos da Paixão como o testemunho de uma estreia cultural – a emergência de um Deus das vítimas –, podemos descobrir uma forte correlação entre a valorização musical dessa narrativa e a centralidade do valor atribuído ao “cuidado da vítima”, na memória desse século. Mas há um problema. Como vão lidar os compositores com uma ambivalência: a passagem da figura dos judeus como perseguidores (nos evangelhos) para o lugar da vítima?

A Paixão de Penderecki segue o Evangelho de Lucas, mas introduz diversas interpolações, constituídas por textos litúrgicos da Semana Santa – incluindo o Stabat Mater, escrito anteriormente. O resultado é um mosaico musical, com algumas alusões às tradições da música ritual latina, mas fortemente marcado pelas experiências do compositor no domínio da criação coral de grande escala. A obra foi recebida como um monumento musical de grande impacto. Mas algumas das leituras da obra sublinhavam o paradoxo patente entre a intenção do compositor e a sua escolha de materiais. Essa relação diz respeito à incongruência notada entre a evocação dos judeus vítimas em Auschwitz e os judeus que constituem a “turba” que reclama a crucifixão – ou ainda a centralidade que os “impropérios” recebem no programa construído por Penderecki.

A sensibilidade Penderecki à questão das vítimas judaicas encontrará uma expressão mais evidente, já em 2009 – 43 anos depois da Paixão –, quando passavam 65 anos sobre a destruição do ghetto de Lodz. Neste contexto, Penderecki escreveu o oratório Kaddish, dedicado a “todos os Abrameks de Lodz que queriam viver e aos polacos que salvaram judeus”. O nome indicado na dedicatória da obra é o de Abramek Cytryn, jovem judeu morto com quinze anos, a quem pertence o poema que abre o oratório.

Diria que se poderia fazer a história do século XX a partir das criações musicais sobre as narrativas da Paixão. Nessa história, desvendam-se as feridas da nossa contemporaneidade e pode descobrir-se uma trajetória de valorização da dimensão universal destas narrativas cristãs.

Alfredo Teixeira, compositor e antropólogo

António Bernardo da Costa Cabral

Evolução Histórica da Música na Escola

Helena do Canto

Nas escolas de ensino oficial obrigatório, a área da Música é introduzida pela primeira vez nas reformas de Passos Manuel e Costa Cabral, com a progressiva institucionalização dos liceus entre 1836 e 1850, porém, funcionava apenas como Canto Coral; sendo submetida a várias modificações, relativamente ao currículo, programa e habilitações dos respectivos professores.

No entanto, a primeira grande reforma do ensino da Música nas escolas oficiais surge em 1968, cuja disciplina passou a ser obrigatória no quinto e sexto anos de escolaridade; e importa salientar que surge com um programa regulamentado, alterando-se o seu nome para Educação Musical. A disciplina de Canto Coral continuou no nono ano, funcionando como disciplina opcional.

Em 1990, a disciplina de Educação Musical é integrada em todos os anos curriculares até ao sexto ano como disciplina obrigatória, e, nos anos seguintes até ao décimo segundo como disciplina de opção. O Ensino Primário (actual Ensino Básico – 1º Ciclo) incluía no seu currículo desde 1936 a disciplina de Canto Coral que passou a chamar-se Educação Musical no programa de1960.

Em 1974, surge a disciplina de Música que apresenta já um misto de objectivos, conteúdos e metodologias (ME, 1974). Sugerindo uma ideia de Educação Musical mais evoluída, surge, em 1975, um programa elaborado para a disciplina de Música, Movimento e Drama que, entretanto, substitui a de Música e perdura até à publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).

Violeta Hemsy, refere que a crise que a Educação Musical atravessa nestes últimos anos, não tem a ver com a falta de uma informação actualizada, mas sim com uma série de 45 obstáculos que persistem na prática pedagógica. A autora defende que, impera ao mundo da pedagogia musical, hoje, manejar-se com relativa fluidez na promoção da mudança e da transformação educativa, não só especificamente no que concerne à Música, como também na sua articulação com as outras disciplinas (1997).

O nosso sistema educativo abarca o ensino da Música no 1º Ciclo. Inicialmente, de uma forma bastante irregular, uma vez que era arrogada de forma deficitária no currículo. Todavia, no ano lectivo de 2006/2007, pelo Despacho nº 12591/2006 (2º série) de 16 de Junho de 2006, o Ministério da Educação promove diversas Actividades de Enriquecimento Curricular no 1º Ciclo do Ensino Básico, o qual implica o ensino da Música. Salientamos, ainda, que em 2008 o Ministério da Educação emite o Despacho nº 14469/2008 que, não só regulamenta de forma mais veemente as Actividades de Enriquecimento Curricular, como, também, lhes confere um maior grau de fiabilidade, uma vez que lhes atribui um carácter normativo, com uma carga horária semanal definida (90 minutos) e estabelece requisitos específicos para a leccionação desta área.

Educação Musical e Animação Socioeducativa no 1º Ciclo no âmbito das Actividades de Enriquecimento Curricular, Helena Maria Portugal do Canto, Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação, Área de Especialização em Animação Sociocultural. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves 2010.

António Bernardo da Costa Cabral
António Bernardo da Costa Cabral
A roda como mandala

A roda como mandala

Benita Michahelles

A roda é um símbolo universal. A sua força consiste no fato de ser ela uma representação viva da Mandala.

“Enquanto figuras arquetípicas, as Mandalas são dadas com cada novo indivíduo que nasce e pertencem à existência inalienável do conjunto de propriedades que caracterizam uma espécie”.

Jung, 1977

Jung fez um estudo profundo sobre este símbolo. Para ele, a Mandala é a expressão geométrica do self.

“A palavra do sânscrito ‘Mandala’ significa círculo, roda no sentido geral. No campo de utilização da religião e da psicologia, ela refere-se a figuras circulares que podem ser desenhadas, pintadas, esculpidas ou dançadas (…). Como fenómeno psicológico elas aparecem espontaneamente em sonhos, em certas condições de conflito e na esquizofrenia.”

“O círculo estrutura ritualmente qualquer coisa que acontece na psique, fazendo dela uma imagem que acontece na própria totalidade.”

Jung

Ainda de acordo com Jung, no budismo tibetano, as Mandalas, num sentido geral, correspondem ao que lá se denomina “Yantra” ou seja: a um instrumento de culto que deve apoiar a meditação e a concentração, assim como auxiliar na realização de experiências interiores. Na alquimia, a junção de quatro elementos opostos é frequentemente representada por uma figura mandalar. Quando em séries de quadros, são frequentemente encontradas após condições de caos e desordem, conflito e medo.”(…) Elas expressam assim a ideia de refúgio seguro, de reconciliação interior e de totalidade (…)”

Relativamente à aparição desta figura entre os indivíduos modernos e à pesquisa da psicologia quanto ao seu sentido funcional, Jung também dá a sua palavra. Ele aponta para o facto de que, em geral ocorre que a Mandala surge em estados de dissociação psíquica ou de desorientação. Como por exemplo, entre crianças de 8 a 11 anos de idade cujos pais estão a separar-se, ou em casos de adultos os quais, em consequência da sua neurose e do tratamento mesmo, se encontram confrontados com a problemática contraditória da natureza humana, em estado de desorientação. Ou ainda em esquizofrénicos que estão com a sua visão do mundo abalada e confusa.

“Nestes casos, pode-se ver claramente como a ordem severa deste tipo de figura circular, compensa a desordem e a confusão psíquicas. Isto, porque existe um ponto central em torno do qual tudo se ordena, ou uma estrutura concêntrica da multiplicidade não organizada dos opostos e disparidades. Fica visível que se trata de uma tentativa de auto-cura da natureza, que corresponde não a um pensamento racional, mas sim a um impulso instintivo.” (ibid)

Jung fala a respeito da comprovação empírica do poder e do efeito terapêutico das Mandalas sobre os seus ‘feitores’. “(…) Já uma mera tentativa nesse sentido costuma ter um efeito curativo (…)”  O que, ainda segundo ele, é facilmente compreensível no que elas representam frequentemente “(…) tentativas bastante audaciosas da junção e reunião de opostos aparentemente incompatíveis e da religação – à primeira vista inconcebível – de partes separadas”. Por outro lado, ele chama a atenção para um aspeto fundamental na ocorrência deste fenómeno, que é a ‘espontaneidade’: “Nada se pode esperar de uma repetição artificial ou de uma imitação intencional deste tipo de figura.”

Além de Jung, diversas outras fontes também iluminam o estudo que aponta para o valor arquetípico deste símbolo e as suas diversas formas de se manifestar. Segundo Câmera Cascudo, a marcha descrevendo um círculo, é de alta expressão simbólica e participa, há milénios da liturgia popular de quase todo o mundo. Como exemplo, cita as procissões religiosas ao redor de uma praça, volteando capela ou igreja, as voltas à fogueira nas festas de S. João, as caminhadas circulares em torno do berço ou cama do enfermo no exorcismo das velhas rezadeiras às crianças doentes.

E, referindo-se especificamente às rodas dançadas:

“(…) A primeira dança humana, expressão religiosa instintiva, a oração inicial pelo ritmo deve ter sido em roda, bailando ao redor de um ídolo, Desde o paleolítico vivem os vestígios das pegadas em círculo em cavernas francesas e espanholas. O movimento seria simples e uniforme, possivelmente com o sacerdote no centro dirigindo o culto e animando o compasso (…)”

As Brincadeiras-de-roda como Mandalas

À luz destes acontecimentos ocorridos nos primórdios do nosso desenvolvimento filogenético, assim como das investigações de Jung no seu trabalho terapêutico, poderíamos buscar relações com as cantigas e brincadeiras-de-roda.

Traço a hipótese de que, por trás do momento espontâneo do encontro em que crianças se dão as mãos e se movimentam expressando vocalmente as canções já por muitos antes expressadas, estaria também havendo uma busca instintiva de uma harmonização pessoal e grupal. E de que, as brincadeiras-de-roda seriam um re-vivenciar de um ritual ancestral, em que o mito estaria representado rítmica-melódica e poeticamente, sempre novamente ressignificado, a cada vez que apropriado pelos participantes dos grupos de brincadeiras.

O dar-se as mãos possibilita um contacto, uma experimentação táctil do outro numa interação corporal “que promove a permuta de energias e ameniza a solidão” entre os participantes. Estes estão naquele momento, mesmo que inconscientemente “(…) mentalizando juntos o advento de um estado mandalar (…)” (Milleco, 1987)

Qual seria o significado deste “estado mandalar” destacado por Milleco em relação às brincadeiras-de-roda?

Jung afirma que as mandalas podem ser dançadas. Ora, se as mandalas, num sentido geral, “estruturam o que ocorre na psique”; “representam a junção de opostos aparentemente incompatíveis”; propiciam a “concentração e a meditação”; “expressam a ideia de refúgio seguro e de reconciliação interior”; “compensam a desordem e a confusão psíquicas”; estas características também se aplicam às rodas dançadas (e cantadas). Desta maneira, cada participante da roda, estaria compartilhando com os demais do estado proporcionado pela “mandala-viva” da qual ele próprio é parte integrante.

No caso das brincadeiras-de-roda, devemos destacar que estas se constituem por rodas com determinadas variações coreográficas e por canções específicas associadas a elas, onde figuram personagens e tramas. Milleco, analisou cuidadosamente várias brincadeiras. Segundo a sua leitura, ao ocuparem a posição de personagens do ritual lúdico, as crianças estariam representando diversos níveis do psiquismo. O próprio desenvolvimento da canção, com os passos e gestos que lhe são inerentes, representaria, por outro lado, a integração destes elementos.

Penso que, o aspecto musical das brincadeiras – as cantigas-de-roda – é essencial na sua caracterização como mandalas. Por um lado, pelas imagens em que os seus temas musicais propiciam e, por outro, pela própria intensidade do ato de cantar.

“O entoar de canções permite a fruição do prazer de uma ação compartilhada por todos, criando-se um clima de alegria e de despreocupação importante para a integração e para a coesão grupal,” afirma Fregtman (1989). Eu acrescentaria que o cantar auxilia não somente na integração grupal como na integração pessoal, ou seja, na religação de elementos separados no psiquismo de cada um.

“A experiência energética do cantar facilita a integração entre o fluxo da cabeça, dos órgãos internos do corpo, braços e pernas. Cantar ajuda ação, emoção e pensamento, facilitando o contacto direto com as sensações físicas, com os sentimentos e com a mais profunda sensação de ser o que se é.”

Chagas, 1977

Num contexto de Musicoterapia, acredito que, com a criação de um espaço propício e convidativo por parte do musicoterapeuta suscitando a cantar e ou o dançar em roda, possibilita-se o vir à tona de todos os aspetos que estão associados às Mandalas. Por outro lado, o musicoterapeuta precisa de estar atento, pois uma mera iniciativa de um paciente em direção a uma cantiga e ou brincadeira-de-roda provavelmente já se relaciona com a sua necessidade de viver este “estado mandalar”.

Excerto da monografia apresentada ao Curso de Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música sob a orientação de Marly Chagas.

A roda como mandala
Dança circular em Seattle
Conservatório Regional de Castelo Branco

Conservatório Regional de Castelo Branco

Vânia Moreira

O Conservatório Regional de Castelo Branco (CRCB) foi fundado em 1974, enquanto escola de ensino artístico, sob a direção de Maria do Carmo Gomes.

Vânia Moreira

Visto que no primeiro ano letivo, 1974/1975, ainda não estavam reunidas as condições para obter o alvará necessário, os alunos que frequentaram o CRCB nesse ano ficaram matriculados no Conservatório Nacional de Lisboa. Nesse ano inscreveram-se 160 alunos, cuja formação seria assegurada por dois professores.

No ano letivo seguinte, seria concedida ao Conservatório uma licença de lecionação à experiência e, em 1977, conseguiria a obtenção do alvará definitivo. Contando desde sempre com o apoio da Câmara Municipal de Castelo Branco, dos professores da instituição e da própria cidade, o CRCB pôde prosperar e alargar a sua ação a Proença-a-Nova e a Portalegre – sendo que, no caso de Portalegre, o CRCB estabeleceu-se e coordenou um polo que, ao fim de dois anos, serviria de ponto de partida para a criação de uma instituição própria na cidade e gerida pela mesma.

Para o ano letivo de 2013/2014, o Conservatório tem protocolos de articulação com os Agrupamentos de Escolas Afonso de Paiva, Cidade de Castelo Branco, Nuno Álvares, António Sena Faria de Vasconcelos, em Castelo Branco; com o Agrupamento de Escolas de Alcains e S. Vicente da Beira, em Alcains; e com os Municípios de Idanha-a-Nova e de Proença-a-Nova. A ação do Conservatório alargou-se a diversos polos, mas a sua sede mantém-se na zona histórica da cidade de Castelo Branco, no Largo da Sé. Foi aqui que a instituição nasceu, ocupando o edifício que anteriormente havia recebido o Tribunal.

Apesar da elevada deterioração do edifício e do escasso material existente – um piano emprestado pelo orfeão, carteiras de madeira provenientes de escolas primárias e dois quadros de ardósia – o Conservatório soube adaptar-se e persistir na sua ação e empenho, usufruindo hoje de umas instalações com excelente qualidade, resultantes da remodelação de que o edifício foi alvo na primeira década do século XXI.

Atualmente, o CRCB dispõe da utilização de dois edifícios – além do edifício original, a partir do ano letivo 2012/2013 o Conservatório teve permissão para utilizar também o antigo edifício dos correios, situado também no Largo da Sé.

Assim, neste momento, a instituição dispõe de 19 salas de aula – sendo cada uma identificada pelo nome de um compositor –, dois auditórios, sala de professores, sala de direção, secretaria, biblioteca, reprografia, bar e três conjuntos de instalações sanitárias.

No ano letivo 2013/2014, esta instituição foi frequentada por 373 alunos. (…)

A aprendizagem de um instrumento musical em contexto individual e em contexto de grupo, por Vânia Filipa Tavares Moreira – Mestrado em Ensino de Música – Instrumento e Música de conjunto – Orientadora Doutora Maria Luísa Faria de Sousa Cerqueira Correia Castilho, Coorientadora Especialista Catherine Strynckx. Instituto Politécnico de Castelo Branco, Escola Superior de Artes Aplicadas, janeiro de 2015. Excerto.

Leia AQUI toda a dissertação, se o desejar.

Conservatório Regional de Castelo Branco
Conservatório Regional de Castelo Branco
Guerra Junqueiro

Quatro leituras musicais do poema “Canção perdida” de Guerra Junqueiro

Ana Maria Liberal

Excerto de Quatro leituras musicais do poema “Canção perdida” de Guerra Junqueiro, por Ana Maria Liberal, Atas, Congresso Internacional “A Língua Portuguesa em Música” . Lisboa, Núcleo Caravelas, CESEM, FCSH, 2012, p. 20-27.

A obra poética de Guerra Junqueiro (1850-1923) foi objecto de tratamento musical por parte de vários compositores portugueses e brasileiros. Desde Gustavo Romanoff Salvini (1825-1894) a Fernando Valente (1952-), foram 23 os autores que musicaram o poeta de Freixo de Espada à Cinta, num total de 34 obras.

Ana Maria Liberal

O lied é o género musical que predomina, mas há também música sinfónica – Depois de uma leitura de Guerra Junqueiro. Fantasia para orquestra, de Luís de Freitas Branco – e de câmara – A Moleirinha para quinteto de sopros, de Berta Alves de Sousa.

A predilecção dos nossos criadores musicais pela obra do poeta transmontano pode ser explicada através das palavras de Henrique Manuel Pereira quando afirma que “há (…), música na poesia de Junqueiro, sendo essa uma das características mais relevantes e determinantes da sua majestosa linguagem, entre sarcástica, épica, lírica e religiosa”. A lista de poesias musicadas engloba nove livros ou opúsculos, com Os Simples, publicado em 1892, a ocupar a liderança.

Foram quatro os compositores portugueses que se debruçaram sobre a “Canção Perdida”, belíssimo poema de amor que integra esta colectânea: José Viana da Mota (1868-1948), António Tomás de Lima (1887-1950), António de Lima Fragoso (1897-1918) e Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Um horizonte temporal de cerca de um século implica, obviamente, uma diversidade de linguagens musicais. É esta pluralidade de discursos que esta comunicação se propõe abordar, através de uma análise comparativa das quatro versões da canção.

(…) cabe salientar que pluralidade e diversidade são substantivos que caracterizam as quatro versões da Canção Perdida que constituem a temática desta comunicação. Todavia, todos os compositores comungaram do propósito, plenamente conseguido, na minha opinião, de criar quatro obras com uma estética musical de carácter nacionalista.

Guerra Junqueiro
Guerra Junqueiro
Vítor Sousa

O Conservatório de Música do Porto

Vítor Sousa

A Escola Artística – Conservatório de Música do Porto (CMP) integra a rede pública de Ensino Artístico Especializado da Música (EAEM), sendo uma das sete escolas públicas no mesmo plano. Foi criado pela Câmara Municipal do Porto em 1917, tendo inicialmente como casa o Palacete dos Viscondes de Vilarinho de S. Romão.

Funcionou como escola municipal até 1972, ano em que passou para a tutela do Ministério da Educação Nacional.

Em 13 de Março de 1975, passou a usufruir das instalações do palacete Pinto Leite, também propriedade da Câmara Municipal. Em Setembro de 2008, impulsionado pelo Programa de Requalificação e Modernização das Escolas, mudou de instalações, passando a ocupar uma parte do antigo Liceu D. Manuel II (Escola Rodrigues de Freitas) e um edifício construído para o efeito, “onde se situam os auditórios, a biblioteca, salas de 1º Ciclo, estúdio de gravação e outros equipamentos de apoio, imprescindíveis a este tipo de ensino” (projeto educativo CMP, 2014, pág. 9).

Ao longo da existência do CMP pode observar-se um vasto leque de professores e antigos alunos, que se assumiram e assumem como importantes figuras nas variadas áreas da música portuguesa como composição, direção de orquestra, interpretes solistas, professores, entre outros. Também os conselhos diretivos desta instituição foram sofrendo alterações ao longo da sua existência, tendo sido presididos por um total de sete diretores.

Neste momento, o CMP é dirigido pelo Diretor António Moreira Jorge. (…)

O ensino artístico vocacional, tal como está estruturado neste momento, tem como objetivo principal a formação de músicos profissionais. Contudo, a realidade que se observa é que a maior parte dos alunos que frequentam o ensino especializado da música não tem como objetivo futuro seguir uma carreira profissional na área mas, sim, apenas aprender um instrumento musical como passatempo, ou como um melhoramento pessoal e social. Neste sentido, é vital que as instituições de ensino e os docentes reflitam e tenham a liberdade de adequar os programas curriculares, de modo a ir de encontro aos objetivos que dos alunos, que na maior parte dos casos não passa por um percurso musical profissional.

Exige-se uma reflexão de modo a que se vejam os interesses do aluno como ponto principal na relação entre Professor – Programa – Aluno. Tendo tido a oportunidade, ao longo da duração deste mestrado, de observar diferentes contextos educativos, foi-me permitido ver diferenças substanciais nas diferentes realidades – Publico, Profissional, Particular.

É justo concluir que, apesar de ter a convicção que todos dão o máximo em prol do melhor funcionamento dos respetivos cursos, é aceitável que os resultados não sejam os mesmos nos diferentes contextos educativos. Há uma diferença qualitativa entre os alunos e isso é, em parte, explicado pelas condições físicas que estão ao dispor mas, também, pelo tempo de lecionação a que os alunos têm direito nas instituições públicas, que é o dobro do tempo no Ensino Particular.

A implementação da utilização das tecnologias da informação como complemento ao estudo de violino por Vítor André Vidal Castro de Sousa, Mestrado em Ensino da Música, Porto: ESMAE 2016.

Leia AQUI o relatório completo.

Vítor Sousa
violinista Vítor Sousa