AS FONTES BÍBLICO-PATRÍSTICAS

DA MÚSICA LITÚRGICA

por António José Ferreira

Na Igreja Católica, o regresso proposto pelo II Concílio do Vaticano às fontes da teologia e da liturgia, leva-nos a fundamentar, na Bíblia e nos Padres da Igreja, a utilização litúrgica da música. Muitas vezes foram citados convites bíblicos ao canto nos padres da Igreja e no magistério (1) e, desde o início, a liturgia recorre aos salmos, a hinos e cânticos da Escritura. O saltério, os hinos primitivos e a óptica patrística da música na liturgia ajudam a responder a esta questão: o que é a música litúrgica?

1. ANTIGO TESTAMENTO: O SALTÉRIO

As mais de seiscentas referências musicais (2) que podemos contar em toda a Bíblia, geralmente do culto pós-exílico em que se distingue o culto no templo e o culto sinagogal, reflectem uma vasta gama de situações e sentimentos: derrota e vitória, o amor e o sofrimento, a tristeza e a alegria da vida quotidiana, ensino e festa. A música reflecte o diálogo de Deus com o homem, na Palavra e na resposta. Nela se encontram o passado e o futuro, o cativeiro de Babilónia e a Jerusalém celeste, a dor e o louvor, a natureza e o homem.

A voz humana tem um papel de relevo sobre os outros instrumentos, como se vê pela diferença no número de vezes em que aparecem. “A música vocal do templo, como todos os cânticos religiosos entre as nações antigas e primitivas, extraiu a sua seiva da canção popular” (3).

Os 150 salmos são a “imensa partitura cantada” (4) de um povo em marcha e “um instrumento para o canto cultual e o exercício da piedade individual” (5). Até à sua destruição pelos romanos no ano 70, “o templo de Jerusalém é o lugar por excelência do canto sálmico acompanhado de música” (6). Os salmos, durante muito tempo considerados fruto da piedade individual, são hoje reconhecidos no seu enraizamento litúrgico, no templo e na sinagoga, com diversos modos de execução (7) e participação cantada (8), em forma responsorial ou em coros alternados. Instrumentos de corda, de sopro e de percussão foram usados também nas celebrações cultuais do templo. Há uma variedade litúrgica de instrumentos que não pode ser ignorada (9), juntamente com certa prudência em relação a certos instrumentos e modos de execução mais próximos das formas cultuais pagãs limítrofes da Palestina (10). Há instrumentos mais aptos para as celebrações cultuais e outros menos aptos.

2. NT: OS HINOS NA LITURGIA PRIMITIVA

As referências ao canto e à música no Novo Testamento, embora pouco numerosas, mostram que os primeiros cristãos cantavam, como cantaram Jesus e os doze. É provável que os judeo-cristãos tenham seguido “o costume sinagogal ou, pelo menos, o saltério rapidamente foi o objecto da sua meditação cristológica” (11). As celebrações seguem o modelo hebraico no qual as comunidades foram criadas e formadas (12), com cântico monódico de ritmo livre. O corte com o judaísmo não podia ser tão radical que desse aos cristãos uma base musical e cultural nova. Com a diáspora, os músicos impregnaram-se de meios de expressão das regiões para onde iam, criando uma música que estaria na origem da música cristã (13) oficial. Foi-se desenvolvendo nas comunidades cristãs “uma rica gestualidade vocal, inspirada na prática comum, que permite aos fiéis participar nas celebrações: quer se trate de proclamar a palavra de Deus ou de dar graças, de aclamar, de fazer uma lamentação, de suplicar, de meditar” (14) . Estamos perante o “oposto de uma música em si relativamente ao rito e de um rito em si relativamente à vida. A celebração dos mistérios cristãos não é uma extrapolação da cultura ambiente” (15). Nas diversas realidades culturais, nascem gestos vocais e usos diferenciados, que convergem num acto de louvor e glorificação de Deus (16.

A partir dos elementos musicais conhecidos na Igreja primitiva, nota-se uma clara preponderância da música vocal, da palavra e do ensino sobre a música instrumental (17). Nas assembleias do I século (comunidades modestas que se reuniam em modestas casas/sinagogas), o salmo já não tem suporte de instrumentos, reservados “para o Templo ainda de pé e para o Templo escatológico” (18). A maneira de o cantar varia também (19) e perde-se a especialização musical. Se a não utilização de instrumentos por parte dos primeiros cristãos e do próprio gregoriano tem a ver com a influência da liturgia sinagogal, também não será alheia à ruptura com o ambiente pagão em que os instrumentos eram muito utilizados em cultos idolátricos e espectáculos contrários aos valores cristãos. No capítulo 14 da Primeira Carta aos Coríntios, sobre a hierarquia dos carismas em vista do bem comum, São Paulo apela à caridade e pede clareza na linguagem:

“se não emitirem sons distintos, como reconhecer o que toca a flauta ou a cítara? E se a trombeta emitir um som confuso, quem se preparará para a guerra? Assim também vós: se a vossa linguagem não se exprime em palavras inteligíveis, como se há-se compreender o que dizeis?” (20).

O dom das línguas, na diversidade dos carismas, existe para a edificação da unidade. Também “o canto cristão deve dizer algo, sem se ficar pela simples emoção espiritual” (21). A edificação aparece também como exigência para o canto dos cristãos reunidos: “cada um de vós pode cantar um cântico, proferir um ensinamento para a edificação” (22). Paulo faz uma exigência que marcará a patrística: “Cantarei com o meu espírito, mas cantarei também com a minha inteligência” (23). Não sabemos muito sobre o contexto destas palavras. Talvez houvesse na comunidade cânticos espontâneos, que o apóstolo aceitava se fossem inteligíveis. Na Carta aos Efésios, o autor incentiva os cristãos a darem graças a Deus, por tudo, “com salmos, hinos e cânticos espirituais” (24) (a totalidade das manifestações de fé cantadas). No âmbito dos preceitos gerais da vida cristã, a Carta aos Colossenses pede, com expressão semelhante a Ef 5, 19: “entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos espirituais” (25). Estes dois textos funcionam na história da música litúrgica como regra neotestamentária do canto.

O Apocalipse, o livro litúrgico por excelência do Novo Testamento, é o que mais referências musicais apresenta, com os seus instrumentos, hinos, peças poéticas com ar de cânticos, doxologias. A música vocal desempenha um lugar muito importante: na visão do Cordeiro e dos 144000 ouve-se uma voz “semelhante a um fragor de águas e ao ribombo de um forte trovão” (26. Os redimidos “cantavam um cântico novo diante do trono, dos quatro seres vivos e dos anciãos. Ninguém podia aprender o cântico, excepto os 144000 que foram resgatados da terra” (27). É clara a influência do canto dos redimidos sobre os Padres da Igreja, como Ambrósio de Milão, Agostinho e Gregório de Nazianzo (28) e em textos do magistério do século XX. A trombeta e a cítara (29) aparecem nesse contexto da liturgia celeste: “prostraram-se diante do Cordeiro, cada um com uma cítara e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos, cantando um cântico novo: Digno és Tu de receber o livro” (30). A harpa é um instrumento popular e também litúrgico. O seu silêncio é sinal de luto e de tristeza: “o canto de harpistas e tocadores de trombeta em ti não mais se ouvirá” (31). Para certos autores, os seus elementos hínicos e aclamações inspirar-se-iam na “prática contemporânea das Igrejas da Ásia” (32) . A liturgia celeste, mesmo no que diz respeito aos instrumentos, seria quase uma transposição da liturgia cristã primitiva (33). Porém, as certezas não são muitas.

3. O CANTO NA LITURGIA PATRÍSTICA

De Jerusalém, o cristianismo espalha-se através da cultura grega, cuja teoria musical “proporciona uma base técnica sólida ao canto das comunidades cristãs” (34). A união destas duas influências vai resultar no canto bizantino (a oriente, em grego) e no gregoriano (a ocidente, em latim). A liberdade de culto, concedida pelo Edito de Milão, em 313, reflecte-se no próprio canto, pelo aparecimento de “novas formas litúrgico-musicais e novas maneiras de estruturar o canto” (35), difundidas por Santo Ambrósio (36). Contra a opinião negativa de alguns autores, Santo Agostinho reconhecia a utilidade ao canto, recordando sempre as lágrimas vertidas na catedral de Milão, graças aos cânticos da assembleia, “não pelos seus acentos mas pelas palavras moduladas, pela sua justa expressão, pela pureza da voz” (37). O canto é inevitável na liturgia, na medida em que “cantar é próprio de quem ama” (38).

Para S. Basílio, no salmo, a melodia é uma espécie de mel que Deus juntou ao medicamento (as suas palavras), para torná-lo mais fácil de tomar (39. São João Crisóstomo observa que “os cantos são um grande atractivo para a nossa natureza, a ponto de secarem as lágrimas e calarem o pranto dos meninos de peito” (40). O mesmo autor refere que “Deus, vendo a indiferença de grande número de homens, que não têm afeição alguma à leitura das coisas espirituais e não podem suportar o trabalho sério do espírito que elas requerem, quis tornar-lhes este esforço mais agradável e tirar-lhes, inclusive, a sensação de fadiga” (41). São Basílio dá-se conta que “dificilmente permanece o que se aprendeu de má vontade; o que, pelo contrário se recebeu com gosto e suavidade, dura com mais firmeza no nosso espírito” (42). O gozo melódico e a força da Palavra unem-se para fortalecer o crente e levantar o homem caído. Esta agradável prática do canto é promovida para neutralizar a influência da música pagã. Na sua catequese, os Padres utilizaram a capacidade de “impressão da música em benefício da Palavra de Deus e viram no salmo um lugar privilegiado para estruturar e enriquecer a fé do povo” (43). Pretendem que as assembleias cristãs cantem com alegria e sentido de comunhão, fomentando a ligação perfeita entre vida litúrgica e comportamentos morais. O canto da comunidade reunida, que imita e participa no louvor dos anjos, é símbolo da vida celeste: “Essa nossa existência definitiva como contemplação dinâmica de Deus, como festa e alegria sempiternas, como comunhão no amor, como louvor de todo um povo, como sacrifício espiritual do templo escatológico, será simbolizada preferentemente no canto comum” (44) da assembleia, o coro primordial (45). O canto coral gera comunhão e harmoniza as diferenças sociais, rácicas, etárias: “não há escravo, nem livre, nem rico, nem pobre, nem príncipe, nem súbdito. Longe de nós essas desigualdades sociais: formamos todos um só coro, todos tomamos igualmente parte nos cânticos sagrados e a terra imita o céu” (46). Na mesma perspectiva, São Basílio ensina que “o canto do salmo restabelece a amizade, reúne os que estavam desavindos, converte em amigos os que mutuamente se hostilizavam. Quem será ainda capaz de considerar como inimigo aquele com quem elevou uma só voz para Deus?” (47). No Pseudo-Dionísio encontramos também uma passagem de rara beleza: “os cantos põem-nos em sintonia, primeiro com o nosso eu mais profundo; depois entre nós mesmos, os participantes na assembleia litúrgica; e, desse modo, constituídos em coro único de homens santificados, abrimo-nos aos mistérios sagrados” (48). O mesmo autor liga as imagens do coro e do corpo: as vozes são muitas, mas a melodia é uma; os membros são diversos, mas o corpo é um só. No “uníssono dos cantos divinos, estamos em sintonia, não só com as realidades divinas, mas também connosco próprios, de tal modo que já não formamos senão um único e homogéneo corpo de homens santos” (49) que acedem ao Mistério. O uníssono das vozes reflecte e gera a sintonia dos corações. Além disso, o canto colectivo tem uma eficácia pastoral (50) que não devemos ignorar.

O interesse musical da sociedade levou os pastores a reflectirem sobre a música e a transmitir a sua visão crítica sobre as implicações na liturgia e na vida espiritual quotidiana. Não fazem um discurso estético, abstracto e especulativo: na solicitude pastoral que lhes é própria, corrigem desvios e dão orientações. Denunciam o ritualismo, a falta de entusiasmo celebrativo e outros problemas. Para que o louvor seja agradável a Deus, não se pode juntar ao canto belo a estridência de certos costumes (51). Com uma frontalidade que nos espanta, São Basílio pergunta: “Quantos fornicadores, quantos ladrões estão aqui presentes? Quantos, no seu coração, escondem a fraude e a mentira?” (52). E conclui: “estes, parece que cantam, mas na realidade não cantam” (53). O verdadeiro canto é o interior: o canto exterior é o seu rosto. “Sem voz também é possível cantar desde que, internamente, vibre o espírito. Cantamos, não para os homens, mas para Deus que pode escutar os nossos corações e penetrar na intimidade da nossa alma” (54). João Crisóstomo, comentando Ef. 5, 19, pergunta: “Que significa ‘ em vossos corações’ ? Com inteligência; não suceda que, enquanto a boca está a dizer as palavras, a mente divague por qualquer parte: para que a língua seja escutada pela alma” (55). Compara a comunidade de Corinto com a comunidade em que vive: “outrora reuniam-se para cantar os salmos em comum: nós somos fiéis a este costume; só que nessa altura todos tinham um só coração e uma só alma, enquanto que hoje há dissensões e lutas por toda a parte, em vez daquela perfeita harmonia e de uma só alma” (56). Os problemas não se ficam por aí. Alguns “vêem-se num estado de contínua agitação, dir-se-ia com acessos de loucura; pelo menos, pode dizer-se que mostram costumes impróprios de um lugar sagrado (…) O vosso espírito está preocupado com o que ouvis e vedes nos teatros e trazeis para os ritos da Igreja o que lá se pratica; esta é a origem desses gritos exagerados que nada significam… Será que as vossas mãos concorrem para a vossa súplica, quando as agitais em todos os sentidos, sem descanso? A que propósito vêm esses gritos violentos, que bem podem mostrar a força dos vossos pulmões mas nada significam? Ousais misturar as diversões demoníacas com os hinos dos anjos que glorificam a Deus?” (57).

Os Padres denunciam o poder sedutor da música idolátrica e a imoralidade dos cantos pagãos. Embora não sejam músicos e não se preocupem geralmente com a técnica musical, “por ser uma actividade tão fundamental aos cristãos reunidos em assembleia, parecia-lhes um dever fundamental tornar clara aos olhos dos fiéis a riqueza espiritual e teológica” (58) dessa prática. É assim que a dissonância dá lugar ao acorde perfeito. Deus “ordenou o próprio universo por medida e submeteu a dissonância dos elementos à disciplina do acorde, para se fazer do mundo inteiro uma harmonia” (59). A própria criação nos aparece ligada à música. Deus criou o homem e fez “entrar o seu sopro neste belo instrumento” (60), como o flautista sopra e dá vida à flauta, arrancando-lhe a fala. A harmonia da natureza e as vozes humanas, que explicitam o louvor, concorrem para a sinfonia universal de glorificação a Deus.

Os padres sublinham “a função ministerial da música, do ritmo, da melodia e o primado do texto e da palavra” (61). Daí deriva uma série de exigências, tanto para a assembleia, como para os ministérios, como para a música em si, na sua componente melódica, rítmica, harmónica, instrumental. Deve cantar-se com inteligência. Inspirado em São Paulo (62), Basílio diz-nos: “a língua cante e a mente trate de conhecer o sentido das palavras cantadas, para cantares com o espírito e também com a tua mente” (63). O canto torna-se uma expressão de uma comunidade orante. Daí certas exigências na composição, conjugação e execução do canto na assembleia cristã: ausência de conotações profanas; exigência de simplicidade (64); preponderância da palavra e do canto interior sobre a melodia e a voz; prática existencial, não mecânica, mas sentida.

Tanto no Ocidente como no Oriente, vários textos falam de um canto “intimamente relacionado com a existência total dos crentes, com os seus ritmos vitais e inclusive com os seus conflitos e problemas” (65). Embora muitos cristãos frequentassem os espectáculos e teatros pagãos, contra a vontade dos pastores, recebendo uma influência prejudicial que se repercutia na vida cristã e na própria liturgia, não se pede aos cristãos que abandonem o canto, mas que o acolham como eco existencial da Palavra. João Crisóstomo convida os pais e as mães a ensinarem os salmos aos filhos e a utilizá-los em casa (66). O canto como que permite ruminar a Palavra, prolongando a celebração nas diferentes situações da vida, tornando-se um “estímulo eficaz para o culto existencial do crente” (67). Os Padres fazem recomendações aos cantores e insistem nas atitudes pessoais de atenção e assimilação (68). Salientam “com expressões musicais de grande beleza a existência como lugar primordial do culto cristão, assim como a necessária conexão entre liturgia e vida” (69). Canto interior e canto exterior exigem-se mutuamente. “A voz que se dirige aos homens é o som; a voz que se dirige a Deus é a piedade” (70). O canto interior deve acontecer ao longo da celebração litúrgica e em toda vida; o canto exterior é sua expressão e será agradável se for coerente com uma existência de homens novos e mulheres novas. Cantará bem aquele que cantar com a voz, com o coração, com a vida, com as obras (71). Com grande finura psicológica, o bispo de Hipona diz ainda: “não podereis experimentar a verdade do que cantais, se não começardes a praticar o que cantais” (72). A música vocal é baluarte da verdadeira fé e transfiguração do gozo humano em cantar e fazer festa. “Toda a nossa vida cristã é sempre um dia de festa e por esse motivo trabalhamos nos campos cantando hinos e entoamos cantos de louvor ao Senhor enquanto navegamos” (73). É o prolongamento existencial da assembleia que se cumprirá na escatologia.

Tal como Ambrósio de Milão, Gregório de Nazianzo dá-se conta que “são precisamente os salmos cantados entusiasticamente por toda a assembleia que convertem as largas horas das vigílias nocturnas em momentos de verdadeiro prazer espiritual” (74). João Crisóstomo deixa um alerta para que a beleza seja proveitosa:

“não respondamos por mera formalidade, mas tomemos este verso para nos servirmos dele como bastão e ajuda. Cada verso dos salmos é suficiente para nos elevar a uma sabedoria eminente, reformar as nossas ideias e adquirir os maiores bens e, se meditamos atentamente sobre cada uma das palavras que o compõem, recolheremos disso frutos mais abundantes” (75).

Um simples verso é como que uma arca que nos oferece um tesouro fabuloso:

“Tomai as palavras deste salmo como outras tantas pérolas para as conservar e meditá-las cuidadosamente em vossas casas. Repeti-o aos vossos amigos e às vossas esposas e, se a tribulação se apoderar da vossa alma, se sentis despertar em vós outro sentimento condenado pela razão, tende na vossa boca as palavras deste cântico divino” (76).

S. Atanásio fala do salmo como instrumento de conversão e de catarse espiritual: “a recitação repetida do salmo opera uma estruturação profunda do espírito do cantor, que contempla nas palavras dos salmos reflectidos, como em espelho, os desejos e sentimentos do seu espírito” (77).

A vida musical-litúrgica dos primeiros séculos não se reduz evidentemente a cantar o que vinha da tradição. As formas musicais e modos de execução desenvolvem-se contribuindo para “a vitalidade de uma liturgia celebrada nas línguas comuns e não reservada aos clérigos” (78). Nas comunidades cristãs, “a unidade não significa uniformidade. Numa celebração bem integrada nos ritmos da existência e no tecido da experiência da comunidade” (79), ressoam a Palavra de Deus e a resposta lírica da Igreja. Surgem peças hínicas, servindo-se de esquemas musicais comuns, por vezes à maneira de salmos veterotestamentários e cânticos do Novo Testamento (80). O sentido dos salmos transfigura-se numa perspectiva cristológica. A partir dos exemplos escriturísticos, os Padres da Igreja fazem uma leitura espiritual, mas acolhem também a dimensão antropológica e psicológica do canto, a sua capacidade impressiva e expressiva (que marcam pensamento da Igreja sobre a música litúrgica). “A prática litúrgica do canto insere-se numa visão mistérica, sacramental, e os textos que falam dela são mais do género da mistagogia que do tratado” (81).

Em suma, o canto litúrgico é “bênção do povo, louvor de Deus, celebração da assembleia, harmonia universal, expressão de todos, profissão canora da fé, devoção magnífica, alegria da liberdade, grito de festa, explosão de alegria”(82).

NOTAS

(1) Ex 15, 1-20; 2 Sam 6,5; I Cr 23,5; I Cr 25, 2-31 são citados pela MSD de Pio XII.

(2) W. EDGAR, Clés pour la musique (Méry sur Oise: Sator 1990) 99.

(3) A. Z. IDELSOHN, Jewish Music. Its Historical Develepment (New York: Dover Publications 1992) 20.

(4) S. FALCINELLI, Livret de la musique de la Bible Réveléé. Notation millénaire décryptée par Suzanne Haïk Vantoura =Harmonia Mundi France (Paris 1976) s.p.

(5) D. BACH, Israel, un peuple qui chante, in Le Monde de la Bible 37 (1985)3.

(6) C. PERROT, Le chant hymnique chez les juifs et les chrétiens au premier siècle, in LMD 161 (1985) 7.

(7) Cf. IDELSOHN, Jewish Music 20-21.

(8) Cf. Ibid. 21.

(9) Ibid. 5. Certos instrumentos que em determinada época e para determinada cultura foram considerados profanos ou indignos, com o tempo perderam a sua profanidade.

(10) Cf. Ibid. 18.

(11) C. PERROT, Le chant hymnique 21-22. Cf. Lc 24,4 e salmos no relato da paixão.

(12) Cf. Ibid. 52.

(13) FALCINELLI, Livret de la musique, s.p.

(14) F. RAINOLDI, Chant et Musique, in Dictionnaire Encyclopédique de la Liturgie (Brepols 1992) vol. 1, 171.

(15) Ibid., 172.

(16) Cf. Lc 1, 46-55; Lc 1, 68-79; Lc 2, 29-32; Mt 26, 30.

(17) Cf. RAINOLDI, Chant et Musique 171.

(18) C. PERROT, Le chant hymnique 13-14. Cf. Ap 5,8.

(19) Cf. Ibid. 15.

(20) 1 Cor 14, 7-9.

(21) PERROT, Le chant hymnique 23.

(22) 1 Cor 14, 26. Cf. MSD 7.

(23) 1 Cor 14, 15. Santo Agostinho dizia: “É melhor os peritos censurarem-nos do que o povo não nos entender” (Enarr. in Ps 138; PL 37, 1796).

(24) Ef 5, 19-20.

(25) Col 3, 16.

(26) Ap 14, 2. Ap. 19, 6 fala do “rumor de uma grande multidão, semelhante ao fragor de águas torrenciais e ao ribombar de fortes trovões”. Cf. AMBRÓSIO DE MILÃO, Exameron III, 5, 23; PL 14, 178.

(27) Ap 14, 3.

(28) S. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Commentarium in psalmum 65, 7-9: PG 23, 657-660.

(29) Os textos de 1 Cor 15, 52; Mt 24, 31; 1Ts 4, 16 situam-no no contexto do fim dos tempos, ligado à ressurreição da carne e reunião dos eleitos, e Ap. 4, 1 à revelação do mistério.

(30) Ap 5, 8-9. Cf. Ap 5, 13 na MSD.

(31) Ap 18, 21-22.

(32) C. DUCHESNEAU-VEUTHEY, Musique et Liturgie. Le document “Universa Laus” (Paris: Éditions du Cerf 1988) 152.

(33) Cf. X. BASURKO, La música en la tradición primitiva 28, e P. PRIGENT, Apocalypse et liturgie (Neuchatel 1964).

(34) RAMOS RIOJA, El canto gregoriano 54.

(35) Ibid. 55. Surgem hinos, com melodias métricas bastante simples (que terminam geralmente em doxologia e reflectem, assim, o combate às heresias contra a divindade de Cristo e a Trindade), e o salmo responsorial.

(36) Ibid. 56. Segundo este autor, “os hinos ambrosianos não tinham, regra geral, uma melodia fixa para cada texto, mas adaptam-se a melodias que têm o seu mesmo ritmo e que não se diferenciam dos hinos pagãos do século II”. Os hinos com música própria aparecerão mais tarde, pelos séculos VI-VII. Entretanto, o modo de execução antifonal (herdado do Oriente) junta-se à primitiva forma responsorial: estas formas marcarão todo o canto gregoriano.

(37) S. AGOSTINHO, Retractationes 1, II, c. 11: PL 32, 634. As suas Confissões (Lib. X, c. 33, PL XXXII, 799s) são citadas na MSD 13.

(38) S. AGOSTINHO, Sermo 336 , 1: PL 38, 1472. Cf. IGMR 31, nº 19.

(39) Cf. Ibid. 13; Cf. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilia in psalmum 1.1: PG 29, 211.

(40) Sermo 159, 2: PG 38, 868.

(41) S. JOÃO CRISÓSTOMO, Expositio in Psalmum 41,1: PG 55, 156.

(42) S. BASÍLIO, Homilia in psalmum 1, 2: PG 29, 214.

(43) BASURKO, Música y canto 14.

(44) Ibid., 9.

(45) Só por finais do século IV aparecem nos centros populacionais importantes ou centros de peregrinação, grupos (não especializados) formados por cristãos assíduos às celebrações, incluindo os monges. Asseguravam as respostas onde a assembleia era instável e executavam as partes mais difíceis. O povo cantava as aclamações e partes tecnicamente mais fáceis (Cf. Ibid. 20).

(46) S. JOÃO CRISÓSTOMO, De studio praesentium, Homilia 5, 2: PG 63, 486.

(47) S. BASILIO, Homilia in psalmum 1,2: PG 29, 212.

(48) BASURKO, Música y canto 22. Comentário ao Pseudo-Dionísio.

(49) PSEUDO-DIONÍSIO, De Ecclesiastica Hierarchia, III, 3, 5: PG 3, 432.

(50) Cf. SANTO AMBRÓSIO, Sermo contra Auxentium 34, citado por Paulo VI, Dignità di preghiera 241.

(51) Cf. SANTO AGOSTINHO, Enarr. in ps. 146, 3: PL 37, 1900.

(52) S. BASÍLIO, Homilia in psalmum 29, 3 : PG 29, 312.

(53) Loc cit.

(54) S. JOÃO CRISÓSTOMO, Expositio in Psalmum 41, 3 : PG 55, 159.

(55) Ibid., 157.

(56) ID., In Epistolam I ad Corintios, Homilia 36, 5: PG 61, 313.

(57) ID., In illud, Vidi Dominum, Homilia I, 2: PG 56, 59.

(58) X. BASURKO, Música y canto 7.

(59) S. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Le Proptréptique I, 5, 1, 57.

(60) Ibid. I, 5, 3, 58.

(61) BASUSRKO, Música y canto 12

(62) Cf. Col 3, 15 e Ef 5, 19, e em especial 1 Cor 14, 15.

(63) S. BASÍLIO, Homilia in psalmum 28, 7: PG 29, 304.

(64) Cf. BASURKO, Música y canto 15.

(65) Ibid. 23.

(66) Cf. S. JOÃO CRISÓSTOMO, Expositio in psalmum 41, 2: PG 55, 157.

(67) BASURKO, Música y canto 28.

(68) Cf. Ibid. 9.

(69) Loc cit.

(70) S. AGOSTINHO, Sermo 257 , 1: PL 38, 1193.

(71) Cf. ID., Enarr. in Psalmum 148, 2: PL 37, 1938.

(72) Ibid., 1604.

(73) S. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata VII, 7, 27-28.

(74) BASURKO, Música y canto 7; Cf. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Carminum Liber, II, 50, 40: PG 37, 1387-1388.

(75) S. JOÃO CRISÓSTOMO, Expositio in psalmum 14, 7: PG 55, 166.

(76) Loc cit.

(77) BASURKO, Música y canto 18; Cf. S. ATANÁSIO, Epistola ad Marcellinum, 12: PG 27, 24.

(78) RAINOLDI, Chant et Musique 172.

(79) Ibid. 173.

(80) “Desperta tu que dormes e levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará” (Ef 5, 14) tem continuação em Clemente de Alexandria. Depois de o CITAR, acrescenta: “Cristo, o sol da ressurreição, gerado antes da estrela da manhã, que com os seus raios nos vivifica (S. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Protréptico IX, 84, 2, 151).

(81) RAINOLDI, Chant et musique 172.

(82) S. AMBRÓSIO, Enarr. in Ps 1, 9; PL 14, 968. O texto refere-se especialmente ao canto sálmico.

Rei David, por Gerard van Honthorst

António José Ferreira

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