Canções com histórias
Canções com histórias
Letras
A grande nau Catrineta
[ Cantiga de levantar ferro ]
A grande nau Catrineta
Tem os seus mastros de pinho.
Ai lé, ai lé,
Marujinho, bate o pé.
O ladrão do despenseiro
Furtou a ração do vinho.
Ai lé, ai lé,
Marinheiro, vira à ré.
Antes de caçar as gáveas,
Põe-se o ferro sempre a pique.
Ai lé, ai lé,
Cada qual mostra o que é.
Para a nau ficar a nado
Abrem-se as portas ao dique.
Ai lé, ai lé,
Chega tudo cá p’rá ré.
Quando as gáveas vão aos rizes,
A maruja talha o lais.
Ai lé, ai lé,
Quem é moiro não tem fé.
Sobem dois a impunir,
A rizar sobem os mais.
Ai lé, ai lé,
Tu com tu, e cré com cré.
Quando o barco faz cabeça,
Ala braços, iça a giba.
Ai lé, ai lé,
Vai de longo que é maré.
Quando ele arranca o ferro,
Vira então de leva arriba.
Ai lé, ai lé,
Vira mar e San José.
E de usança, ao quarto d’alva,
Matar na coberta o bicho.
Ai lé, ai lé,
Deixa a maca, põe a pé.
Antes da baldeação,
Varre o moço, apanha o lixo.
Ai lé, ai lé,
Peito à barra, finca o pé.
Todo o barco que anda a corso
Caça outro que se veja.
Ai lé, ai lé,
Muito cafre tem Guiné.
E todo o moço do convés
Caça a isca na bandeja.
Ai lé, ai lé,
Mazagão não é Salé.
Letra: Autor desconhecido (possivelmente do séc. XVII)
Música: Francisco Pimenta
Intérprete: O Baú com Sebastião Antunes (in CD “Achega-te”, O Baú, 2012)
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A história que a gente vos quer contar
[ Travessa do Poço dos Negros ]
A história que a gente vos quer contar
Aconteceu um dia em Lisboa
Aonde o tempo corre devagar
Chegámos era cedo à ribeira
Ainda todo o peixe respirava
E a outra carga aos poucos definhava
O gemido do cordame das amarras
Juntava-se ao lamento dos porões
E o que nos chega fora são canções
A gente viu sair uma outra gente que dançava
Um estranho bailado em tom dolente
Marcado pelo bater das correntes
Anda linda
Vamos p’ra ver se é verdade
Que lá se pode ouvir cantar
Anda linda
Vamos ao poço dos negros
P’ra ver quem pode lá morar
Mais tarde fomos ter àquela parte da cidade
Que é mais profunda do que a maré baixa
E a Lua só visita por vaidade
De novo a estranha moda se dançava
Agora com suspiros de saudade
Agora com bater de corações
Anda linda
Vamos p’ra ver se é verdade
Que lá se pode ouvir cantar
Anda linda
Vamos ao poço dos negros
P’ra ver quem pode lá morar
Batiam com as barrigas e roçavam-se nas coxas
Os corpos já dourados de suor
E as bocas já vermelhas dos amores
Quisemos nós saber qual era o nome desta moda
Respondeu-nos um velho já mirrado:
Lundum, mas se quiserem chamem Fado
Anda linda
Vamos p’ra ver se é verdade
Que lá se pode ouvir cantar
Anda linda
Vamos ao poço dos negros
P’ra ver quem pode lá morar
Letra: Luís Represas
Música: João Gil
Intérprete: Trovante (in “Trovante 84”, EMI-VC, 1984; reed. 1988)
O projeto Reciclanda promove a reutilização, reciclagem e sustentabilidade desde idade precoce.
Com música, instrumentos reutilizados, poesia e literaturas de tradição oral, contribui para o desenvolvimento global da criança e o bem estar dos idosos. Faz ACD e ALD (formações de curta e longa duração), realiza oficinas de música durante o ano letivo e dinamiza atividades em colónias de férias. Municípios, Escolas, Agrupamentos, Colégios, Festivais, Bibliotecas, CERCI, Centros de Formação, Misericórdias, Centros de Relação Comunitária, podem contratar serviços Reciclanda.
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Ai apertem os cintos
[ Corpo Inteiro ]
Ai apertem os cintos, vamos começar
Vou contar uma história de desencantar
Eram quatro donzelas a olhar o Sol
Cada qual em busca do amor
Procurando saber o que arde sem se ver
Se é a dor ou se é o prazer
A primeira caiu num sono fatal
À espera que um sapo a salvasse do mal
A segunda abalou nas ondas do mar
Nunca mais veio p’ra contar
A terceira, devota subiu aos céus
Uma voz que fugiu do lugar
Vou contar uma história de desencantar
Eram quatro donzelas presas pelo olhar
Já três delas se foram por causa do amor
Como carne que estilhaçou
Se o que arde não cura e o desejo é fartura
Só a quarta é que se salvou
Vou contar uma história de desencantar
Vi a quarta donzela que olhava p’ra o mar
De improviso cantava para o último sol
A mais doce feitiçaria
Quatro flores cortadas e ela não murchou
E das febres fez alegria
Letra: Miguel Cardina
Música: Pedro Damasceno e Julieta Silva
Arranjo: Diabo a Sete e Julieta Silva
Intérprete: Diabo a Sete (in CD “Figura de Gente”, Sons Vadios, 2016)
Beatriz foi à praça
[ Beatriz e João ]
Beatriz foi à praça para comprar o pão,
Pela manhã se arregaça, para a vida vencer
E, na cama deitado de ressaca, o João
Chegou embriagado, deitou tudo a perder
Beatriz sai porta fora, o João fica a chorar
Diz que se vai embora se isto continuar
Mulher feliz namora e não quer chorar
Não deixes ir embora quem te quer namorar!
O João volta a casa e promete mudar
Beatriz desconfia, tentando acreditar
Dedicou-se à mulher, entregou-se a valer
Mas ela sabe o que quer e não se quer perder
João sai porta fora, Beatriz fica a chorar
Diz que se vai embora se isto continuar
Homem feliz namora e não quer chorar
Não deixes ir embora quem te quer namorar!
Beatriz chama o João, com tanto p’ra discutir
Quis ouvir olhando nos olhos o João dizendo que não vai repetir
O João prometeu, pediu-lhe para acreditar
Beatriz respondeu: “Tudo bem, mas vou-me embora se isto continuar…”
Mulher feliz namora e não quer chorar
Não deixes ir embora quem te quer namorar!
Homem feliz namora e não quer chorar
Não deixes ir embora quem te quer namorar!
Letra e música: Luís Pucarinho
Intérprete: Luís Pucarinho* (in CD “SaiArodada”, Luís Pucarinho/Alain Vachier Music Editions, 2018)
De um trapo velho
[ Cinco Vidas ]
De um trapo velho fiz
cinco saias que querem rodar
Num pano branco cosi
cinco bolsos para te levar
De saco às costas parti
sem saber se ia voltar
Cabeça erguida
e olhos de quem quer olhar
Pus-te na minha mão
cinco dedos para me escapar
O mundo deu-me então
cinco vidas para me curar
E lá do bolso de trás
perguntaste se ainda podias falar
Cabeça erguida, respondi:
tanto me faz
Pela estrada andei
quantas voltas eu dei
sem encontrar
um motivo para voltar
De um trapo velho fiz
cinco saias que querem rodar
Num pano branco cosi
cinco bolsos para te levar
E lá do bolso de trás
perguntaste quando ia parar
Cabeça erguida, respondi:
até ter paz
Pela estrada andei
quantas voltas eu dei
sem encontrar
um motivo para voltar
tanto me faz
até ter paz
Letra: Eugénia Ávila Ramos
Música: Tiago Oliveira
Intérprete: Rua da Lua* (in CD “Rua da Lua”, Rua da Lua, 2016)
Deram-me uma burra
[ Cantiga da Burra ]
Deram-me uma burra que era mansa
Que era brava
Toda bem-parecida
Mas a burra não andava
A burra não andava
Nem p’rá frente nem p’ra trás
Muito eu lhe ralhava
Mas eu não era capaz
Eu não era capaz de fazer a burra andar
Passava do meio-dia e eu a desesperar
E eu a desesperar
Ai que desespero o meu
Falei-lhe num burrico
E a burra até correu
Deram-me uma burra que era mansa
Que era brava
Toda bem-parecida
Mas a burra não andava
A burra não andava
Nem p’rá frente nem p’ra trás
Muito eu lhe ralhava
Mas eu não era capaz
Eu não era capaz de fazer a burra andar
Passava do meio-dia e eu a desesperar
E eu a desesperar
Ai que desespero o meu
Falei-lhe num burrico
E a burra até correu
Letra e música: Sebastião Antunes, Manuel Meirinhos, Paulo Meirinhos, Alexandre Meirinhos e Paulo Preto
Arranjo: Luís Peixoto
Intérprete: Sebastião Antunes e a Quadrilha com Galandum Galundaina (in CD “Com Um Abraço”, Vachier & Associados, 2012)
Deu-se agora
[ Casório Divertido ]
Deu-se agora, há pouco tempo,
Um casório divertido:
A noiva mais que danada,
Lá pela noite adiantada,
Arrancou o nariz ao marido.
É o que acontece aos velhos
Que procuram mocidade…
Quando se despiu deitou
E o nariz lhe arrancou
Por não fazer a vontade.
Procuraram-lhe as vizinhas:
— «Que fizeste ao teu Viriato?»
— «Dormir com homem e ter frio,
Dormir com homem e ter frio,
Vale mais dormir com gato!»
Foi consultar o doutor,
Disse-lhe que não tinha cura;
E agora, por qualquer lado,
A chorar o desgraçado,
Faz uma triste figura.
Letra e música: Tradicional (Aldeia do Bispo, Guarda, Beira Alta)
Informante: Júlia Costa Fonseca
Recolha: Américo Rodrigues
Intérpretes: Ariel Ninas & César Prata (in CD “Cantos de Cego da Galiza e Portugal”, aCentral Folque, 2016)
Ele vinha sem muita conversa
[ Minha História ]
Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
Minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
Ele assim como veio partiu não se sabe p’ra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu o único velho vestido cada dia mais curto
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré
Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor
Minha história é esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus
Letra: Chico Buarque, a partir da letra original de Paola Pallotino para a canção “4 marzo 1943”
Música: Lucio Dala
Intérprete: Pensão Flor
Versão discográfica de Pensão Flor (in CD “O Caso da Pensão Flor”, Pensão Flor/Brandit Music, 2013)
Primeira versão de Chico Buarque (in LP “Construção”, Philips, 1971, reed. Philips, 1988, Universal Music, 2017)
Versão original: Lucio Dala (in LP “Storie di Casa Mia”, RCA Italiana, 1971, reed. RCA/BMG Ricordi, 1996)
Estava difícil combinar um café
[ Sabes? Eu Também ]
Estava difícil combinar um café, mas desta vez lá foi
Talvez possamos falar do que já lá vai, que às vezes ainda dói
Da coragem esquecida que já se perdeu
Quem deixou por dizer: foste tu ou fui eu?
Da lembrança guardada num canto qualquer
Da palavra apagada por não se entender
E dizer-te num gesto mais enternecido:
“Sabes? Eu também… ando um bocado perdido.”
Vou preparar-te um jantar. Com certeza, vou ser original
E vou escolher-te um bom vinho. Tu sabes, nunca me saí mal
E falar-te das voltas que a vida trocou
Das verdades que o tempo já entrelaçou
Entre sonhos queimados lançados ao vento
Entre a cor de um sorriso e o tom de um lamento
E dizer-te de um sopro empurrado pela sorte:
“Sabes? Eu também… ando um bocado sem norte.”
Olha, não fiz sobremesa. Deixa lá, fica p’ra a outra vez
Vamos deixar mais um copo ao falar dos quês e dos porquês
Uma história que nos apeteça lembrar
Um episódio que nunca nos deu p’ra contar
Um segredo guardado p’lo cair do pano
Um encontro marcado no cais de um engano
E dizer-te na hora em que a voz fraquejar:
“Sabes? Eu também… me apetece chorar.”
E vou chamar um táxi. É hora p’ra te levar a casa
Era suposto um de nós nesta altura ficar com a alma em brasa
Mas a vida é assim, não aconteceu
Pouco importa dizer: foste tu ou fui eu?
O que importa é o abraço que estava por dar
Há-de haver uma próxima e mais um jantar
E dizer-te a sorrir: “Já passa das três,
Dorme bem! E, quem sabe?, um dia talvez…”
Um dia talvez…
Um dia talvez…
Um dia talvez…
Letra e música: Sebastião Antunes
Arranjo: Miguel Veras
Intérprete: Sebastião Antunes (in CD “Singular”, Sebastião Antunes & Quadrilha/Alain Vachier Music Editions, 2017)
Versão original: Sebastião Antunes (in CD “Cá Dentro”, Vachier & Associados, 2009)
Estavam todas juntas
[ Ronda das Mafarricas ]
Estavam todas juntas
Quatrocentas bruxas
À espera, à espera
À espera da lua cheia
Estavam todas juntas
Veio um chibo velho
Dançar no adro
Alguém morreu
Arlindo coveiro
Com a tua marreca
Leva-me primeiro
Para a cova aberta
Arlindo, Arlindo
Bailador das fadas
Vai ao pé coxinho
Cava-me a morada
Arlindo coveiro
Cava-me a morada
Fecha-me o jazigo
Quero campa rasa
Arlindo, Arlindo
Bailador das fadas
Vai ao pé coxinho
Cava-me a morada
Letra: António Quadros (pintor)
Música: José Afonso
Intérprete: José Afonso (in “Cantigas do Maio”, Orfeu, 1971, reed. Movieplay, 1987)
Eu que me comovo
[ Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto ]
Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: “fiz serão”
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Letra: António Lobo Antunes
Música: Vitorino
Intérprete: Vitorino (in CD “Eu Que me Comovo por Tudo e por Nada”, EMI-VC, 1992)
Façam roda
[ Conto do Bicho Papão ]
Façam roda a ver quem vai ao meio
cada um com seu par, tira a pedrinha
ciruma, acabei eu primeiro
ficas tu a tapar, não dá madrinha
já ninguém te pergunta quantos queres
já não ouves ninguém contar: um, dó, li, tá
afinal qual é o dedo que preferes
quem está livre, livre está
Ninguém fala do homem do saco
ninguém espreita por baixo do colchão
já ninguém acredita na côca
nem no bicho papão
Salta à corda, joga à barra do lenço
adivinha o que eu penso, dá a partida
falua, quem acerta na malha
danada da canalha está fugida
salta ao eixo a fugir à cabra cega
olha o meu pião, mas eu não to dou não
onde é que anda a viuvinha que não chega?
E a sardinha a dar na mão
Ninguém fala do homem do saco
ninguém espreita por baixo do colchão
já ninguém acredita na côca
nem no bicho papão
Ai se eu pudesse habitar
um jogo electrónico
voltava a ser falado,
voltava a assustar
imaginem lá qual não era a sensação
de uma consola
com o jogo do regresso do papão
Ninguém fala do homem do saco
ninguém espreita por baixo do colchão
já ninguém acredita na côca
nem no bicho papão
Letra e música: Sebastião Antunes
Intérprete: Quadrilha (in CD “Entre Luas”, Ovação, 1997)
Não sei se tinha chegado
[ Rapariga da Estação ]
Não sei se tinha chegado,
Se porventura partia…
Mas tinha um lugar sentado
E reparei no que lia.
Cabelos negros caídos
– Longos, lisos, deprimidos –
Escondem o decote ousado
Do seu cinzento vestido.
Não consegui dizer nada,
Preferi que fosse assim:
Antes só que acompanhada
Mesmo que seja por mim.
Condição de quem resiste:
Abandono, solidão…
Tão inspiradora e triste
Rapariga da estação.
Não consegui dizer nada,
Preferi que fosse assim:
Antes só que acompanhada
Mesmo que seja por mim.
Condição de quem resiste:
Abandono, solidão…
Tão inspiradora e triste
Rapariga da estação.
Letra e música: Duarte
Intérprete: Duarte* (in CD “Só a Cantar”, Duarte/Alain Vachier Music Editions, 2018)
Ia eu pelo concelho de Caminha
[ Coro das Velhas ]
Ia eu pelo concelho de Caminha
quando vi sentada ao sol uma velhinha
curioso, uma conversa entabulei
como se diz nuns romances que eu cá sei
Chamo-me Adozinha, disse, e tenho já
os meus 84 anos, feitos há
mês e meio, se a memória não me falha
mas inda vou durar uns anos, Deus me valha
Com esta da austeridade, meu senhor
nem sequer dá para ir desta pra melhor
os funerais estão por um preço do outro mundo
dá pra desistir de ser um moribundo
Rabugenta, eu? Não senhor
eu hei-de ir desta pra melhor
mas falo pelos que eu cá deixo
não é por mim que eu me queixo
não é por mim que eu me queixo
Ó Felisbela, ó Felismina
ó Adelaide, ó Amelinha
ó Maria Berta, ó Zulmirinha
vamos cantar o coro das velhas?
Vamos!
Cá se vai andando
co’a cabeça entre as orelhas
Não sei ler nem escrever mas não me ralo
alguns há que até a caneta lhes faz calo
é só assinar despachos e decretos
p’ra nos dar a ler a nós, analfabetos
E saúde tenho p’ra dar e vender
não preciso de um ministro para ter
tudo o que ele anda a ver se me pode dar
pode ir ele para o hospital em meu lugar
E quanto a apertar cinto, sinto muito
filosofem os que sabem lá do assunto
mas com esta cinturinha tão delgada
inda posso ser de muitos namorada
Rabugenta, eu? Não senhor
eu hei-de ir desta pra melhor
mas falo pelos que eu cá deixo
não é por mim que eu me queixo
não é por mim que eu me queixo
Ó Felisbela, ó Felismina
ó Adelaide, ó Amelinha
ó Maria Berta, ó Zulmirinha
vamos cantar o coro das velhas?
Vamos!
Cá se vai andando
co’a cabeça entre as orelhas
E se a morte mafarrica, mesmo assim
me apartar das outras velhas, logo a mim
digo ao Diabo, “não te temo, ó camafeu
conheci piores infernos do que o teu”
Rabugenta, eu? Não senhor
eu hei-de ir desta pra melhor
mas falo pelos que eu cá deixo
não é por mim que eu me queixo
não é por mim que eu me queixo
Ó Felisbela, ó Felismina
ó Adelaide, ó Amelinha
ó Maria Berta, ó Zulmirinha
vamos cantar o coro das velhas?
Vamos!
Cá se vai andando
co’a cabeça entre as orelhas
Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho (in “Salão de Festas”, Philips/Polygram, 1984; “Era Uma Vez Um Rapaz”, Philips/Polygram, 1985; “Noites Passadas: O Melhor de Sérgio Godinho (ao vivo)”, EMI-VC, 1995)
No centro da Avenida
[ Teresa Torga ]
No centro da Avenida,
No cruzamento da rua,
Às quatro em ponto, perdida
Dançava uma mulher nua.
A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la,
Mas surge António Capela
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la.
Mulher na democracia
Não é biombo de sala.
Dizem que se chama Teresa,
Seu nome é Teresa Torga;
Muda o pick-up em Benfica
E atura a malta da borga.
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela;
Agora é modelo à força
Que o diga António Capela.
T’resa Torga, T’resa Torga
Vencida numa fornalha!
Não há bandeira sem luta,
Não há luta sem batalha!
T’resa Torga, T’resa Torga
Vencida numa fornalha!
Não há bandeira sem luta,
Não há luta sem batalha!
Letra e música: José Afonso
Intérprete: Ana Laíns
Versão discográfica de Ana Laíns (in CD “Portucalis”, Ana Laíns/Seven Muses, 2017)
Versão original: José Afonso (in LP “Com as Minhas Tamanquinhas”, Orfeu, 1976, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art’Orfeu Media, 2012)
No mercado da Ribeira
[ O Namorico da Rita ]
No mercado da Ribeira
há um romance de amor
entre a Rita que é peixeira
e o Chico que é pescador
Sabem todos os que lá vão
que a Rita gosta do Chico
só a mãe dela é que não
consente no namorico
Quando ele passa por ela
ela sorri descarada
porém, o Chico à cautela
não dá trela nem diz nada
Que a mãe dela quando calha
ao ver que o Chico se abeira
por dá cá aquela palha
faz tremer toda a Ribeira
Namoram de manhãzinha
e da forma mais diversa
dois caixotes de sardinha
dão dois dedos de conversa
E há quem diga à boca cheia
que depois de tanta fita
o Chico de volta e meia
prega dois beijos na Rita
Quando ele passa por ela
ela sorri descarada
porém o Chico à cautela
não dá trela nem diz nada
Que a mãe dela quando calha
ao ver que o Chico se abeira
por dá cá aquela palha
faz tremer toda a Ribeira
Letra: Artur Ribeiro
Música: António Mestre
Intérprete: Amália Rodrigues (1946; 1958) (in CD “Fado Amália”, Movieplay, 1998)
No Sábado eu fui
[ O café da Sãozinha ]
No Sábado eu fui
beber o meu fino
ali ao café da Sãozinha
e lá a conversa por mais quieta
chega sempre à cozinha
O prato do dia
junto trazia o caso de uma senhora
Que disse ter visto a Zaida
sair de mão dada
com o Zé do Candal
E o morcão do homem dela
de barba à janela
A ler o jornal
E por entre tintos e brancos
Bagaços sandes de presunto
Como àgua a correr
de mesa pra mesa rodava o assunto
Sem se fazer caso
era vê-lo crescer
O irmão do barbudo
até então mudo
deixa sair uma posta
que a gaja é uma sostra
não faz nenhum
e sabe bem do que gosta
O Rui dos Guindais
que conhece os pais
chegou-se mais ao balcão
E de mão em concha confessa
que ele é uma peça
e não tem posição
que estoura o guito no casino
e em casa o menino
alimenta-se a pão
E por entre tintos e brancos
Bagaços sandes de presunto
Como água a correr
de mesa pra mesa
rodava o assunto
Sem se fazer caso
era vê-lo crescer
O homem da São
conhece a canção
e tira da manga a manilha
saca da raquete
e atira o filete
prós ouvidos da filha
eu sempre te disse
desta família
não há um que se aproveite
esquece o Candal ó Tininhas
e não queres ver
a madeira a queimar
se um anda perdido no jogo
o outro há de ter fogo
para a gente apagar
E por entre tintos e brancos
Bagaços sandes de presunto
Como água a correr
de mesa pra mesa
rodava o assunto
Sem se fazer caso
era vê-lo crescer
O Gusto do talho
pai da Zaidinha
chega e pede um cimbalino
E o Tó do café
faz conversa a ré
e encosta o pente fino
A São que sabia que na cantoria
não tinha sido a primeira
falou afiando as facas
O que há mais é vacas
E bois a pastar
O António estava como a cal
implorando a Jesus
para a São se calar
E por entre tintos e brancos
Bagaços sandes de presunto
Como água a correr
de mesa p’ra mesa
rodava o assunto
Sem se fazer caso
era vê-lo crescer
Letra: Manel Cruz
Música: Gileno Santana
Voz: Vitorino Salomé
Nem Sequer Dei por Isso
Pelo fim da tarde tu sais do emprego
E eu não sei porque é que aqui vim parar
É assim um desassossego
Tento ir sempre onde possas estar
Por sorte tu até sorris
E nem sequer me vens com muitos ‘porquês’
E dizes com um certo ar feliz:
“Com que então, por aqui outra vez?”
Num parque ao domingo
P’lo meio da cidade
Ou num café ao entardecer
Será que é mentira?
Será que é verdade?
Mas o que é que me está acontecer?
Já sei! Não há explicação
A cabeça está num reboliço
Se calhar apaixonei-me por ti
E nem sequer dei por isso
Ao virar da esquina, em qualquer transporte
Acabamos sempre por nos cruzar
E eu acho um caso de sorte
Cada vez que te posso encontrar
Está-me a correr bem, já ganhei o dia
Só porque me dissestes um “olá!”
E gosto da tua ironia
Se perguntas mais uma vez: “Por cá?”
Mensagem trocada, gesto embaraçado
Lá vou eu outra vez a planar
Desculpa, desculpa! Foi número errado
Mas ficamos uma hora a falar
Já sei! Não há explicação
A cabeça está num reboliço
Se calhar apaixonei-me por ti
E nem sequer dei por isso
Tanto melhor quando não se espera
E era bom que fosse como imaginei
Já sei! Não há explicação
A cabeça está num reboliço
Se calhar apaixonei-me por ti
E nem sequer dei por isso
Já sei! Não há explicação
A cabeça está num reboliço
Se calhar apaixonei-me por ti
E nem sequer dei por isso
Letra e música: Sebastião Antunes
Intérprete: Sebastião Antunes & Quadrilha (in CD “Perguntei ao Tempo”, Sebastião Antunes/Alain Vachier Music Editions, 2019)
P’lo artigo cento e tal
[ Fado Jurídico-Criminal ]
P’lo artigo cento e tal
Da regra dos bons costumes,
A maçã do senhor Nunes
É um bem celestial.
Estão a postos os jurados,
Numa sala as testemunhas;
O arguido rói as unhas,
Os juízes descansados.
«Não fui eu, foi a Serpente!
Não sei mais o que lhes diga!»
«Isso é história muito antiga
Contada por toda a gente».
«Comi por ter muita fome»,
Suplicou o acusado,
«Sou órfão de pai e mãe
E estou desempregado.»
«Quantos anos, p’ra que constem?»,
Perguntou o presidente;
«Oitenta feitos ontem»,
O meirinho diligente.
«O senhor não tem vergonha
De ter fome àquela hora?
Mas que vício ou que peçonha
O não deixou vir embora?»
«Já me custa muito a andar
E o que eu quero já me esquece…
Fui vítima de maus tratos
E não tinha GPS!»
«Não pense que nos engana,
É suprema esta questão:
A maçã que aqui se trata
É a Civilização!
E que sorte tem o senhor
Demandado nesta liça,
Que tem pago defensor,
Que a tremer pediu justiça.
«Vai o réu, pois, condenado
À pena mais capital!»
Disse o último jurado:
«Esconjurado está o mal!»
Tudo está no seu lugar:
A maçã dos bons costumes,
A árvore que é do Nunes,
Os polícias a acenar.
O arguido p’rá cadeia,
A cadeia a transbordar;
O meirinho p’ró IKEA,
Os juízes a jantar.
O meirinho p’ró IKEA,
Os juízes a jantar.
Letra: João Gigante-Ferreira
Música: André Teixeira
Intérprete: Helena Sarmento
Versão original: Helena Sarmento (in CD “Lonjura”, Helena Sarmento, 2018)
Quando entrei no restaurante
Quando entrei no restaurante
Que muitas vezes frequento
Testemunhei sem querer
O que em seguida comento
Estava à mesa uma família
Todos muito bem vestidos
Quando veio o empregado
P’ra recolher os pedidos
Notou-se um amor profundo
Bonito de apreciar
Mostrava-se ali ao mundo
Uma família exemplar
A decisão foi veloz
O menu nem foi olhado
Duas pizzas e um hamburguer
E foi o caso encerrado
E sem mais tempo perder
Os adultos e o fedelho
Com enorme agilidade
Sacaram do aparelho
Nota-se um amor profundo
Não há nada p’ra falar
Cada qual está no seu mundo
É uma família exemplar
O pai no seu telemóvel
Vê novidades da bola
E o filho entusiasmado
Mata zombies na consola
A mãe no motor de busca
Procura com precisão
A novelinha patusca
Que vai curtir ao serão
Nota-se um amor profundo
Que há harmonia no lar
Cada qual está no seu mundo
É uma família exemplar
No afã nos polegares
Num repasto a bom teclar
Nem uma simples palavra
Lograram articular
Por fim a pensar fiquei
Sem deixar de me afligir
Que raio de sociedade
Estamos nós a construir?
Notou-se um amor profundo
Que há-de frutificar
Com cada um no seu mundo
Temos um mundo exemplar
Aníbal Raposo, Forum Elos – Diálogos, 25 de junho de 2021
“(Acabado de fazer. Vou musicar)”
Uma velha, muito velha
[ Diabo da Velha ]
Uma velha, muito velha,
Veio aqui à minha aldeia
Com um saco pelas costas
Para fazer uma venda;
E o povo lá pedia…
Mas comprava o que não queria.
Foi para o largo apregoar:
«– Quem quer, quem quer?
Quem quer vir cá comprar
Belas coisas que aqui trago
Neste saco abençoado?
Venham que eu vendo barato!»
Fui lá ver o que ela tinha,
Queria eu uma sardinha;
Disse-me ela que não tinha
Mas que antes me vendia
Uma tampa de panela,
Ai o diabo da velha!
«– Oiça lá, ó menina,
P’ra que quer uma sardinha
Que até traz uma espinha
Que lhe pode fazer mal?
Antes disso leve a tampa
Que foi de nobre panela!
Pode confiar na velha,
Faço preço especial!»
Fui comprar eu a tampa:
Para que serve sem panela?!
Fui enganada, que tola!,
Pelo diabo da velha.
Uma velha, muito velha,
Veio aqui à minha aldeia
Com um saco pelas costas
Para fazer uma venda;
E o povo lá pedia…
Mas comprava o que não queria.
Foi para o largo apregoar:
«– Quem quer, quem quer?
Quem quer vir cá comprar
Belas coisas que aqui trago
Neste saco abençoado?
Venham que eu vendo barato!»
Voltei eu àquela venda:
Desta vez não caio, não!
Queria eu uma saia
Mas fez ela promoção:
Comprei quatro colchões,
Ai que bela ocasião!
«– Oiça lá, ó menina,
P’ra que quer uma saia
Que lhe dá ventos debaixo?
Ainda fica constipada…
Pela cara está cansada,
Deve andar a dormir mal…
Precisa de um colchão novo:
Vendo quatro ao preço de um.»
Fui comprar que era barato,
Lá caí eu na esparrela:
Vivo só, bastava-me um…
Fui enganada pela velha!
Uma velha, muito velha,
Veio aqui à minha aldeia
Com um saco pelas costas
Para fazer uma venda;
E o povo lá pedia…
Mas comprava o que não queria.
Foi para o largo apregoar:
«– Quem quer, quem quer?
Quem quer vir cá comprar
Belas coisas que aqui trago
Neste saco abençoado?
Venham que eu vendo barato!»
Eu também fui à venda,
Queria eu um serrote;
Vendeu-me ela um cavalo,
Sem saber andar a trote…
Ai o diabo da velha
E a minha triste sorte!
«– Oiça lá, belo moço,
P’ra que quer um serrote
Que sem dentes afiados
Não fazem nem um corte?!
Antes disso, um cavalo
Que sem dentes também corre
P’ra chamar a donzela
Que por certo trará sorte!»
Fui comprar aquele cavalo:
Para que serve sem a sela?!
Ainda nem uma donzela…
Fui enganado pela velha!
Uma velha, muito velha,
Veio aqui à minha aldeia
Com um saco pelas costas
Para fazer uma venda;
E o povo lá pedia…
Mas comprava o que não queria.
Letra e música: Carlos Norton
Intérprete: OrBlua (in Livro/CD “Retratos Cinéticos”, Fungo Azul/Ocarina, 2015)
Vivia num mundo próprio
[ O Músico Que Perdeu os Sapatos ]
Vivia num mundo próprio
onde não entra quem quer;
E se estava ou não sóbrio?
Se era homem ou mulher?
Não tinha que ser assim:
explicar porque aqui vim.
Musica è forma di vita
senza forma stabilita,
senza nessuno che decide
che non sai mai dire no,
senza nessuno che decide
che non sai mai dire no.
De andar sempre à procura,
há quem lhe decida a vida,
que esta coisa de Cultura
já de banal é esquecida.
E se chega a vida dura,
logo parte à despedida.
Lo spettacolo era un viaggio
e una bela fattoria,
naturale era il paesaggio
bela gente finta allegria
una nuvola de estate
tutto quanto poi bagnò.
Sapatos muito molhados
não dá jeito a carregar;
O calor dá pés descalços,
logo os venho aqui buscar.
E não estavam lá, partiram:
e nunca mais já se viram.
Si può perdere il controllo,
anche con la leggerezza,
si può perdere le scarpe
con una certa timidezza.
Ma musicista non ha età
mai perde la dignità.
Perso la notte, perso il dia,
Perso le scarpe e l’allegria.
Perso la notte, perso il dia,
Perso le scarpe e l’allegria.
Perdeu a noite, perdeu o dia,
Perdeu os sapatos e a alegria.
Perdeu a noite, perdeu o dia,
Perdeu os sapatos e a alegria.
Letra: José Barros
Música: José Barros e Mimmo Epifani
Intérpretes: José Barros & Mimmo Epifani*
Versão original: José Barros & Mimmo Epifani (in CD “Mar da Lua”, José Barros/Tradisom, 2015)