OS NOVE BILIÕES DE NOMES DE BACH

por Sérgio Azevedo

Numa das suas novelas de ficção científica, Arthur C. Clarke conta-nos a história de uns monges tibetanos que se dedicam desde tempos imemoriais a ensaiar todas as combinações possíveis do alfabeto com o fim de descobrirem, dissimulado nas imensas encruzilhadas fonéticas, o Nome de Deus, após o que o Universo terminará e as estrelas se apagarão, atingido o desígnio para o qual a Humanidade fora concebida por Ele.

Como o prazo previsto de 15.000 anos para calcular todas as combinações lhes parecia porém demasiado longo, decidem comprar a uma empresa ocidental os mais modernos computadores para que estes os ajudem na ciclópica tarefa. Os engenheiros que montam as máquinas, ao descobrirem porque razão estão no Tibete, resolvem escapar antes de passados 100 dias (prazo calculado para que os super-computadores resolvam os nove biliões de combinações de letras) pois temem a provável vingança dos monges quando estes chegarem ao fim e nada de extraordinário acontecer.

No derradeiro dia, já longe do mosteiro a caminho do aeroporto e do avião que os levará de volta, os dois olham para o relógio, calculando que por essa hora os monges terão dado o trabalho por terminado e percebido o inevitável desaire. Mas, subitamente, ao levantarem os olhos para o Firmamento descobrem estupefactos que as estrelas estão, uma a uma, lentamente, a apagar-se no céu.

Procurava Bach o Seu nome nas incríveis combinações contrapontísticas de O Cravo bem temperado, da Oferenda Musical, e de A Arte da Fuga, quando o encontra nesta, na inacabada décima quarta, a derradeira, inscrito na trama polifónica de uma fuga quádrupla? (ou Quíntupla? Ou Sêxtupla? Ou uma espiral ascendente de vozes sem fim, subindo espiraladas em direcção ao Altíssimo?): “Über dieser Fuge, wo der Nahme BACH im Contrasubject augebracht worden, ist der Versaffer gestorben” (Nesta Fuga, onde se encontra o nome de BACH em contratema, o autor morreu). A própria combinação das letras do seu nome traduzidas por algarismos dá 14, e a Fuga interrompida.

Este encontro entre o Nome e o Número codifica o ponto terminal de uma existência terrena. Fim do Cantor aos 65 anos, sopro de eternidade num fio ténue de tempo, durante o qual um Universo tão perfeito quanto o universo Dele foi erigido ad majorem gratia Dei. E porque não tão perfeito como o Dele? Lidar com homens é mais difícil do que lidar com notas, e Bach nunca soube lidar com os homens; nem eles, aliás, o souberam fazer com as suas combinações de notas, no tempo próprio: ad majorem gratia Bach?

Porém

“Ainda sugamos o mel dos oboés de Bach”.

O “Folclore Universal”, segundo Villa-Lobos, ou o fio de Ariana da História da Música, fio que se pressente e adivinha em Pérotin, Machaut e Josquin (Qui habitat in adjutorium Altissimi), atinge o zénite por consumação nele próprio, Bach, e servirá ainda à sublimação de Mozart (Requiem, Missa em dó menor), Beethoven (Grande Fuga).nove biliões de nomes de Bach, o Aleph Borgiano num vão de escada do edifício musical, ponto para o qual tudo flui e onde tudo toca tudo o resto. E também, claro, o triunfo da tonalidade, a perfeição máxima das leis da Harmonia, pois que de harmonia se trata. É nela que tudo repousa, e é a ela que as mais intrincadas combinações contrapontísticas humildemente se referem, mesmo sabendo que o Cantor se faz representar em 1746 com o Canon Triplex na sua mão direita: “Senhor, eis-me perante o Vosso trono. ”

Prelúdios que desafiam as leis do movimento, em motricidade perpétua que se alimenta do seu próprio impulso, Paixões que desafiam a mecânica ao erguerem o seu volume inimaginável em direcção aos céus, não se abatendo sob o peso imenso, Sarabandas visionárias onde o Tempo parece parar, “Fugas que partem subitamente no meio de solenes aberturas, fugas que parecem verdadeiras torres, andar após andar, elevando-se até às nuvens, outras escritas ao inverso, o tema de pernas para o ar. ”

Deus num invólucro demasiado humano, porém. Roja-se o autor na poeira da rua, engalfinhado com um aluno recalcitrante, ou discute a parte do salário para o vinho com o reitor, enquanto o espírito se trava de intimidade com o Altíssimo, permitindo-se Este o admirar-se daquele por tamanha discrepância entre corpo e alma..

Os nove biliões de Nomes de Deus, uma espiral infinita de música que ainda não terminou o seu desígnio combinatório: a 14ª Fuga interrompeu para sempre cálculos inextrincáveis num preciso e minúsculo ponto de uma linha infinita a que chamámos 28 de Julho de 1750. O céu continua estrelado.

© Sérgio Azevedo

Johann Sebastian Bach

Partilhe
Share on facebook
Facebook