A roda como mandala
A roda como mandala
Benita Michahelles
A roda é um símbolo universal. A sua força consiste no fato de ser ela uma representação viva da Mandala.
“Enquanto figuras arquetípicas, as Mandalas são dadas com cada novo indivíduo que nasce e pertencem à existência inalienável do conjunto de propriedades que caracterizam uma espécie”.
Jung, 1977
Jung fez um estudo profundo sobre este símbolo. Para ele, a Mandala é a expressão geométrica do self.
“A palavra do sânscrito ‘Mandala’ significa círculo, roda no sentido geral. No campo de utilização da religião e da psicologia, ela refere-se a figuras circulares que podem ser desenhadas, pintadas, esculpidas ou dançadas (…). Como fenómeno psicológico elas aparecem espontaneamente em sonhos, em certas condições de conflito e na esquizofrenia.”
“O círculo estrutura ritualmente qualquer coisa que acontece na psique, fazendo dela uma imagem que acontece na própria totalidade.”
Jung
Ainda de acordo com Jung, no budismo tibetano, as Mandalas, num sentido geral, correspondem ao que lá se denomina “Yantra” ou seja: a um instrumento de culto que deve apoiar a meditação e a concentração, assim como auxiliar na realização de experiências interiores. Na alquimia, a junção de quatro elementos opostos é frequentemente representada por uma figura mandalar. Quando em séries de quadros, são frequentemente encontradas após condições de caos e desordem, conflito e medo.”(…) Elas expressam assim a ideia de refúgio seguro, de reconciliação interior e de totalidade (…)”
Relativamente à aparição desta figura entre os indivíduos modernos e à pesquisa da psicologia quanto ao seu sentido funcional, Jung também dá a sua palavra. Ele aponta para o facto de que, em geral ocorre que a Mandala surge em estados de dissociação psíquica ou de desorientação. Como por exemplo, entre crianças de 8 a 11 anos de idade cujos pais estão a separar-se, ou em casos de adultos os quais, em consequência da sua neurose e do tratamento mesmo, se encontram confrontados com a problemática contraditória da natureza humana, em estado de desorientação. Ou ainda em esquizofrénicos que estão com a sua visão do mundo abalada e confusa.
“Nestes casos, pode-se ver claramente como a ordem severa deste tipo de figura circular, compensa a desordem e a confusão psíquicas. Isto, porque existe um ponto central em torno do qual tudo se ordena, ou uma estrutura concêntrica da multiplicidade não organizada dos opostos e disparidades. Fica visível que se trata de uma tentativa de auto-cura da natureza, que corresponde não a um pensamento racional, mas sim a um impulso instintivo.” (ibid)
Jung fala a respeito da comprovação empírica do poder e do efeito terapêutico das Mandalas sobre os seus ‘feitores’. “(…) Já uma mera tentativa nesse sentido costuma ter um efeito curativo (…)” O que, ainda segundo ele, é facilmente compreensível no que elas representam frequentemente “(…) tentativas bastante audaciosas da junção e reunião de opostos aparentemente incompatíveis e da religação – à primeira vista inconcebível – de partes separadas”. Por outro lado, ele chama a atenção para um aspeto fundamental na ocorrência deste fenómeno, que é a ‘espontaneidade’: “Nada se pode esperar de uma repetição artificial ou de uma imitação intencional deste tipo de figura.”
Além de Jung, diversas outras fontes também iluminam o estudo que aponta para o valor arquetípico deste símbolo e as suas diversas formas de se manifestar. Segundo Câmera Cascudo, a marcha descrevendo um círculo, é de alta expressão simbólica e participa, há milénios da liturgia popular de quase todo o mundo. Como exemplo, cita as procissões religiosas ao redor de uma praça, volteando capela ou igreja, as voltas à fogueira nas festas de S. João, as caminhadas circulares em torno do berço ou cama do enfermo no exorcismo das velhas rezadeiras às crianças doentes.
E, referindo-se especificamente às rodas dançadas:
“(…) A primeira dança humana, expressão religiosa instintiva, a oração inicial pelo ritmo deve ter sido em roda, bailando ao redor de um ídolo, Desde o paleolítico vivem os vestígios das pegadas em círculo em cavernas francesas e espanholas. O movimento seria simples e uniforme, possivelmente com o sacerdote no centro dirigindo o culto e animando o compasso (…)”
As Brincadeiras-de-roda como Mandalas
À luz destes acontecimentos ocorridos nos primórdios do nosso desenvolvimento filogenético, assim como das investigações de Jung no seu trabalho terapêutico, poderíamos buscar relações com as cantigas e brincadeiras-de-roda.
Traço a hipótese de que, por trás do momento espontâneo do encontro em que crianças se dão as mãos e se movimentam expressando vocalmente as canções já por muitos antes expressadas, estaria também havendo uma busca instintiva de uma harmonização pessoal e grupal. E de que, as brincadeiras-de-roda seriam um re-vivenciar de um ritual ancestral, em que o mito estaria representado rítmica-melódica e poeticamente, sempre novamente ressignificado, a cada vez que apropriado pelos participantes dos grupos de brincadeiras.
O dar-se as mãos possibilita um contacto, uma experimentação táctil do outro numa interação corporal “que promove a permuta de energias e ameniza a solidão” entre os participantes. Estes estão naquele momento, mesmo que inconscientemente “(…) mentalizando juntos o advento de um estado mandalar (…)” (Milleco, 1987)
Qual seria o significado deste “estado mandalar” destacado por Milleco em relação às brincadeiras-de-roda?
Jung afirma que as mandalas podem ser dançadas. Ora, se as mandalas, num sentido geral, “estruturam o que ocorre na psique”; “representam a junção de opostos aparentemente incompatíveis”; propiciam a “concentração e a meditação”; “expressam a ideia de refúgio seguro e de reconciliação interior”; “compensam a desordem e a confusão psíquicas”; estas características também se aplicam às rodas dançadas (e cantadas). Desta maneira, cada participante da roda, estaria compartilhando com os demais do estado proporcionado pela “mandala-viva” da qual ele próprio é parte integrante.
No caso das brincadeiras-de-roda, devemos destacar que estas se constituem por rodas com determinadas variações coreográficas e por canções específicas associadas a elas, onde figuram personagens e tramas. Milleco, analisou cuidadosamente várias brincadeiras. Segundo a sua leitura, ao ocuparem a posição de personagens do ritual lúdico, as crianças estariam representando diversos níveis do psiquismo. O próprio desenvolvimento da canção, com os passos e gestos que lhe são inerentes, representaria, por outro lado, a integração destes elementos.
Penso que, o aspecto musical das brincadeiras – as cantigas-de-roda – é essencial na sua caracterização como mandalas. Por um lado, pelas imagens em que os seus temas musicais propiciam e, por outro, pela própria intensidade do ato de cantar.
“O entoar de canções permite a fruição do prazer de uma ação compartilhada por todos, criando-se um clima de alegria e de despreocupação importante para a integração e para a coesão grupal,” afirma Fregtman (1989). Eu acrescentaria que o cantar auxilia não somente na integração grupal como na integração pessoal, ou seja, na religação de elementos separados no psiquismo de cada um.
“A experiência energética do cantar facilita a integração entre o fluxo da cabeça, dos órgãos internos do corpo, braços e pernas. Cantar ajuda ação, emoção e pensamento, facilitando o contacto direto com as sensações físicas, com os sentimentos e com a mais profunda sensação de ser o que se é.”
Chagas, 1977
Num contexto de Musicoterapia, acredito que, com a criação de um espaço propício e convidativo por parte do musicoterapeuta suscitando a cantar e ou o dançar em roda, possibilita-se o vir à tona de todos os aspetos que estão associados às Mandalas. Por outro lado, o musicoterapeuta precisa de estar atento, pois uma mera iniciativa de um paciente em direção a uma cantiga e ou brincadeira-de-roda provavelmente já se relaciona com a sua necessidade de viver este “estado mandalar”.
Excerto da monografia apresentada ao Curso de Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música sob a orientação de Marly Chagas.